segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Palestra Cuidados Paliativos


Nova Resolução de Reprodução Assistida

Mulheres com mais de 50 anos poderão utilizar 
técnicas de reprodução assistida desde que assumam
 riscos juntamente com o médico


















As mulheres com mais de 50 anos que queiram engravidar usando as técnicas de reprodução 
assistida não mais precisarão do aval do sistema conselhal, desde que, junto com seu médico, 
assumam os riscos de uma gravidez tardia. Esta é uma das novidades da Resolução nº 2.121/15, 
aprovada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que atualizou normativa anterior, aprovada 
em 2013. “Pela saúde da mulher e da criança, continuamos defendendo o limite máximo
 de 50 anos, mas caso ela, após esclarecimento de seu médico, decida pela gravidez 
e assuma os riscos junto com ele, entendemos ser possível o uso das técnicas de 
reprodução”, esclarece o tesoureiro e coordenador da Câmara Técnica de Ginecologia
 e Obstetrícia do CFM, José Hiran Gallo.

A Resolução 2.121/15 também clarificou pontos no que diz respeito ao uso da Reprodução 
Assistida por casais homoafetivos femininos, permitindo a gestação compartilhada. Ou seja, 
uma mulher pode transferir o embrião gerado a partir da fertilização de um óvulo de sua 
parceira. “Alguns casais e médicos tinham dúvidas quanto a esse tipo de procedimento, 
uma vez que não ficava claro se era doação. Agora, com a nova redação, o CFM afirma 
claramente esta possibilidade entre mulheres”, comenta o especialista em reprodução 
assistida e diretor da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), Adelino Amaral.

Outro ponto aperfeiçoado diz respeito à doação de gametas. Pela norma, os homens podem
 fazer o processo sem restrições, salvo a idade limite, que é de 50 anos. Já para as mulheres, 
a doação fica limitada àquelas que têm até 35 anos e estão, no período do ato, em fase de 
tratamento de reprodução assistida. 

Neste tipo de situação, a paciente doadora pode receber ajuda no custeio do tratamento 
(ou de parte dele) por outra mulher, que também esteja passando o mesmo processo, mas 
não tenha óvulos em condições de serem fertilizados. Assim, a paciente receptora ao
 contribuir com o pagamento de procedimentos e produtos (anestesia, medicamentos, etc) terá 
direito a uma parte dos óvulos  gerados pela doadora. O acordo mediado pela clínica de 
fertilização assegura o anonimato de ambas e não pode, de forma alguma, envolver trocas 
pecuniárias ou vantagens outras que não as relacionadas ao processo de fertilização.

 “Agora, está claro que só podem ser doados gametas masculinos (espermatozoides) e que 
a doação compartilhada de oócitos deve ocorrer quando doadora e receptora têm 
problemas de reprodução. Cortamos o comércio”, defende a representante da Federação 
Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) no Núcleo de Reprodução Assistida do 
CFM, Hitomi Nakagawa.
  
Outro ponto aperfeiçoado diz respeito à doação de gametas, restringindo para os do sexo 
masculino. “Agora, está claro que só podem ser doados gametas masculinos (espermatozoides) 
e que a doação compartilhada de oócitos deve ocorrer quando doadora e receptora têm 
problemas de reprodução. Cortamos o comércio”, defende a representante da Federação 
Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) no Núcleo de Reprodução Assistida do 
CFM, Hitomi Nakagawa.

O novo texto também fez algumas alterações no capítulo que trata do diagnóstico genético 
pré-implantação de embriões. “Graças à evolução da medicina, pais que têm alguma 
incompatibilidade genética podem fazer a seleção, tanto para evitar que outro filho nasça
 com graves problemas de saúde, como para permitir que graças às células-tronco do 
cordão umbilical do filho que vai nascer seja viabilizado o tratamento do irmão doente 
já nascido”, explica o geneticista Salmo Raskin. Neste último caso, as técnicas de 
diagnóstico genético pré-implantação de embriões utilizam a tipagem do sistema HLA, 
que é o ponto do material genético definidor da compatibilidade de órgãos entre as pessoas.

Histórico – A primeira resolução do CFM que trouxe normas éticas para a utilização das 
técnicas de Reprodução Assistida foi a de número 1.358/92, que proibia o uso de técnicas 
com o objetivo de selecionar o sexo ou qualquer característica biológica do futuro filho e a 
doação gratuita de material genético. Não estabelecia limites de idade e definia a transferência 
de até quatro embriões. Previa a doação gratuita e temporária de útero até a segunda geração.

A Resolução 1.958/92 foi substituída pela de número 1.957/10, que manteve parte das regras 
anteriores e acrescentou uma gradação para a transferência de embriões, começando com dois
 para mulheres com até 35 anos, chegando até quatro para àquelas com mais de 40 anos. 
Afirmava que toda pessoa podia ser receptora das técnicas de reprodução assistida e permitia 
a fertilização post mortem, desde que tivesse havido a autorização do falecido (a).

Novos acréscimos foram realizados na Resolução 2.023/13, que estabeleceu o limite de
 idade de 50 anos, ampliou a possibilidade do útero substituição para parentes até quatro 
grau do pai ou da mãe (situações excepcionais poderiam passar pelo crivo do Conselho Regional 
de Medicina), permitiu o uso da técnica para relacionamentos homoafetivos, trazia regras para 
o registro civil da criança pelos pais genéticos, estabelecia o limite para doação de gametas 
(35 anos para mulher e 50 para homens), permitia a doação compartilhada de óvulos e o uso 
da tipagem genética como forma de evitar doenças hereditárias ou para beneficiar filho do 
casal que poderia ser beneficiado pelo transplante de células-tronco.

“Cada resolução reflete os avanços obtidos na área de Reprodução Assistida e a evolução da
 própria sociedade. É natural que o CFM amplie o alcance das normas e faça algumas alterações, 
dentro do objetivo de garantir a segurança da paciente e oferecer um escopo ético para o trabalho 
do médico”, afirma José Hiran da Silva Gallo. O Conselho Federal de Medicina continuará 
acompanhando os avanços científicos e as mudanças sociais e, caso sinta necessidade, 
poderá a editar nova resolução para regulamentar a reprodução assistida.

As atualizações da norma contam a participação de entidades como a Febrasgo, a Sociedade 
Brasileira de Reprodução Humana (SBRA), a Sociedade Brasileira de Genética Médica, 
além de profissionais com atuação reconhecida na área. “A reprodução assistida é um 
procedimento complexo e é importante que haja essa colaboração”, defende o geneticista Salmo
 Raskin.
  
Fertilização in vitro segue em alta no Brasil


Apesar de regulamentar apenas a atuação do médico, as resoluções do CFM sobre a reprodução 
assistida são as únicas normas no Brasil a tratar diretamente do assunto, já que o 
Congresso Nacional ainda não produziu nenhuma lei sobre o assunto. O procedimento, no 
entanto, é cada vez mais comum no Brasil. Segundo o 8º Relatório do Sistema Nacional de
 Produção de Embriões (SisEmbrio), elaborado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária 
(Anvisa), existem no Brasil 106 clínicas de reprodução assistida, que realizaram em 2014 
mais de 60 mil transferências de embriões em pacientes submetidas a técnicas de fertilização in vitro.

Ao longo do ano de 2014, foram registrados 27.871 ciclos de fertilização. Em 2013, foram
 mais de 52 mil transferências de embriões e realizados mais de 24 mil ciclos de fertilização.
 Já no ano passado foram congelados 47.812 embriões nas clínicas de reprodução assistida. 
Deste total, 68% estão em bancos da Região Sudeste; 12% na Região Sul; 12% no Nordeste 
e 8% no Centro-Oeste. Na Região Norte, o número de congelamentos não chegou a 1%. 
Foram doados para pesquisas com células-tronco, 1.110 embriões.

O relatório da Anvisa revela, também, que a taxa média de clivagem (como é chamada a divisão 
que dá origem ao embrião) nas clínicas brasileiras foi de 95%, maior que a média de 2013, de 91%. 
Os valores são compatíveis com os preconizados em literatura, que é de acima de 80%. Já a taxa 
média de fertilização manteve-se em 74%. O percentual é maior que os valores sugeridos em literatura 
internacional, que variam entre 65% a 75%.

Nem os planos de saúde, nem o Sistema Único de Saúde (SUS) são obrigados a custear técnicas 
de reprodução. Contudo, alguns casais já têm conseguido, por meio de decisões judiciais, que os
 planos de saúde arquem com todo o tratamento, inclusive até a paciente engravidar. Quanto ao SUS, 
tramitam projetos de lei no Congresso Nacional que objetivam garantir esta cobertura. Hoje, apenas 
algumas unidades oferecem o tratamento. O Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), o Hospital
 da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e o Hospital das Clinicas de Belo Horizonte, são 
alguns deles.


O que mudou com a Resolução 2.121/15

Resolução 2.013/13
Resolução 2.121/15
Idade máxima para o recebimento de óvulos
Até 50 anos
Após 50 anos, condicionada à fundamentação técnica e científica e desde que médico e pacientes assumam os riscos em termo de consentimento livre e esclarecido.
Idade máxima para a doação de espermatozoides
Até 50 anos
Até 50 anos
Idade máxima para a doação de óvulos
Até 35 anos
Até 35 anos
Número de embriões implantados
Mulheres com até 35 anos – até dois embriões; de 36 a 39 anos - até três; de 40 a 50 anos- quatro embriões (limite máximo).
Regras foram mantidas
Doação de gametas
Não determinava se era feminino ou masculino
Permite apenas a doação de gametas masculinos e proíbe a doação pelas mulheres, salvo no caso detalhado no item doação compartilhada de óvulos.
Doação compartilhada de óvulos
A mulher de até 35 anos em processo de processo de reprodução assistida pode doar óvulos para uma mulher que nos os produz mais, em troca de custeio de parte do tratamento. A doadora tem preferência sobre o material biológico produzido.
Regras foram mantidas
Reprodução assistida feita por homossexuais e solteiros
Homossexuais e solteiros são citados na resolução como elegíveis para o tratamento. O uso da reprodução assistida passa a ser permitido legalmente.
Além das garantias anteriores, foi clarificada a situação das homossexuais femininas, permitindo a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina em que não exista infertilidade.
Descarte de embriões
A clínica deverá manter os embriões congelados por 5 anos. Depois disso, podem descartar ou doar para estudos. A decisão sobre o destino dos embriões deve ser expressa por escrito pelos pacientes no momento da criopreservação.
Manteve o prazo de 5 anos para o congelamento dos embriões antes do descarte e a necessidade de os pacientes expressarem por escrito o que deve ser feito depois desta data. Esclarece que a utilização dos embriões em pesquisas de células-tronco não é obrigatória.
Seleção genética para evitar doenças hereditárias
Permite a seleção genética de embriões com o intuito de evitar que o bebê nasça com doenças hereditárias já apresentadas por algum filho do casal. Também passa a permitir o transplante de células-tronco desse bebê para o irmão mais velho. Veta a escolha do sexo do bebê em laboratório, com exceção dos casos de doenças ligadas ao sexo.
Manteve os critérios anteriores. Esclarece que nos casos de seleções de embriões submetidos a diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças, é possível a doação para pesquisa, ou o descarte.
Útero de substituição
As doadoras temporárias do útero podem pertencer à família de um dos parceiros e ter até o grau de parentesco: mãe (1º grau), irmã (2º grau), tia (3º grau) ou prima (4º grau)
Manteve as regras quanto ao grau de parentesco. Substituiu o termo “contrato” por “termo de compromisso” entre os pacientes e a doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação.
Fertilização post mortem
Permite, desde que haja autorização prévia do falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado.
Regras foram mantidas.


segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Cláusula que veda tratamento domiciliar recomendado por médico é abusiva

O tratamento domiciliar (home care), quando constitui desdobramento da internação hospitalar, deve ser prestado de forma completa e por tempo integral. Esse foi o entendimento da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar recurso especial interposto pela Amil Assistência Médica Internacional S.A.
O caso envolveu a recomendação médica de tratamento domiciliar para paciente que necessita acompanhamento constante, pois sofre de mal de Alzheimer, hipertensão arterial, insuficiência cardíaca e doença pulmonar obstrutiva crônica, além de doenças agravadas por sua incapacidade total de locomoção.
A recomendação foi de acompanhamento home care em regime de 24 horas, mas a Amil, além de fornecer o tratamento domiciliar de forma incompleta, suspendeu o serviço depois de um mês, o que resultou em complicações na saúde da paciente.
O caso foi parar na Justiça. A sentença, confirmada no acórdão de apelação, entendeu pela ilegalidade da suspensão e do serviço prestado de forma deficiente. Foi determinada a continuidade da internação domiciliar e estipulado o pagamento de R$ 5 mil a título de indenização por danos morais.
Liberalidade
No STJ, a empresa alegou que o plano contratado não estabelecia obrigação de assistência médica domiciliar. Afirmou ainda que a assistência foi prestada em conjunto com a família e por mera liberalidade.
O relator, ministro Villas Bôas Cueva, reconheceu que o tratamento médico em domicílio não está no rol de procedimentos mínimos ou obrigatórios que devem ser oferecidos pelos planos de saúde, mas, segundo ele, nos casos em que a internação domiciliar é recomendada em substituição à internação hospitalar, esse direito não pode ser negado de forma automática.
“Qualquer cláusula contratual ou ato da operadora de plano de saúde que importe em absoluta vedação da internação domiciliar como alternativa de substituição à internação hospitalar será abusivo, visto que se revela incompatível com a equidade e a boa-fé, colocando o usuário (consumidor) em situação de desvantagem exagerada” – disse o ministro, citando o artigo 51, IV, da Lei 8.078/90.
Suspensão descabida
Villas Bôas Cueva observou, entretanto, que não se trata de um benefício a ser concedido simplesmente para a comodidade do paciente ou de seus familiares, pois há necessidade de indicação médica. Também se exigem condições estruturais da residência e o não comprometimento do equilíbrio atuarial do plano de saúde.
“Quando for inviável a substituição da internação hospitalar pela internação domiciliar apenas por questões financeiras, a operadora deve sempre comprovar a recusa com dados concretos e dar oportunidade ao usuário de complementar o valor de tabela”, explicou o relator.
No caso apreciado, entretanto, Villas Bôas Cueva definiu como “descabida” a suspensão do tratamento sem prévia aprovação médica e sem ao menos ter sido disponibilizada à paciente a reinternação em hospital.
“Essa atitude ilícita da operadora gerou danos morais, pois submeteu a usuária em condições precárias de saúde à situação de grande aflição psicológica e tormento interior, que ultrapassa o mero dissabor, bem como acabou por agravar suas patologias”, concluiu o relator.

sábado, 19 de setembro de 2015

Tratamento médico e distribuiçao de recursos

O paciente de R$ 800 mil

A história do rapaz que recebe do SUS o tratamento mais caro do mundo revela um dos maiores desafios do Brasil: resolver o conflito entre o direito individual e o direito coletivo à saúde

CRISTIANE SEGATTO



capitulo 1
Como Rafael Favaro ganhou uma briga jurídica e um tratamento de primeiro mundo
Quem acompanha o tratamento médico de Rafael Notarangeli Fávaro – um rapaz de 29 anos formado em gestão ambiental – se convence de que o sistema público de saúde no Brasil é um dos melhores do mundo. Sábado sim, sábado não, ele entra sozinho no próprio carro, um Meriva financiado, e dirige os 84 quilômetros que separam São José dos Campos de São Paulo. Sente-se tão bem-disposto que nem sequer precisa de acompanhante. É atendido com presteza e simpatia quando chega ao Hospital Sírio-Libanês, a instituição de elite famosa por cuidar da saúde das celebridades e dos figurões da República. No 2o andar, Rafael é instalado numa confortável poltrona de couro para receber, numa veia do braço direito, uma dose do tratamento mais caro do mundo. De acordo com um ranking elaborado pela revista americana Forbes, nenhum tratamento clínico é tão dispendioso quanto usar o medicamento Soliris (eculizumab) para amenizar as complicações de uma forma raríssima de anemia, denominada hemoglobinúria paroxística noturna (HPN), causadora de vários problemas que podem levar à morte. O Soliris ainda não é vendido no Brasil. Importado, vem em pequenos frascos. 
O PACIENTE Rafael Fávaro durante tratamento no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Para levar uma vida normal, ele tem  de tomar o remédio  para sempre  (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Cada vidrinho de 30 mililitros custa mais de R$ 11 mil. Em menos de meia hora, a corrente sanguínea de Rafael absorve o conteúdo de três frascos, diluído numa bolsa de soro. São R$ 35 mil a cada 15 dias. Cerca de R$ 70 mil por mês. Mais de R$ 800 mil por ano.
O remédio não cura, mas melhora a qualidade de vida. Se Rafael quiser continuar levando uma rotina normal, precisará receber o Soliris para sempre. Vida normal, no caso dele, significa acordar cedo e trabalhar em horário comercial numa empresa que faz geoprocessamento de imagens de satélite. No final do dia, voltar para casa a tempo de jantar com a mulher, Fabiana, no pequeno apartamento de São José dos Campos emprestado ao casal pelos pais dele. Rafael não precisa se preocupar com o aluguel. Nem com as despesas de seu tratamento. Em cinco anos, os gastos (apenas com o medicamento) ultrapassarão os R$ 4 milhões. Quem paga é o SUS, o Sistema Único de Saúde. Religiosamente. Sem atraso. Como ele conseguiu isso tudo? Como milhares de outros doentes em todo o Brasil, Rafael entrou na Justiça com uma ação contra o governo estadual.
Qualquer um que estivesse na pele dele provavelmente faria o mesmo. Aos 23 anos, recém-casado, ele sofreu uma trombose (formação de coágulos nos vasos sanguíneos que pode provocar infarto, AVC, insuficiência renal ou embolia pulmonar). Poderia ter morrido. Aquele foi apenas o evento mais grave de uma lista de problemas de saúde que o impossibilitavam de trabalhar e viver como um jovem normal. Enfrentou constantes e fortes dores abdominais, uma cirurgia para extrair 21 centímetros do intestino que haviam necrosado, anemia, sucessivas transfusões de sangue. Todo o sofrimento era decorrente da já citada HPN. De uma forma simplificada, pode-se dizer que a HPN é uma anemia crônica causada pela decomposição excessivamente rápida dos glóbulos vermelhos.
Quando recebeu o diagnóstico, Rafael descobriu que pacientes como ele podem ser submetidos a um transplante de medula. É uma alternativa muito mais barata (custa cerca de R$ 50 mil ao SUS) e a única capaz de curar. Apesar disso, nem sequer procurou um doador. Como o tratamento mais caro do mundo estava ao alcance das mãos, considerou que valia a pena optar pela nova droga e evitar os riscos da solução tradicional. O transplante cura metade das pessoas que têm HPN. Mas 30% podem morrer ou ter alguma complicação grave. O Soliris não cura, mas reduz a destruição dos glóbulos vermelhos e os sintomas da doença. Ainda assim, não elimina totalmente o risco de trombose. É por isso que Rafael também precisa tomar anticoagulante para sempre.
Se tivesse de pagar o tratamento do próprio bolso, importar o remédio estaria fora de cogitação. Faria o transplante pelo SUS e teria fé na cura. Várias pessoas, no entanto, o incentivaram a tentar conseguir o Soliris pela via judicial. Um médico de São José dos Campos o encaminhou à capital para ser atendido de graça pelo hematologista Celso Arrais Rodrigues, do Sírio-Libanês. Rodrigues explicou como o Soliris funcionava e indicou uma advogada que entrara com ações contra a Secretaria Estadual de Saúde em nome de outros pacientes. Rodrigues afirma que decidiu cuidar de Rafael e de outros pacientes de HPN sem cobrar nada, por mero interesse científico. Graças a Rodrigues, eles foram incluídos no programa de filantropia do Sírio-Libanês e, por isso, o tratamento inteiro é feito no hospital cinco estrelas. Para o Sírio, o atendimento de doentes como Rafael é vantajoso, porque garante isenção de alguns impostos federais. No final das contas, quem paga o tratamento do rapaz num dos melhores hospitais do Brasil é o contribuinte.
O hematologista Rodrigues diz não ter vínculos com a fabricante do remédio, a americana Alexion. Mas é pago por ela para dar aulas sobre HPN. “A empresa junta um grupo de médicos e me paga para falar sobre a doença e o tratamento”, afirma. Rodrigues indicou a Rafael a advogada Fernanda Tavares Gimenez. Ela é remunerada pela Associação Brasileira de HPN, uma ONG de pacientes que recebe apoio financeiro da Alexion. Fernanda diz cobrar cerca de R$ 5 mil de cada cliente. “No caso do Soliris, não tenho causa perdida”, afirma.
O GESTOR Giovanni Cerri, secretário estadual de Saúde de São Paulo. “A judicialização  da saúde é uma injustiça.  Os mais ricos desviam recursos dos mais pobres”, diz  (Foto: Camila Fontana/ÉPOCA)
A estratégia é insistir no argumento da urgência e sustentar que, sem o remédio, a morte do paciente é iminente. “Sou uma advogada que sai da cadeira. Marco audiências com juízes e desembargadores e explico o caso do paciente pessoalmente.” Alguns magistrados se sensibilizam. Outros, não. São minoria. No ano passado, o governo estadual foi obrigado a fornecer o Soliris a 34 pacientes. Fernanda foi a advogada de 28 deles.
“Isso virou uma grande indústria. Alguns médicos recebem estímulos do fabricante(viagens, benefícios) para prescrever medicamentos de alto custo. As empresas financiam as ONGs de pacientes e a isso tudo se associam os advogados”, diz o secretário de Saúde do Estado de São Paulo, Giovanni Guido Cerri. O ponto de vista de quem enfrenta uma doença grave é outro. “Todos os brasileiros deveriam ter o atendimento que estou recebendo. Não sou melhor que ninguém, mas sinceramente não sei qual é o critério do governo para decidir quem deve viver e quem deve morrer”, diz Rafael.




Capítulo 2 
O que o caso de Rafael ensina sobre a saúde pública brasileira 


Ninguém quer a morte de Rafael. Nem de qualquer outro doente que recorre à Justiça para conseguir outros medicamentos caríssimos.
Mas, quando são obrigados a fornecer remédios caros da noite para o dia (ao preço que o fabricante se dispõe a vender), os gestores do orçamento público da saúde tiram o dinheiro de outro lugar. Com isso, milhares (ou milhões) de cidadãos perdem. A verba destinada à compra de um frasco de Soliris seria suficiente para garantir milhares de doses de anti-hipertensivos e de outros medicamentos baratos que atingem a maior parte da população. Sem interrupções. É preciso reconhecer que priorizar o direito individual em detrimento do direito coletivo tem consequências sobre a saúde pública.
A JUSTIÇA Sessão do Supremo Tribunal Federal. Em 2009, o STF realizou audiências públicas para discutir  a pertinência de ações contra  o SUS. A controvérsia persiste  (Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF)
Se os pacientes ficarem sem esses medicamentos, o resultado pode ser uma trombose, um AVC, um infarto – todas as ameaças que o Estado procura evitar ao fornecê-los a Rafael. Para salvar uma vida, pode abrir mão de muitas outras. “Os recursos para cumprir as demandas judiciais saem do orçamento público para ações prioritárias, como a prevenção básica de problemas de saúde entre os mais pobres”, diz André Medici, economista sênior do Banco Mundial, em Washington. “As demandas judiciais aumentam a iniquidade do sistema de saúde e diminuem a qualidade de vida dos que detêm menos recursos.”
O maior desafio dos administradores públicos é preservar o direito do doente ao melhor tratamento sem que o Estado se torne perdulário. É preciso lembrar que a saúde no Brasil é subfinanciada. O país aplica em saúde cerca de 8,5% do PIB (considerando os gastos públicos e privados). É pouco. A França investe 11%. O México gasta menos que o Brasil (5,9%), mas tem taxas de mortalidade infantil e materna mais baixas, dois parâmetros importantes para avaliar a qualidade da assistência à saúde prestada por um país. O Brasil gasta pouco e gasta mal. Diante das verbas limitadas, um bom gestor é aquele que evita o desperdício de recursos ou o investimento em tratamentos inadequados. A pressão crescente das ordens judiciais impede que isso aconteça.
Em 2005, o Ministério da Saúde foi citado em 387 ações. Gastou R$ 2,4 milhões para atender essas três centenas de pacientes. Em 2011, foram 7.200 ações. A conta disparou para R$ 243 milhões. As ações contra o governo federal são uma pequena parte do problema. Como todas as esferas do Poder Público (federação, Estados e municípios) são corresponsáveis pelo financiamento da saúde, a maioria dos pacientes processa só o secretário municipal, só o estadual ou ambos.
Segundo os advogados, é mais fácil ganhar as ações quando os citados são os gestores das esferas inferiores. O Estado de São Paulo foi o que mais gastou com essas ações em 2010. As despesas chegaram a R$ 700 milhões para atender 25 mil cidadãos. Isso é quase metade do orçamento do governo estadual para a distribuição regular de medicamentos (R$ 1,5 bilhão) a toda a população paulista. Os gastos com as ações judiciais crescem R$ 200 milhões por ano. “Daria para construir um hospital novo por mês”, diz o secretário estadual Giovanni Guido Cerri.
As ações são baseadas no Artigo 196 da Constituição, segundo o qual a saúde é direito de todos e dever do Estado. Nem todos os juízes, porém, interpretam esse artigo como uma obrigação explícita de que o Poder Público deve prover ao paciente todo e qualquer tratamento solicitado. Muitos, no entanto, dão sentenças favoráveis ao doente. Quando isso acontece, o gestor citado é obrigado a fornecer o medicamento rapidamente. Se ignorar a determinação, pode ir para a cadeia.
O Brasil dispõe de uma relação de remédios regularmente distribuídos no SUS. Ela inclui as drogas necessárias para tratar as doenças que afetam a maioria da população. Além dela, existe uma lista de medicamentos excepcionais – em geral, de alto custo. São drogas novas, criadas para tratar doenças raras ou cada vez mais comuns, como o câncer.
As associações de pacientes reclamam que o governo demora a incluir nas listas drogas caras, mas de benefício inegável. Por isso, defendem ações judiciais como uma forma legítima de pressão. “As ações estão crescendo de forma desesperadora para os governos, mas elas os obrigam a arrumar verbas. Se eles arranjam dinheiro para outras coisas, por que não podem conseguir para remédios?”, afirma Fernanda Tavares Gimenez, advogada de Rafael.
Não há dúvida de que alguns pedidos de pacientes são justos e fundamentados. É verdade também que o SUS deveria ser mais ágil na atualização das listas. Muitos juízes, porém, não têm condição técnica de avaliar se um medicamento importado é melhor que o tratamento existente. Nem se sua eficácia foi comprovada. Nem se é capaz de provocar danos irreversíveis ao doente, além de rombos orçamentários.
A expressão “cada cabeça uma setença” se aplica perfeitamente ao caso dos pedidos de medicamentos. O entendimento sobre o assunto varia entre os magistrados. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma série de audiências públicas sobre a questão – e a controvérsia persiste. No Rio Grande do Norte, o juiz Airton Pinheiro negou o pedido de uma paciente que pretendia receber o Soliris. Argumentou que o SUS já oferece um tratamento para a doença (o transplante). E sustentou que o fornecimento desse remédio provocaria um abalo financeiro no orçamento da saúde do Estado, prejudicando toda a coletividade que depende do SUS.
No Ceará, o entendimento foi outro. O Estado foi obrigado a fornecer o Soliris a quatro pacientes. Por enquanto, o governo comprou a droga para dois deles. “O dinheiro necessário para atender os quatro corresponde a 67% do valor repassado pelo governo estadual para a compra de medicamentos básicos do município de Fortaleza inteiro”, afirma Einstein Nascimento, supervisor do departamento que controla os medicamentos de alto custo da Secretaria da Saúde do Ceará. “Esse caso ilustra muito bem o impacto dessas ações sobre o orçamento da saúde pública.”
Nos pequenos municípios, as decisões podem ser arrasadoras. É o caso de Buritama, uma cidade de 15 mil habitantes no interior de São Paulo. O orçamento do município para fornecimento de remédios é de R$ 650 mil por ano. No ano passado, mais da metade foi destinada apenas ao cumprimento de demandas judiciais. Um único paciente pediu na Justiça – e ganhou – uma cirurgia de implante de eletrodos para amenizar o mal de Parkinson. Preço: R$ 108 mil. “Todos os pacientes que entraram na Justiça ganharam a causa. E o Judiciário nem mandou o Estado compartilhar os gastos conosco”, diz Nancy Ferreira da Silva Cunha, secretária de Saúde de Buritama. “Essas ações estão acabando com os pequenos municípios.”
Cada nova ação que chega à Justiça torna explícito o conflito entre o direito individual e o direito coletivo à saúde. Os que administram orçamentos públicos parecem ter a resposta na ponta da língua. “A saúde pública tem de priorizar o interesse coletivo. Os interesses individuais devem ser bancados pelas famílias. É como o transporte público. O transporte é o mesmo para todos. Quem quiser andar de carro importado tem de pagar esse luxo”, diz Cerri, secretário estadual de São Paulo.
Além dos pacientes, quem mais se beneficia da judicialização são as empresas que fabricam os medicamentos. ÉPOCA procurou a Alexion, empresa americana que fabrica o Soliris. Nenhum representante aceitou dar entrevista. Nem no Brasil nem nos Estados Unidos. Em nota preparada pela assessoria de imprensa, a empresa afirmou não comentar suas atividades no Brasil nem o número de brasileiros que atualmente recebem o medicamento.
As ordens judiciais já não estão restritas apenas ao fornecimento de remédios. Além dos gastos com drogas que não estavam previstos no planejamento, em 2011 os juízes obrigaram o governo paulista a fornecer outros itens que consumiram mais R$ 80 milhões. Não são medicamentos, mas os juízes aceitaram a argumentação de que seriam indispensáveis à saúde e, portanto, deveriam ser fornecidos pelo Poder Público. Parece lista de supermercado: sabão de coco em pó, escova de dente, antisséptico bucal, xampu anticaspa, pilhas, copos descartáveis, chupetas, papel toalha, creme fixador de dentaduras, fraldas geriátricas, filtros de água, óleo de soja, creme de leite, fubá, amido de milho, farinha láctea...
Os administradores dos recursos da saúde tentam basear suas decisões em avaliações técnicas do custo e do benefício dos medicamentos. Os orçamentos para comprar remédios estão cada vez mais ameaçados pelos preços altíssimos das novas drogas. Ele é justificado, segundo a indústria farmacêutica, pelo investimento de longos anos em pesquisa refinada e pelo universo relativamente reduzido de consumidores, no caso das doenças raras. Grande parte dos custos nesse setor também está relacionada a investimentos vultosos de marketing para promover as novas marcas.
Os preços elevados combinados ao aumento da parcela da população que sofre de doenças crônicas ameaçam o atendimento à saúde até mesmo nas nações mais ricas. “Nos países desenvolvidos, o tratamento do câncer transformou-se numa cultura de excessos”, escreveu o professor Richard Sullivan numa edição da revista Lancet Oncology, publicada em setembro de 2011. “Diagnosticamos demais, tratamos demais e prometemos demais.” Lá, é cada vez mais frequente a pergunta cruel: é justo que o Estado gaste centenas de milhares de dólares para prolongar a vida de um doente de câncer em apenas dois meses?

Capítulo 3 
E se Rafael fosse inglês? 
O REMÉDIO O Solíris, empregado em casos  como o de Rafael Fávaro. O remédio evita um transplante de medula  – mas sua distribuição abala  o orçamento público de saúde   (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
No caso de doenças raras como a de Rafael, cada país age de uma forma. Na Inglaterra, o governo garante o Soliris apenas aos pacientes que tenham recebido pelo menos quatro transfusões de sangue no último ano. Na Escócia, o governo não paga.
Nos Estados Unidos, alguns planos de saúde oferecem o remédio. A maioria não o garante. O Medicare, o sistema público de saúde para maiores de 65 anos, paga a droga apenas em raras situações. No Canadá, que dispõe de um sistema público de saúde abrangente, apenas uma província (Quebec) garante o Soliris. No Chile e na Argentina, alguns doentes conseguem o remédio ao processar os planos de saúde ou os governos.
É possível fazer diferente. Com critérios técnicos, gestores públicos poderiam decidir como aplicar o orçamento da melhor forma possível, para garantir a saúde do maior número de cidadãos por mais tempo. Existem ferramentas matemáticas capazes de comparar os benefícios oferecidos por diferentes formas de cuidado médico.
Para cuidar disso, o Reino Unido criou o Instituto Nacional para a Saúde e a Excelência Clínica (Nice). Em atividade desde 1999, o órgão faz esses estudos e realiza reuniões com representantes da sociedade (pacientes, médicos, indústria farmacêutica) para debater o que deve ou não ser oferecido pelo National Health Service (NHS), o sistema que banca 95% de toda a saúde no país. O que o Nice decide oferecer vale para todos. Isso não quer dizer que os britânicos estejam satisfeitos com os serviços prestados. Os protestos são constantes. Em 2008, doentes de câncer renal fizeram uma grande mobilização para exigir que o governo oferecesse uma nova droga. O remédio só foi adotado muitos meses depois – mesmo assim para pacientes que preenchiam critérios predeterminados. Não há exemplo, no mundo, de país que tenha um orçamento tão elástico que seja capaz de satisfazer todos os desejos. Há sempre um grupo exigindo mais drogas para alguma doença. Mas, pelo menos, as regras podem ser transparentes e universais. “Economias emergentes como o Brasil enfrentam desafios semelhantes aos do Reino Unido: enquanto as doenças crônicas avançam e demandam mais e mais recursos, os dois países têm de zelar pela equidade no acesso à saúde”, diz Kalipso Chalkidou, uma das diretoras do Nice. “Temos trocado experiências com o governo brasileiro e esperamos estreitar essa parceria em 2012.”
Por enquanto, o volume das decisões judiciais leva o Ministério da Saúde a pedir suplementações orcamentárias ao Congresso Nacional. “Poderíamos estar pedindo esse dinheiro extra para melhorar a atenção básica à população”, afirma Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. “Em vez disso, pedimos dinheiro para bancar medicamentos que podem ser danosos ao cidadão que solicitou um remédio que não foi aprovado pela Anvisa. Isso é uma irracionalidade.”
Em outubro, a presidente Dilma Rousseff regulamentou a Lei no 12.401, que estabelece parâmetros para a inclusão de medicamentos no sistema público. Ela determina que o SUS não deve fornecer medicamentos, produtos ou procedimentos clínicos e cirúrgicos experimentais sem registro na Anvisa. É possível que a lei sirva de parâmetro técnico aos juízes. Muitos advogados, porém, acreditam que sempre será possível argumentar com base na garantia constitucional e, dessa forma, garantir o fornecimento do remédio pelo sistema público.
Além de destinar mais recursos à saúde, o Brasil precisa definir explicitamente o que vai e o que não vai financiar. A regra deve ser clara e válida para todos – indistintamente. É uma decisão dura e impopular, mas é a melhor forma de amenizar a desigualdade. No cenário atual, Rafael é um felizardo. “Melhorei 100% com esse remédio. Parece que foi instantâneo. Logo na primeira infusão, fiquei cheio de pique.” Nas missas de domingo, ele agradece. Toca guitarra enquanto a mãe canta. Com 1,80 metro e 103 quilos, risonho e falante, não poderia parecer mais saudável.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Juiz autoriza aborto de feto sem os dois rins

Processo nº: 0356331-96.2015.8.19.0001


Sentença 

Trata-se de pedido de autorização para interrupção de gravidez formulado pela gestante STEFANY COSTA PEREIRA DUMAS e seu companheiro RODRIGO GONÇALVES DA SILVA, e o foi com apoio em laudo médico exarado em exame de ultrassonografia a que se submeteu a requerente, o qual atesta tratar-se de feto portador de Agenesia Renal Bilateral (ausência de ambos os rins). Destaque-se que os exames realizados (fls. 23/24 e 30/34), em período gestacional, permitem o diagnóstico de que o gestante feto é portador de Agenesia Renal Bilateral, que se trata de um defeito da gênese do sistema urinário, que leva a adramnia e consequente hipoplasia pulmonar, com etiologia multifatorial na maioria dos casos. Adicionalmente, em parecer médico (fls. 27/28) afirma-se que a condição diagnosticada é incompatível com a vida em 100% dos casos, levando a óbito intra-útero ou no período nenonatal precoce. Ouvido o órgão ministerial (fls. 39), bem como o curador do nascituro (fls. 36/37), opinam ambos os órgãos favoravelmente ao pedido, argumentando o primeiro com a hipótese de atipicidade de conduta, por falta de lesão ao bem jurídico vida, e o segundo, afirmando pela existência de causa excludente da ilicitude. Inicialmente, cumpre salientar que a hipótese não se subsume ao elenco numerus clausus da norma permissiva insculpida no art. 128, do CP, que cuida de causas excludentes da ilicitude, as quais, por definição, uma vez configuradas, prescindiriam de autorização judicial para a concretização do intento abortivo. O pedido aqui deduzido é similar aquele levado a conhecimento do STF quando do julgamento da ADPF 54/DF, que tratou da interpretação conforme a Constituição dos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do CP, com efeito vinculante e eficácia erga omnes, ´reconhecendo-se à gestante portadora de feto anencefálico o direito subjetivo de submeter-se ao procedimento médico adequado´ sem que necessária condição outra que não sua própria vontade para a interrupção da gravidez, resultado, assim, de ato de escolha pessoal da mulher. Tratando-se assim de situação extremamente semelhante àquela citada acima, dado que ambas envolvem condições do feto que tornam impossível a vida extrauterina, é possível aplicar analogicamente o entendimento do Supremo Tribunal Federal ao analisar a referida ação. O laudo médico anexo ao processo define a Agenesia Renal Bilateral (ARE) como sendo: ´O defeito precoce da morfogênese definido pela ausência dos rins, ureteres e bexiga, normalmente associado com a sequência de oligodramnia. Essas são estruturas essenciais para o desenvolvimento pulmonar intrauterino, e sua ausência compromete de maneira letal o concepto. É uma condição congênita, com incidência estimada entre um caso para quatro mil a um para dez mil fetos ocorrendo por causas variadas´. Adicionalmente, o mesmo laudo citado acima afirma as razões da letalidade da Agenesia Renal Bilateral: ´Durante a vida intra-uterina, os rins são responsáveis pela produção do líquido amniótico, a ser eliminado através de trato urinário. O líquido amniótico serve como proteção mecânica ao feto, contra a compreensão natural exercida pela musculatura uterina, e através da sua deglutinação contínua é estimulado o desenvolvimento dos alvéolos pulmonares e do sistema gastrointestinal. A agenesia bilateral de rins leva a redução do volume de líquido amniótico para valores abaixo dos esperados para uma determinada idade gestacional, denominada oligodramnia (ou em casos mais graves, adramnia). Essa redução dá lugar aos eventos descritos como Sequência de Potter, ou Sequência do Oligodrâmnio, compreendida por um aspecto facial característico, defeitos de posicionamento dos membros e, principalmente, hipoplasia pulmonar INCOMPATÍVEL COM A VIDA EM 100% DESSAS GESTAÇÕES.´ (grifo nosso) Dessa forma, como não há o que possa ser feito pelo feto, sua retirada é a única indicação terapêutica para a gestante. É possível perceber que o tema em debate envolve novamente um conflito entre os princípios/direitos da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), pois a aplicação dos dispositivos referentes ao aborto à espécie impõe sofrimento físico e moral à mulher, sujeita aos riscos e à certeza da morte do ser gestado, em situação equiparável à tortura; à vida (art. 5, caput da CF) do feto, posto que este seria ser vivo desde a sua concepção; da legalidade (art. 5º, II, da CF), na medida em que não subsumível, a interrupção da gravidez em caso de Agenesia Renal Bilateral (ARB), nas hipóteses de aborto prevista em lei; e da violência ao direito à saúde (arts. 6º e 196 da CF) pelo comprometimento do bem-estar físico, mental e social da gestante, submetida, na gravidez de fetos portadores de Agenesia Renal Bilateral (ARB), a maiores riscos físicos e agravos psicológicos. Dessa forma, tem-se em jogo os seguintes princípios: vida, que se aplica ao feto, e dignidade, liberdade e saúde da gestante. A definição de dignidade da pessoa humana é indagação que persegue os juristas durante décadas. O jurista Ingo Wolfgang Sarlet acredita que a dignidade é um caráter inerente ao ser humano, não podendo se distanciar dele, sendo uma meta permanente do Estado Democrático de Direito mantê-la. Continua o nobre autor, afirmando que esta está intimamente ligada à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo (o Homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino). Assim, conclui dizendo que dignidade é a: ´(...) qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida´. (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Pag. 73. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.) Visto o exposto, fácil perceber que impor à gestante a manutenção de uma gravidez fadada ao insucesso, dado que a morte do feto é inevitável, afronta claramente a sua dignidade. O sofrimento de saber, a cada dia, que se carrega uma vida inviável é algo imensurável, ainda mais por tratar-se de sua prole. Não está aqui a se dizer que a realização do aborto não será algo traumatizante. Entretanto, a sua rápida realização diminuirá o sofrimento físico e psicológico da mulher, além de adiantar o período de aceitação e recuperação da mesma. Quanto ao direito à vida, não se pode contestar sua proteção na Constituição de 1988. Esta afirma, em seu art. 5, caput que: ´todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.´ (grifo nosso) Ocorre que, sobre o início da vida, a Constituição nada diz. É verdade que diversos são os debates sobre o início da vida, uns afirmam que esta se inicia com a concepção (fusão dos gametas masculino e feminino), outros afirmam que esta se inicia com a nidação (implantação do óvulo fecundado na parede do útero), e há ainda aqueles que afirmam que esta somente se inicia quando do nascimento com vida. Não entrarei aqui na discussão quanto ao início da vida, posto que demais tormentosa e de nada ajuda na solução do que fora requerido. O que aqui se discute é a viabilidade da vida, para que possamos saber se o bem jurídico protegido pelos crimes previstos nos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do CP, sofre alguma lesão. A realidade é que, em se tratando de feto com vida extrauterina inviável, a questão que se coloca é a mesma discutida na ADPF 54 pelo STF. Assim, conforme posto pelo Ministro Joaquim Barbosa: ´Não há possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento em que se interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê.´ Dessa forma, não se pode entender que a interrupção precoce da gravidez vá lesar o bem jurídico protegido (vida), quando na realidade o resultado final do processo de gravidez será o mesmo daquele decorrente da realização do aborto, ou seja, a morte. Impossível imputar lesão à vida do feto à mãe que autoriza o aborto ou ao médico que o realiza, dado que simplesmente anteciparão algo inevitável a curtíssimo prazo, visando proteger na realidade o direito à vida com dignidade da própria mãe. Nesse sentido também entende o Ministro Joaquim Barbosa em seu brilhante voto proferido no bojo da ADPF 54/DF que discutiu a atipicidade do aborto do feto anencefálico: ´A antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia ser considerada crime? Entendo que não, Sr. Presidente. Isso porque, ao proceder à ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extrauterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal. Desse modo, nos casos de malformação fetal que leve à impossibilidade de vida extrauterina, uma interpretação que tipifique a conduta como aborto (art. 124 do Código Penal) estará sendo flagrantemente desproporcional em comparação com a tutela legal da autonomia privada da mulher, consubstanciada na possibilidade de escolha de manter ou de interromper a gravidez, nos casos previstos no Código Penal. Em outras palavras, dizer-se criminosa a conduta abortiva, para a hipótese em tela, leva ao entendimento de que a gestante cujo feto seja portador de anomalia grave e incompatível com a vida extrauterina está obrigada a manter a gestação. Esse entendimento não me parece razoável em comparação com as hipóteses já elencadas na legislação como excludentes de ilicitude de aborto, especialmente porque estas se referem à interrupção da gestação de feto cuja vida extrauterina é plenamente viável.´ Da mesma forma, são os precedentes deste Egrégio TJRJ, que demonstram a firme posição do tribunal na defesa da dignidade humana, em casos semelhantes: HABEAS CORPUS. PEDIDO DE INTERRUPÇAO DE GRAVIDEZ. ADMISSIBILIDADE DO WRIT PARA PROTEGER O DIREITO PRETENDIDO. FETO PORTADOR DE GRAVE ANOMALIA (LIMB-BODY-WALL), IMPOSSÍVEL DE SER CORRIGIDA ATRAVÉS DE INTERVENÇÃO CIRÚRGICA, INVIABILIZANDO QUALQUER CHANCE DE VIDA EXTRAUTERINA. PARECERES MÉDICOS ORIUNDOS DE RENOMADA INSTITUIÇÃO (FIOCRUZ), RECOMENDANDO SOLICITAÇÃO PARA AUTORIZAÇÃO DO ABORTO. PRECEDENTE HISTÓRICO DA ADPF Nº 54, A QUAL, EMBORA RESTRITO ÀS HIPÓTESES DE ANENCEFALIA, TEM SERVIDO DE NORTE EXEGÉTICO PARA O EXAME DE PRETENSÕES COMO A PRESENTE. GRAVIDEZ QUE NÃO PODE SER LEVADA A TERMO PELA GESTANTE, SOB PENA DE MACULAR O PRINCÍPIO CONSITITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, FUNDAMENTO DO NOSSO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO (CF, ART. 1º, III) PROTEÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA SAÚDE FÍSICOEMOCIONAL DA GESTANTE, CUJA PONDERAÇÃO TENDE A IGUALMENTE REPERCUTIR EM FAVOR DA PACIENTE. CONDUTA QUE NÃO PODE SER TIPIFICADA COMO CRIME, DESCARTADO O ELEMENTO SUBJETIVO DE MALFERIR A PROTEÇÃO DA VIDA EXTRA-UTERINA, INVIÁVEL NA ESPÉCIE. CÓDIGO PENAL QUE DEVE SER INTERPRETADO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 2. O Habeas Corpus traduz-se como ação penal não condenatória, destinada a reparar, preventiva ou repressivamente, violência ou coação à liberdade ambulatorial do indivíduo, por ilegalidade ou abuso de poder. 3. É firme a jurisprudência no sentido de admitir, em hipóteses excepcionais, o manejo do Habeas Corpus em busca de autorização para a realização de aborto, quando em cheque a vida da mãe ou inviável a sobrevivência do feto. 4. O STF, através da ADPF nº 54, declarou a possibilidade justificante de interrupção da gravidez de feto anencéfalo, afastando a incidência típica dos arts. 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal. 5. Referido precedente histórico, embora restrito aos casos de anencefalia, tem servido como norte para a adoção de idêntica solução jurídico-penal, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), quando, inviável a vida extra-uterina do feto, a gestante se acha submetida a intenso sofrimento físico-emocional. Interpretação do Código Penal conforme a Constituição da República. 6. Ordem que se concede. (HABEAS CORPUS - 0032267-35.2014.8.19.000. DES. CARLOS EDUARDO ROBOREDO - Julgamento: 15/07/2014 - Terceira Câmara Criminal). Dado o que fora exposto, entendo que a retirada do feto por médico habilitado constitui antecipação terapêutica do parto, e não aborto ao feitio do Código Penal, crime cuja característica é a morte de feto viável para a vida extrauterina causada por procedimento abortivo. Na Agenesia Renal Bilateral (ARB), não há perspectiva de vida extrauterina, o que afasta a caracterização do chamado aborto eugênico, inexistente seleção de fetos, ausente possibilidade de vida. A Desembargadora Giselda Leitão Teixeira do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em brilhante citação no bojo de decisão que chegou ao STF através do HC 84.025-6/RJ, conclui de forma similar. Salientou a desembargadora que: ´A vida é um bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero´. Visto o exposto, está-se diante de solicitação para interrupção de uma gestação, em que a requerente figura como veículo de um ser que, mercê das conclusões de ordem científica, não guarda qualquer viabilidade de sobrevida. Neste passo, não há como deixar de convir com as considerações trazidas a lume pela requerente, através do ilustre Dr. Defensor Público, confirmados pela promoção do membro do Parquet, levam a conclusão de o abortamento aqui discutido é figura atípica por falta de lesão ao bem jurídico vida, em casos que tais, porquanto a sobrevivência extra-uterina é absolutamente inviável. Assim e, bem examinados estes autos, acolho o parecer ministerial, e DEFIRO o pedido inicial, por entender tratar-se de conduta atípica, para AUTORIZAR O PROCEDIMENTO COM VISTAS AO ABORTAMENTO, cuja eleição ficará a exclusivo critério médico. Com o trânsito em julgado, expeça-se o alvará respectivo, certo que o procedimento deverá ser levado a efeito, de preferência, por estabelecimento hospitalar público e, se privado, desde que credenciado pelo Poder Público. Após, dê-se baixa e arquivem-se os autos. P.R.I.