quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Ética Jurídica - Fertilização in Vitro e Registro de Nascimento


autora: Maria Aglaé Tedesco Vilardo
 
            O problema ético na aplicação do Direito possui um horizonte prático relevante. A identificação deste horizonte deve ser feita em contraste com o horizonte teórico.

            A filosofia busca constituir situação que permita contemplar a verdade na sua dimensão prática tendo em vista que o ser humano é um ser movido pelo desejo e tem por objetivo a felicidade.

Aristóteles, pai da ética, afirma que “o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade” e que a moderação das paixões é o caminho da felicidade.  Para o filósofo, a Lei deve ser capaz de compreender as limitações do ser humano, suas paixões e instintos, e produzir instituições que promovam o bem e reprimam o mal. A lei não deve moldar o real, mas o contrário, a realidade deve moldar a lei, assim, ela será passível de cumprimento.

A essência da virtude se encontra na moderação entre os extremos de cada paixão, o caminho do meio. Para ele o conhecimento é dividido entre o conhecimento prático e teórico, o primeiro sendo o conhecimento de como agir corretamente e o segundo o conhecimento do que é bom por si mesmo. 

Estabelece como fonte da ética a noção de que a Felicidade (eudaimonia) é recompensa dos virtuosos. Aristóteles propõe uma sociedade na qual as instituições tentam harmonizar estes sentimentos básicos dos seres humanos de forma a produzir o melhor resultado possível para que o bem individual e o bem coletivo sejam harmônicos. Busca uma Ética do Possível, que não desrespeite a paixões humanas, mas antes as oriente pelo caminho da ponderação até a maturidade racional do equilíbrio.

Com base na teoria ética de Aristóteles destacamos o caso que segue para breve exame.

PARECER Nº 82/2010_E_ PROCESSO Nº 2009/104323- Procedimento Administrativo – Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo
REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS _ Assento de nascimento _ Filha gerada mediante fertilização in vitro e posterior inseminação artificial, com implantação do embrião em mulher distinta daquela que forneceu o material genético _ Pretensão de reconhecimento da paternidade pelos fornecedores dos materiais genéticos (óvulo e espermatozóide) _ Cedente do óvulo impossibilitada de gestar, em razão de alterações anatômicas _ “Cedente do útero”, por sua vez, que o fez com a exclusiva finalidade de permitir o desenvolvimento do embrião e o posterior nascimento da criança, sem intenção de assumir a maternidade _ Confirmação, pelo médico responsável, da origem dos materiais genéticos e, portanto, da paternidade biológica em favor dos recorridos _ Indicação da presença dos requisitos previstos na Resolução nº1.358/1992 do Conselho Federal de Medicina, em razão das declarações apresentadas pelos interessados antes da fertilização e inseminação artificiais _ Assento de nascimento já lavrado, por determinação do MM. Juiz Corregedor Permanente, com consignação da paternidade reconhecida em favor dos genitores biológicos _ Recurso não provido.

 

O Ministério Público do Estado de São Paulo interpôs recurso contra a decisão do Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito de Barão Geraldo, da Comarca de Campinas, que afastou a recusa de lavratura de assento de nascimento de criança com imputação da paternidade aos fornecedores de materiais genéticos utilizados para fertilização in vitro e inseminação artificial em mulher que, sem ser a produtora do óvulo, autorizou a prática do ato com a exclusiva finalidade de permitir o desenvolvimento do embrião e o seu futuro nascimento.

            A alegação fundamentou-se no fato de que a maternidade é presumida pela gestação e que o contrato entre as partes não supera este princípio e que devem prevalecer os interesses da criança, o que ocorrerá com a lavratura de assento de nascimento que retrate a estrita veracidade quanto à paternidade e maternidade, de forma a assegurar a preservação da dignidade humana.

O Ministério Público considera que a lavratura do assento de nascimento na forma pretendida não possibilitará o futuro conhecimento, pela criança, de sua real origem, porque ocultará a verdadeira maternidade. Além disso, não existe regulamentação legal para a prática pretendida pelos recorridos, o que impõe maiores cautelas e impede, por sua vez, a presunção de paternidade e maternidade tão só pelas declarações apresentadas pelos interessados, nas quais se inclui a do médico responsável pela fertilização e pela inseminação. Tece comentários sobre a possibilidade de manipulação genética vedada ou ilegal. Afirma, por fim, que a genitora que deu à luz não tem parentesco com os supostos pais biológicos, o que contraria resolução do Conselho Federal de Medicina destinada a impedir a comercialização do útero. Requer o provimento do recurso para que seja determinada a lavratura do assento de nascimento em nome da mulher indicada como genitora na Declaração de Nascido Vivo, com remessa dos interessados às vias ordinárias para a solução de eventual litígio relativo à paternidade e maternidade.

O Juiz Auxiliar da Corregedoria da Comarca da Capital de São Paulo, Dr. José Marcelo Tossi Silva, em 19/3/2010 emitiu parecer no sentido de se manter o registro em nome dos pais doadores dos gametas. Fundamentou seu parecer afirmando que diante da inexistência de legislação específica deveria ser observado que o Conselho Federal de Medicina, no campo da ética, regulamentou a conduta de seus membros, na denominada “gestação de substituição”, por meio da Resolução nº 1.358/92.

Acrescentou que a solicitação de registro foi instruída com “Declaração de Nascido Vivo” do hospital onde a criança nasceu, além dos documentos: “Termo de Consentimento para Substituição Temporária de Útero” constando os “Pais Genéticos”, ou seja, fornecedores do óvulo e do espermatozóide, e  “Doadores do Útero” ; “Termo de Consentimento Pós Informado para FIV/ICSI”; “Termo de Consentimento Pós-Informado para Criopreservação de Pré-Embriões/Embriões após Fertilização In Vitro”; declaração prestada pelo médico confirmando a origem dos materiais genéticos que resultaram na fertilização e inseminação artificiais; declaração da gestante no sentido de que foi submetida a inseminação artificial de embrião fertilizado com uso de materiais genéticos alheios e de que não tem pretensão de assumir a maternidade da criança assim gerada.

Diante da ausência de regulamentação legislativa, a solução para as situações concretas, ocorridas a fertilização in vitro e a posterior inseminação artificial em “cedente de útero”, ou “mãe-de-substituição”, deve prevalecer o melhor interesse da criança desse modo concebida e nascida, o que, neste caso concreto, corresponde à lavratura do assento de nascimento com base na verdade biológica da filiação.

Os documentos são concludentes no sentido de que a concepção e paternidade sempre foi desejada pelos pais biológicos, doadores dos materiais genéticos utilizados na fertilização in vitro, prestando-se a cedente do útero a servir para a gestação e parto, sem qualquer intenção de assumir a maternidade da criança. Assim, declarou por escrito.

Evidente que a lavratura do registro em desconformidade com a verdade biológica será prejudicial à criança que nenhum sustento e educação receberia da gestante.

O parecer foi aprovado pelo Corregedor Geral da Justiça, Des. Antonio Carlos Munhoz Soares, em 26/3/2010.

            Ao analisarmos o caso sob o enfoque da ética de Aristóteles destacamos que os doadores dos gametas, movidos pelo desejo da paternidade/maternidade (“o ser humano é um ser movido pelo desejo”) e impossibilitados de realizá-lo naturalmente, tiveram que realizar a fertilização em vitro com a ajuda de outra mulher que pudesse gestar em seu útero um embrião oriundo do óvulo e espermatozóide do casal.

            O objetivo do casal era a felicidade em serem pais e os avanços biotecnológicos permitiam alcançar tal felicidade. Como Aristóteles preconizou “ A lei não deve moldar o real, mas o contrário, a realidade deve moldar a lei, assim, ela será passível de cumprimento”. Assim, o casal, diante da real possibilidade da gestação de substituição, criou situação não prevista especificamente em lei. Todavia, houve a preocupação dos médicos em regulamentar eticamente a gestação de substituição através da resolução mencionada que criou alguns parâmetros básicos para que ocorresse. Claro que são caminhos a seguir, porém não há determinação de que não possam ser relativizados como foi no caso mencionado, ante a ausência de parentesco da gestante com os doadores ( “A essência da virtude se encontra na moderação entre os extremos de cada paixão, o caminho do meio”).

            Os avanços biotecnológicos permitem a realização deste desejo, a felicidade pode ser alcançada através da ciência. O registro civil em nome dos pais doadores pode ser realizado sem exame de DNA ou processo de investigação de paternidade, pois “propõe uma sociedade na qual as instituições tentam harmonizar estes sentimentos básicos dos seres humanos de forma a produzir o melhor resultado possível para que o bem individual e o bem coletivo sejam harmônicos”. Não se verifica a geração de instabilidade na sociedade ao se autorizar que os doadores, munidos de atestados e declarações da veracidade dos fatos, registrem diretamente seu filho, pois além do próprio bebê ter o direito ao seu registro civil em nome dos pais doadores, em razão do seu melhor interesse (ser criado por aqueles que lhe desejavam intensamente), há permissão social para tal concepção, inclusive regulamentada por resolução médica.

O direito ao registro é consectário lógico da cidadania. Exigir-se processo judicial e exame de DNA e vedando-se o imediato registro, coloca-se em questão a realização de atividade médica de fertilização trazendo constrangimento aos contratantes – tanto à gestante, quanto aos doadores (“as paixões humanas devem ser orientadas pelo caminho da ponderação até a maturidade racional do equilíbrio”).

Desta forma, conclui-se que ao indicar o caminho do meio encontrou-se a maturidade racional do equilíbrio. A possibilidade científica que permite às pessoas terem acesso a conquistas ainda não regulamentadas por lei deve ser amparada em sentido amplo com a concessão de todos os direitos civis decorrentes daquele ato.  O planejamento familiar é fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, conforme art. 226, § 7º da Constituição Federal, cabendo ao Estado propiciar os recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito. Complementar a essa obrigação do Estado, encontra-se o direito a tornar público, através do registro imediato, o nascimento da criança ocorrido em razão de progresso científico.

 

 

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