quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Eutanásia e o Novo Código de Ética Médica


Autor:Luiz Flávio Gomes
Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução 1.931, de 17 de setembro de 2009 (texto publicado no DOU de 24.09.09), aprovou o seu novo Código de Ética Médica. Apesar da atualidade da discussão em torno da eutanásia, ortotanásia e morte assistida (suicídio assistido), sobre esses controvertidos temas o novo Código de Ética nada disse. No seu Capítulo I, que cuida dos Princípios Fundamentais, proclamou o seguinte:
"XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará sob sua atenção todos os cuidados apropriados".
No Capítulo V, que trata da relação com pacientes e familiares, ficou estabelecido o seguinte: É vedado ao médico (art. 41) "abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal".
No parágrafo único se lê: "Nos casos de doença incurável e terminal, deve o medido oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal".
O novo Código de Ética Médica, em síntese, nada disse sobre a eutanásia ou ortotanásia ou morte assistida. Mandou evitar a distanásia e ainda recomendou a sedação paliativa.
Para se compreender tudo quanto acabamos de escrever, vamos aos conceitos:
(a) eutanásia (morte boa): é a prática pela qual se abrevia a vida de um enfermo incurável (terminal ou não), a seu pedido e em razão do seu insuportável sofrimento, de maneira controlada e assistida. O ato que causa a morte é praticado por um terceiro;
(b) ortotanásia (ou eutanasia passiva): é a prática pela qual se abrevia a vida de um enfermo incurável (terminal ou não), a seu pedido e em razão do seu insuportável sofrimento, mediante o desligamento de aparelhos ou a cessação de procedimentos terapêuticos ou da medicação ou da alimentação. O ato do desligamento ou da cessação é também praticado por um terceiro;
(c) morte assistida (ou suicídio assistido): é a prática (ou seja, o auxílio) pela qual se abrevia a vida de um enfermo incurável (terminal ou não), a seu pedido e em razão do seu insuportável sofrimento. O ato da morte é gerado pela própria vítima, que é auxiliada por um terceiro;
(d) sedação paliativa: não abrevia a morte da vítima, apenas lhe dá certo conforto, evitando (ao máximo) a dor e o sofrimento;
(e) distanásia: é a continuação (ou prolongamento), por meios artificiais, de um tratamento ou de uma medicação que visa a manter vivo um enfermo incurável (terminal ou não);
(f) mistanásia (ou eutanásia social): é a morte do miserável por falta de assistência (a vítima ou nem sequer ingressa no sistema de saúde ou ingressa e não recebe a assistência devida);
(g) eutanásia eugênica: é a morte da vítima por razões eugênicas, de raça (isso ocorreu durante o nazismo, com o holocausto).
No ano de 2006, por força da Resolução 1.805/06, o Conselho Federal de Medicina, no dia 09 de novembro, chegou a aprovar a suspensão dos tratamentos e procedimentos que prolongam a vida dos doentes terminais, sem chance de cura. O texto aprovado foi interpretado como permissivo da ortotanásia (que gera a abreviação da vida, mediante a suspensão ou cessação dos procedimentos desnecessários ou inúteis). O Ministério Público ingressou com ação civil pública e conseguiu, na Justiça Federal de Primeira Instância, a suspensão em sede de liminar da validade da referida resolução.
Comentando essa decisão, Alexandre Magno F. M. Aguiar (no site Jus Vigilantibus), com todo acerto, escreveu:
A fundamentação da decisão foi o fato de que, na visão do magistrado, a ortotanásia "parece ser um homicídio". Trata-se de um conceito bem frágil para uma decisão liminar, que exige o juízo de verossimilhança (Código de Processo Civil, art. 273). E há argumentos bastante sólidos em sentido contrário.
Nesse ponto, é inevitável lembrarmos de José Saramago, que, em seu livro "As Intermitências da Morte", narra uma situação em que a morte simplesmente "deixou de ocorrer" em determinado país. Todas as pessoas mantinham-se vivas, mesmo os pacientes terminais. Formou-se, rapidamente, uma multidão de moribundos, pessoas que, mesmo contra sua própria vontade, ficavam indefinidamente em um limbo entre a vida e a morte.
A autonomia do indivíduo é desprezada em nome de uma ilusória proteção. De acordo com esse pensamento de matriz esquerdista, nunca seríamos capazes de decidir nada, pois estaríamos sempre a mercê de algum fator externo, principalmente de caráter social ou econômico. Nem o consentimento livre e informado do paciente seria suficiente.
Os regimes totalitários esmeraram-se em cuidar de cada aspecto da vida das pessoas. Tudo deveria ser determinado pelo Estado, inclusive o que sentir e o que pensar. Comumente, o Estado vê-se tentado a considerar as pessoas como menores que requerem proteção, e passa a legislar sobre aspectos mínimos da vida de cada um. Proibir a ortotanásia é uma dessas tentações. Temos que viver a qualquer custo porque o Estado, por razões "quase esotéricas", diz que isso é melhor para nós. Essa ideologia transparece de forma assustadora na petição inicial da ação civil pública, in verbis:
"Devem ser analisados todos os casos, mas caso a caso, de forma que, mesmo de lege ferenda, determinar se uma conduta médica ou dos representantes legais do paciente terminal, consciente ou não, capaz ou não, DEVE OBRIGATORIAMENTE passar pelo crivo dos entes legitimados constitucionalmente para dar a última palavra sobre o fim de uma vida: O Ministério Público e o Judiciário." (grifou-se)
Assim, não importando se o paciente está consciente ou não, é considerado capaz ou incapaz. De qualquer maneira, ele não tem condições de decidir sobre como e quando será o fim de sua vida. Quem tem esse poder é o Estado, na figura do magistrado e do membro do Ministério Público. Seríamos todos absolutamente incapazes, à espera do "Grande Irmão" que viesse dizer o que é melhor para nós?
Desde que os filósofos partidários da secularização (separação entre o Estado e a Igreja, entre o Direito e a religião), destacando-se, dentre eles, Descartes, que sentenciou "Penso, logo existo" (penso por mim e existo para mim, não para Deus), não há mais espaço (para os que não creem em nenhum Deus) para a compreensão da vida senão a partir da visão antropocêntrica do mundo. O homem é o centro do universo. A visão teocêntrica (tudo centrado em Deus) não pode ter a pretensão de dominar todos os seres humanos (porque a todos é permitido ter a crença que melhor lhe convier ). As ideologias totalitaristas tampouco podem pretender acabar com a autonomia humana. Num mundo laico e tolerante já não existe espaço para crenças e convicções fundamentalistas ou totalitaristas. O Direito justo (constitucional e humanista) não pode governar todas as pessoas (os que creem e os que não creem) sob a égide de uma única norma sectarista. O melhor é preponderar a tolerância (e deixar que as pessoas, desde que de modo razoável, ou seja: não arbitrário, cuidem do seu destino, inclusive o final). Nem o Estado nem a religião podem revogar a visão antropocêntrica do mundo que deve tolerar as distintas crenças e convicções, enquanto não prejudiquem terceiros.


Informações bibliográficas:
GOMES, Luiz Flávio Eutanásia e o Novo Código de Ética Médica. Editora Magister - Porto Alegre. Data de inserção: 03/11/2009. Disponível em:www.editoramagister.com/doutrina_ler.php?id=587 . Data de acesso: 04/11/2009.

Retirado do site da ed. magister

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Especialistas defendem interrupção de tratamento em pacientes terminais


Especialistas em diversas áreas defenderam nesta quinta-feira (17), em audiência pública na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), a ortotanásia - suspensão de tratamentos pelo uso de equipamentos e tecnologias que prolonguem a vida de doente em fase terminal. Eles participaram de audiência pública para discutir proposta (PLS 116/00) que modifica o Código Penal estabelecendo como não ilícita a prática da ortotanásia.
De acordo com o projeto, de autoria do senador Gerson Camata (PMDB-ES), o artigo 121 do Código Penal passa a ser acrescido do seguinte dispositivo: não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, de cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.
No entanto, a prática será considerada lícita apenas quando se tratar da suspensão do chamado excesso terapêutico, ou seja, intervenções médicas excessivas, dolorosas e desproporcionais feitas em pacientes terminais, mas continua sendo ilícita a omissão de meios terapêuticos ordinários ou de cuidados normais devidos a um doente, com o fim de causar-lhe a morte.
A matéria, que tramita na CCJ em caráter terminativo, tem como relator o senador Augusto Botelho (PT-RR), autor do requerimento para a realização do debate.
Ressalvas
O presidente da União dos Juristas Católicos e representante da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Paulo Silveira Martins, iniciou sua exposição afirmando que a Igreja Católica não considera atitude ilícita a ortotanásia. Deixou claro, no entanto, que não se pode confundir ortotanásia com eutanásia, que consiste em provocar a morte por ação ou omissão, conforme explicou.
Ele elogiou a iniciativa de Camata, pela elaboração da proposta, mas sugeriu a iniciativa de um projeto de lei específico sobre o assunto.
- Não há propriamente um crime com relação à ortotanásia, mas, dada a complexidade da matéria, seria melhor a elaboração de uma lei específica para disciplinar o assunto - afirmou o representante da CNBB, que entregou aos membros da comissão um esboço de proposta, com base no entendimento da instituição.
O professor de Bioética da Universidade de Brasília, Volnei Garrafa, considerou oportunas as discussões sobre o projeto, enfatizando que há pessoas em estágio terminal sofrendo em hospitais com "o prolongamento desnecessário de uma vida quando já não há mais nenhuma esperança".
- Só precisamos amadurecer a idéia e tomar cuidados para que pessoas inescrupulosas não o usem para o absurdo - alertou Volnei, com relação ao uso da ortotanásia.
Resolução
Já o advogado Aristóteles Dutra de Araújo Atheniense fez um levantamento histórico e jurídico sobre o tema. Explicou que a ortotanásia não é tema novo, mas ganhou destaque a partir da edição da Resolução 1.805/06, do Conselho Federal de Medicina, que prevê que "na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhes os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal".
Em sua exposição, o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Edson de Oliveira Andrade, lembrou que a resolução trouxe uma segurança social aos médicos, mas por pouco tempo, pois está suspensa devido a uma liminar concedida pelo Ministério Público.
- O projeto de Camata proporciona aos médicos um mínimo de segurança, pois estamos trabalhando com insegurança social sem a resolução, embora não tenhamos insegurança profissional. A resolução é um ato de compaixão e de humildade da profissão médica - explicou o presidente do CFM.
No final da discussão, Aristóteles Atheniense ofereceu ajuda jurídica ao presidente do Conselho Federal de Medicina, no sentido de derrubar a liminar que suspendeu a resolução.
Convergência
Para o senador Valter Pereira (PMDB-MS), que presidiu o debate, a audiência cumpriu sua finalidade ao discutir tema tão importante para sociedade e conseguir unanimidade em favor do projeto que permite a ortotanásia.
- Conseguimos encontrar uma convergência entre a fé, a ciência e a ética. Acredito que as exposições feitas aqui elucidaram em muito nossas dúvidas sobre o assunto - afirmou Valter Pereira.
Para Camata, as exposições sobre ortotanásia valeram "como um curso de pós-graduação sobre o tema".
- Podemos avançar agora e talvez colocarmos algumas emendas para levarmos o projeto para a pauta da CCJ já na próxima semana - afirmou Camata.
Já o relator da matéria, senador Augusto Botelho (PT-RR), médico de profissão, afirmou que o projeto deverá trazer mais segurança aos médicos e também aos pacientes, que poderão escolher onde querem morrer, se no hospital ou em casa.
- Temos o direito de escolher aonde queremos morrer. No meu consultório, eu anotava isso no prontuário do paciente - observou o Botelho.
Valéria Castanho/ Agência Senado