sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Ísis Aparecida Conceição fala aos Cadernos de Gênero e Tecnologia

 Entre Vistas e Olhares

Juliane Cintra de Oliveira; E-mail: juliane.cintra@gmail.com ; Universidade de São Paulo, São Paulo,

São Paulo, Brasil.

Cad. Gên. Tecnol., Curitiba, v.12, n. 40, p. 13-24, jul./dez. 2019. 

Em menos de duas décadas de produção científica, Ísis Aparecida Conceição, professora de Direito Internacional Público da UNILAB-Malês (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), trilhou uma trajetória singular e proeminente no campo do direito. O argumento central de sua produção é a promoção da justiça racial e a sedimentação do debate sobre interseccionalidade no Brasil, com vistas a emancipação das mulheres negras, bem como reconhecimento dos saberes produzidos por estas cientistas. 

Ao lado de figuras icônicas, como a professora Kimberlé Williams Crenshaw, defensora dos direitos civis dos Estados Unidos e uma das principais estudiosas da teoria crítica racial, Ísis inaugura um campo do debate no Direito para as feministas negras na América Latina. 

A partir do lugar das mulheres negras, Ísis partilha sua trajetória e a necessidade da elaboração de uma epistemologia feminista própria, à luz dos saberes e experiências de sua comunidade nesta entrevista aos Cadernos de Gênero e Tecnologia. 

CGT – Antes mesmo de olhar de modo mais dedicado para sua trajetória eminente no campo do direito, gostaria de começar esta conversa a partir da perspectiva de sua presença nesse Caderno que se debruça sobre a reflexão de Gênero e Tecnologia. Sendo pesquisadora do campo do direito, você se considera uma cientista? A trajetória de uma mulher negra do campo das ciências humanas contempla esta abordagem de ciência e tecnologia?

 Ísis – A gente sabe que o cientista nada mais é que uma pessoa que se vale do método científico, já o produtor de tecnologia, por sua vez, seria a pessoa que produz ferramentas para aprimorar a qualidade de vida ou dos resultados e achados, após uma pesquisa científica. Sendo assim, você sistematizar um conhecimento ou produzi-lo de modo a alterar uma realidade, o torna um cientista, um produtor de ciência, um produtor de tecnologia. E isso acontece tanto na área de ciências humanas, quanto na área das chamadas ciências duras. 

Interpretarmos que somente a área de ciências STEM1 produz ciência e tecnologia, implicaria quase que na negação de todas as ferramentas que foram construídas por cientistas da área de ciências sociais e humanas para promoção de inclusão de gênero, por exemplo. Não é possível propor o debate sobre gênero e raça ou inclusão subalterna em função dessas identidades e partir de uma premissa que esta reflexão não tem uma natureza científica. Negar cientificidade da área do conhecimento que origina o debate desta revista acaba sendo uma contradição, em vista que existem mulheres negras que são cientistas e também estão nas Humanas, a exemplo da Patrícia Hill Collins, Kimberlé Williams Crenshaw, bell hooks, Yuderkys Espinosa Minõso, Ochy Curiel, Lelia Gonzales, elas estão produzindo tecnologia para a gente conseguir observar, interpretar e transformar a nossa realidade. 

CGT – Nos dedicando a sua trajetória pessoal, tem uma frase sua – ao tratar da conclusão do seu curso na UCLA School of Law2 - na qual você diz: “aqui, apenas encontrei fundamentação teórica para o que aprendi com meus pais e meus pais aprenderam com seus pais”, com base nisso, conte para gente como se constrói a escolha pela atuação no campo do direito? Antes mesmo de adentrar a universidade. 

Ísis – Eu como filha de imigrantes – tanto pela família da minha mãe, do sul da Bahia, como pela do meu pai, oriundo do Recôncavo, que partem para São Paulo, ainda jovens –, cresço em um espaço no qual tenho acesso a uma educação de tradição oral. Aqui na Bahia, as pessoas distinguem isso, há uma educação da sabedoria... afinal, você pode não ter tido acesso à educação formal, mas isso não significa que deixe de possuir um acúmulo de saber, acúmulo este resultante de sua experiência de vida. E foi isto que aprendi na minha casa, exatamente porque meus pais não têm educação formal, mas me educaram de uma forma muito eficaz, a partir dessa atenção eficiente que tiveram em observar o mundo e observar como educar seus filhos para transitar nesse mundo. Evidente que estamos falando da tradição dos Griôs3 , que é também dos meus avós, que tem a ver com sentar e conversar com os mais novos, contar suas histórias, ser uma fonte de informação e saber relevantes. 

A Teoria Crítica Racial resgata isso, tanto que tem a questão de valorizar as narrativas. Porque as narrativas quando reproduzem sistematicamente algumas informações, acabam sendo fontes de análise. Por exemplo, você se lembra daquele vídeo das bonecas? Da boneca branca e da boneca preta? 

CGT – Que são apresentadas para algumas crianças? 

Ísis – Isso! Esta peça é quase uma estratégia de narrativa, apresentada para Suprema Corte dos Estados Unidos, por meio dela constataram que todas as crianças negras tinham uma autoimagem negativa. E esta percepção depreciada de si, está vindo de onde? Da nossa estrutura. Ou seja, você só consegue dizer como está funcionando a estrutura, as instituições, muitas vezes, a partir das narrativas individuais, das histórias dessas pessoas. É este um dos argumentos da Teoria Crítica Racial, mas que eu aprendi dentro de casa. 

Aprendi porque ouvia as histórias que meu pai contava, minha mãe contava, que meus avós contavam, tudo era uma fonte de aprendizado. Não só isso, mas também as conclusões a que eles chegavam, muitas delas não são muito diferentes de alguns achados dos professores da Teoria Crítica Racial que nos auxiliam a pensar como funciona esse sistema de subordinação racial. Por exemplo, nem sempre é o Estado que vai negar direitos em função do seu pertencimento racial, às vezes é o particular e isso não me veio numa teoria de horizontalidade dos direitos fundamentais e do particular negando direitos formados por raça. Isso vem de uma história que o meu avô, meu pai e minha mãe contaram, a partir de suas experiências – prática comum quando falamos de povos africanos. 

O Griô é a pessoa mais respeitada, porque é ele quem vai observar, memorizar e contar a história daquela comunidade, suas estratégias e aprendizados. Na minha família sempre foi valorizado ouvir os mais velhos, prestar atenção em suas histórias, pois elas podem nos ser úteis lá na frente. Acho que era isso que eu sentia no meu tempo de UCLA, eles teorizaram, mas a horizontalidade de direitos fundamentais e violação de direitos fundamentais por particulares pode ser o chefe folgado, o patrão numa relação de trabalho doméstico que te assedia. Já me contaram que isso acontecia, que não era só a polícia, tinha a dimensão do privado. E, sobretudo, eles também me informaram para que ficasse atenta, para que não fosse absorvida nessa mesma negação de direitos. Acho que é isso. Vários conceitos, mas essa era a ideia. 

CGT – Perfeito! E pensando em todo esse caminho que você apresentou, do quanto isso tem a ver com sua narrativa e sua trajetória. Quando é que você vira e fala: bom, é Direito. 

Ísis – Tem o lado do Paulo Coelho [risadas], afinal, quando você está prestando vestibular, o desespero sempre bate. Eu era muito boa, no Ensino Médio, em química e matemática, física não fazia tanto sentido, mas eu me saía bem. Lembrome do professor falar que química era “uma grande regra de três”.... Foi assim que me fascinei com aquele curso de Engenharia de Materiais, que parecia ser coisa de Engenheiro Químico. Pensei também em Engenharia Química e se tudo desse errado, a opção seria Engenharia Civil.

 Só que quando chegou a hora de pagar – a inscrição para o vestibular eram, como dizem, os dois olhos da cara que decidem sua vida [risadas]. É sério, seu pai te dá oitenta reais e tu vai decidir sua vida, assim que me sentia.... Parei, conversei com a minha mãe e recordei de quando li o Paulo Coelho ainda no Ensino Fundamental. Ele dizia algo assim: aquela profissão que foi a primeira que você escolheu é a que você escolheu na sua vida sem influências da sociedade, portanto, é o que você realmente quer. Foi assim, no final, acabei escolhendo Direito por causa do Paulo Coelho [risadas]. Logo, comprei outro manual, preenchi Direito Noturno ou Direito Diurno, paguei a inscrição e fiz o vestibular.

 Teve também o fato da minha mãe trabalhar no Sindicato dos Metalúrgicos, na colônia de férias. Tinha um advogado do sindicato que era uma ótima referência, de muito carinho. Eu era uma criança mesmo, tinha por volta de sete, oito anos, muito tagarela. E ao me observar, ele sempre brincava comigo, afirmando que deveria ir para área do Direito por ser muito articulada. Dizia ele: ela consegue fazer boas defesas! 

O elemento final tem a ver com unir o útil ao agradável. De forma pragmática, a faculdade de Direito despontou no meu horizonte como a possibilidade de ter uma profissão, alcançar estabilidade financeira e trabalhar com a defesa de direitos numa estrutura, na qual já sabia que teria meus direitos violados – não somente pelo Estado, mas também pelos outros, particulares – e que todos os que amava também corriam esse risco. Acabei prestando Direito com esse olhar, com essa base de formação. Esse foi o ponto, mas também foi o Paulo Coelho [risadas]. 

CGT – Você é pesquisadora em muitas áreas do Direito: Direito Internacional, Direito Constitucional, Direito do Consumidor, Direito da Criança, Justiça Racial e Direitos Humanos. Olhando para sua produção acadêmica, para o seu Doutorado e para os dois Mestrados, além da sua Graduação, identificamos que compreender o sistema de justiça a partir do debate racial é uma escolha que orienta sua atuação, não é mesmo? 

Ísis – Este sempre foi meu foco, até porque estabeleço conexões de proximidade, estou falando de pai, irmão, tios, da insegurança característica a que são submetidos os homens negros ao meu redor. Há um sistema de insegurança motivado pela violência policial arbitrária, sem motivos além do racismo. 

Escolho trilhar por esses caminhos acompanhada de docentes negros, entre os quais é importante falar do Hédio Silva, notório advogado, doutor pela PUC, foi Secretário de Justiça do Estado de São Paulo, do Fernando Fernandez, primeiro negro a ser formar em Direito na UNESP (Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho") e o primeiro brasileiro a ser doutor em direito em Coimbra – meu orientador na graduação, ainda há Eunice Prudente, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, para mencionar os professores daqui do Brasil. Tal opção viabiliza dar passos mais largos na pesquisa, não ter que fazer o debate sobre se racismo existe ou não, porque seria uma perda de tempo. Mas sim já partir para outros aspectos da investigação: por que o racismo está no sistema de justiça criminal? Por que o racismo está no processo de adoção? Por que o racismo está na abordagem do Direito do Consumidor? Por que o impacto dos Direitos Tributários é maior para mulheres negras no Brasil? Estas foram as perguntas que informaram o meu olhar. 

Você pode ter lentes por meio das quais você enxerga o mundo, você olha as coisas, a minha é racializada, pois esta é a formação que tive em casa. Não se engane, o racismo existe, seja esperta e tente sempre escapar - este é o resumo e isso formou as minhas pesquisas. 

CGT – Podemos dizer que a espinha dorsal das suas produções é o debate relacionado a teoria crítica racial. Conte-nos um pouco do que se trata esse conceito?

 Ísis – A teoria crítica racial (TCR) é uma escola de pensamento, ela está inserida nesse contexto de pessoas não brancas que entram nas universidades de elite, majoritariamente brancas, nos cursos de Direito dos Estados Unidos, por conta das ações afirmativas. Esses novos estudantes trazem a necessidade de produzir uma teoria para refletir o funcionamento do sistema de justiça sob luz do debate racial.

É um processo de desconstrução do ideário de que o judiciário não vê cor, ao contrário, a Teoria Crítica Racial desponta para falar, não existe neutralidade. Afirmando que, sim, o judiciário tanto vê cor que temos um precedente, muito estudando na escola de TCR, de um homem branco que atirou em três jovens negros dentro do metrô. A alegação era de que por estar sozinho, sentiu-se ameaçado e intimidado, agiu em legítima defesa. O julgamento, por sua vez, foi no sentido de inocentá-lo pois era razoável você sentir medo quando se está só no metrô e três homens negros vêm em sua direção. Dizer que esse julgamento não tem a categoria raça presente é o absurdo dos absurdos, o auge do privilégio branco. É afirmar que o debate sobre discriminação e estereótipos, bem como sobre a negativa de direitos informadas por esses estereótipos de raça estão presentes, e que isso é normal.

 Descobrir tudo isso foi maravilhoso, porque eu trabalhava a questão de raça no Direito, mas encontrei um acúmulo de um monte de gente que estava perguntando e pensando como raça perpassava as categorias jurídicas. 

Eu posso dizer que a Teoria Crítica Racial formava minhas pesquisas em criminologia na graduação e políticas criminais, marcadamente, mas depois eu percebi que tinha uma sustentação científica nos Estados Unidos, como uma escola reconhecida. De fato, soube da Teoria Crítica Racial em 2007, quando conheci a professora Kimberlé Crenshaw. Se você for ver que eu entrei na faculdade de Direito em 2000 e já estava pensando a categoria raça, foram sete anos meio de autodidatismo nesse campo. 

CGT – E como chega o debate de gênero em suas produções? Como você tem abordado tal conceito no campo do direito?

 Ísis – Como a maioria das mulheres negras em espaços de poder, percebemos primeiro a categoria raça. Você é discriminada pelas mulheres brancas e homens brancos, os homens negros eventualmente disputam com você em um outro contexto, mas a priori não identificava essas condutas de discriminação de gênero imediatamente. 

Quando entrei na faculdade de Direito, o que eu via era a polícia parando o ônibus para revistar todo mundo. Quem desce? Meu pai, trabalhador voltando do fim do expediente, já eu não desço. É isto, num primeiro momento, é uma questão de raça que me preocupa, não é uma questão de gênero e por isso me dediquei a pesquisa de raça por muito tempo, mas eu estava mais ou menos com o olhar para agenda de gênero, inevitavelmente. 

Então, após muitos questionamentos da professora Kimberlé Crenshaw, aliados a uma palestra do ex-presidente dos EUA, Barack Obama, quando percebi, por meio da reação da plateia, o quanto a recepção sobre as agendas de gênero e raça eram diferenciadas no Brasil, decidi me debruçar sobre o tema.

 Foi surpreendente para mim quando o público quase veio abaixo ao ouvir ele dizer que um país não vai ser desenvolvido enquanto ele discriminar mulheres, enquanto ele não aceitar mulheres em condições de igualdade nos espaços onde os homens estão. As palmas e os gritos o interromperam, no entanto, quando ao retomar, em um ato contínuo, ele afirma que um país não vai ser desenvolvido se discriminar as pessoas em função dela ser mais clara ou mais escura, ou usar cor como exclusão dos espaços de decisão, ninguém me bate palma.... Até brinquei, porque na hora eu bati palma, aí o menino ao meu lado olhou assustado. Falei para ele que todos deveríamos reconhecer no Brasil o quanto o debate sobre raça também é relevante. Voltamos para uma antiga indagação da, abolicionista e ativista dos direitos das mulheres, Soujourner Truth: não sou eu, uma mulher? 

No Brasil, existe uma aceitação intensa ao debate sobre feminismo e inclusão de mulheres, porque a premissa é que a inclusão não será de mulheres negras. A premissa é de que a inclusão será de mulher. E mulher é a “mulher universal”, por isso esse espaço do feminismo ter um marcado apoio, no entanto, o debate racial não tem apoio, por ser entendido, como destaca a professora Kimberlé Crenshaw, como a inclusão de homens negros, somente, e eles vistos como ameaçadores pela sociedade. Porém, não se percebe que o debate racial também envolve mulheres negras, uma vez vistas a partir desse viés racial, retomam o olhar existente no período do escravismo. 

A mulher negra é vista como não humana, porque o negro ele tem a sua humanidade negada. Aí eu me lembro que sai da palestra do Obama e fui almoçar com a professora Eunice Prudente, dialogamos e constatamos que era necessário aprofundar o conteúdo teórico para entender o que está acontecendo. Pois existem inúmeras feministas interseccionais, um monte de gente falando sobre interseccionalidade, mas nos espaços em que as coisas precisam ser mais contundentes e consistentes, a reflexão sobre raça ainda não é aceita e consequentemente a mulher negra não é observada e a invisibilidade permanece. 

CGT – O debate sobre interseccionalidade tem ganhado ampla repercussão entre as ativistas do movimento negro, como tem visto a abordagem dessa categoria para compreensão do fenômeno do racismo e do sexismo em nosso país?

Ísis – Kimberlé Crenshaw já tinha comentado que, nos EUA, os debates sobre ações afirmativas e raça, inclusive os de interseccionalidade, acabavam sempre privilegiando mais as mulheres brancas, do que as mulheres negras e homens negros. Pensei comigo: aqui no Brasil está acontecendo a mesma coisa! Comecei, a partir disso, a procurar qual eventualmente seria esta motivação. Por que isso está acontecendo? Quais as ferramentas estão fazendo com que esse fenômeno ocorra? Vamos pelo menos sistematizar os achados destes questionamentos, para depois pensar em uma intervenção, uma tecnologia que atue nessa constatação. 

O nosso diagnóstico aponta para uma instrumentalização da categoria feminismo, desconectada do debate de raça. Aquele clássico que acontecia nos EUA, entre as décadas de 60 e 80, no qual as feministas brancas falavam que as mulheres negras não eram feministas porque rachavam o movimento por não terem sororidade - união e aliança entre mulheres, pois em seu ponto de vista debater a questão racial era menos relevante diante da questão da discriminação da mulher. Acabei de ser apresentada a tal discurso no ano passado, na UNILAB, por isso decidi olhar para esta ocorrência, até porque como uma pessoa que pesquisa, gosto de ter fundamentação, não gosto de usar palavras de ordem, desconectadas de fundamentação teórica. Foi assim que acabei caindo nesse mundo de teorias feministas.

 CGT – Você tem trabalhado a categoria de solidariedade assimétrica ao analisar o cenário do feminismo nacional. Conte-nos o que isto significa? 

Ísis – A interseccionalidade é uma categoria jurídica, elaborada por Kimberlé Crenshaw, portanto, ela é uma ferramenta. Ou seja, nos casos em que gênero e raça precisam ser apreciados pelo Direito, a interseccionalidade desponta como a ferramenta que dará a visibilidade para identificar como opera na vida de mulheres negras as discriminações de raça e de gênero. A base teórica dessa ferramenta é o Feminismo Negro, como já dissemos, sistematizado por muitas autoras, entre as quais destaco Patrícia Hill Collins. 

As disputas epistemológicas se dão no âmbito do reconhecimento do saber e da produção de conhecimento das mulheres negras, de modo que gere o mesmo resultado, para as mulheres negras, que o feminismo branco gera para as feministas brancas, que o antirracismo gera para os homens negros. É a exigência de que a produção do saber reconheça que a interseccionalidade é resultado de um processo emancipatório, que nos permite diagnosticar a opressão e intervir no sentido de alterá-la

Trabalhar a interseccionalidade como se fosse a somatória de todas as identidades excluídas é um equívoco, esta categoria não é olímpiadas da exclusão, ao contrário, ela não deve parar no reconhecimento de uma possível sobreposição ou de um lugar específico, mas como a partir daí você revisita a distribuição de poder e melhora a vida de mulheres negras. 

Neste contexto que emerge a abordagem de solidariedade assimétrica, – também me foi apresentada por Kimberlé Crenshaw, esta categoria nos provoca a refletir como a interseccionalidade, enquanto ferramenta, não está sendo usada para o empoderamento das mulheres negras, mas para tão somente reconhecer que elas são vítimas e este não é seu objetivo central. Sua premissa e das teorias que constroem seu embasamento teórico é de que ocorra a emancipação deste grupo social, a promoção de justiça social.

 Pensando na solidariedade assimétrica, você mulher negra entra como vítima somente no feminismo ou no antirracismo, entra legitimando a condição dos intermediadores da conversa, você não entrará como um interlocutor, um igual, você não vai ocupar esse espaço do discurso, do cientista, do advogado. Esta é uma problematização que precisa ser feita às mulheres brancas; vocês vão usar essa aproximação de mulheres negras só para legitimarem-se e continuar com o domínio da situação política de gênero, com o monopólio de instrumentalização das ferramentas?

 No caso da Aline Pimentel, uma condenação por direitos sexuais e reprodutivos, a gente vê que nem sua mãe ou seu esposo perceberam que, durante os seis meses da gravidez, ela estava recebendo um tratamento inadequado. O bebê já tinha morrido em sua barriga e ninguém percebeu. Tanto que após a morte da jovem, sua mãe que era empregada doméstica comenta com sua patroa a morte da filha e a patroa que era de uma ONG percebe: “nossa, isso é um bom caso para gente entrar com um processo”. 

Quer dizer, a família da Aline5 não teve acesso à informação que permitisse a eles perceber que tinha uma negação de direitos acontecendo, porque quem tem acesso a este tipo de informação não são as vítimas, são as pessoas que entram para serem os advogados, os defensores e a função das mulheres negras continua sendo entrar como vítima. Não é essa a proposta da interseccionalidade, criar tokens ideais, a ferramenta busca visibilizar, mas a teoria busca disputar saber, legitimidade de saber e distribuição de acesso a informação. O caso da Ingriane6 parece estar andando do mesmo jeito. 

CGT – Um importante feito de sua trajetória é a possibilidade de produzir conhecimento com figuras proeminentes como Kimberlé Crenshaw, Eunice Prudente, dentre outros, como esses feitos acabaram acontecendo?

 Ísis – Sei que pode parecer arrogante, mas eu fui atrás, e claro também contei com um bom axé. Foi dessa maneira, por meio de pontes e diálogos que fui conhecendo as pessoas. Um desembargador após uma palestra promovida pelo NEDA, Núcleo de Estudo de Direito Alternativo, me indicou o Hédio Silva, que por sua vez, recomendou a professora Eunice Prudente. Quando a Kimberlé veio para São Paulo em 2007, sai do trabalho e fui pra PUC onde ela estava.

E então, cheguei na professora, falei da minha pesquisa, pedi para conversar, agendamos um encontro e iniciamos as trocas que permanecem – aí tem o inglês e a piada que a Kimberlé sempre faz, porque o único momento em que ela agradece o Axl Rose foi por conta do meu aprendizado do idioma por ser sua fã. A Patrícia Hill Collins estava em Brasília, no Latinidades, lá fui eu com meu livro, pedi autografo e para tirar uma dúvida, foi assim que consegui seu e-mail e mantivemos contato.

É procurar mesmo, porque são muito poucos. Ache e os agarre, sugue deles o máximo de conhecimento... 

CGT – Desde que terminou seu mestrado, você assume a experiência da docência como uma das suas frentes de atuação. De lá para cá, agora está professora na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), entre outras universidades, como se deu esse caminho?

 Ísis – Na Graduação, já pensava em ser professora de Direito. Lembro-me que o manual do vestibulando, acho que da UNESP, em 1999, afirmava que o número de faculdades de Direito no Brasil crescia sobremaneira e a profissão do futuro no Direito era ser professor porque haveria uma demanda gigantesca! E é verdade! Na minha trajetória acadêmica, percebi que todos os meus modelos de cientistas do direito, que estavam tentando responder às insuficiências do saber jurídico para aprimorar, para construir novas ferramentas, todos eles eram professores. Comecei trabalhando em uma universidade privada na Zona Leste de São Paulo, depois um grande grupo privado, acho que o maior do mundo, e de lá vim pra Unilab.

 CGT – Em sua opinião, qual o principal desafio da docência?

 Ísis – A partir da minha experiência, penso que em primeiro lugar tem esse momento de adaptação de quem era professora numa universidade privada e agora está em uma universidade pública internacional. Creio que estou conseguindo conciliar bem a parte de ensino, pesquisa e extensão. Fora esses elementos institucionais, tem aqueles elementos das interações humanas... pessoas distintas: alunos brasileiros, alunos brancos brasileiros, alunos negros brasileiros, alunos africanos, alunos africanos de guiné, alunos africanos de guiné da etnia tal.... Com olhar sendo provocado todo o tempo, aprendo demais sobre outras culturas, isso muda decisivamente o fazer acadêmico. 

CGT – Você tem também uma carreira técnica como servidora do direito e até mesmo em organizações do campo de defesa de direitos, não é mesmo 

Ísis – Sim, tudo começa porque fiz cursinho comunitário, cursinho popular prévestibular. Portanto, quando passo na faculdade de Direito, uma primeira aproximação que encaro é o de devolutiva da ação de movimento social.

 Chegando na UNESP, segui como professora de química no cursinho, processo que foi muito importante para minha trajetória. Pensando no ativismo estudantil, fui uma das fundadoras do NUPE, Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão da UNESP Franca, um grupo autônomo, de amigos negros que ingressavam na universidade pública em um momento muito específico que antecede as políticas de ações afirmativas no Ensino Superior. Era incrível, tínhamos um programa de rádio na cidade, aos sábados de tarde, promovíamos palestras, seminários, entre outros eventos, que pautavam a produção de conhecimento de pesquisadores negros sobre temáticas raciais.

Depois de formada virei professora de cidadania da EducaAfro4 de Arujá, onde meus pais moram. Esta dobradinha academia e movimento social é uma constante em minha vida, a sustentação da minha atuação... continuar produzindo um saber que não é desconectado da ação política, de uma utilidade prática. Atuei por dez anos na Educafro, saí conselheira administrativa da mantenedora. Ao concluir minha graduação, presto concurso como técnica do Tribunal de Justiça em Arujá, foi esta ocupação que deu conta do custo de vida e viabilizou que tanto minha militância, quanto produção científica fossem autônomas, relacionadas aos meus objetivos e anseios, não ao salário. Já minha passagem em organizações do campo de defesa de direitos foi pela Conectas e a Ação Educativa7 . Participei de um programa na Conectas que abordava os mecanismos de atuação e proteção internacional dos direitos humanos para ativistas. Na Ação Educativa, atuei na unidade Ação na Justiça, responsável pela judicialização do direito humano à educação como estratégia de movimentos sociais. Foi quando aprendi a lógica das organizações sociais, suas principais diferenças em relação aos movimentos políticos e sociais que era a Educafro.

CGT – E o Supremo Tribunal Federal?

 Ísis – Atuar no gabinete do Barroso8 foi uma experiência rica, aprendi demais sobre atuação em Tribunal Superior e suas especificidades. O cara é um professor, né? Aprendi mais do que no TJ SP. 

CGT – Pensando em seu perfil, considerando os acúmulos desses distintos campos de atuação que integraram sua trajetória, o que você identificaria como singular em seu fazer profissional? 

Ísis – Penso que a questão da minha etnicidade, das minhas origens familiares, do apoio incondicional ao meu crescimento e contribuições da minha família para que me tornasse quem sou hoje. 

Uma vez em conversa com a professora Kimberlé, disse que queria ser como ela, uma professora do Direito, com uma produção acadêmica reconhecida. E ela me retorna dizendo que para que eu seja uma boa produtora de conhecimentos sobre gênero e raça no Direito não posso ambicionar ser como ela. Na verdade, Kimberlé pede para que seja única, e por isso seria melhor que ela. E é isso, se eu fosse igual a Kimberlé, o meu olhar sobre o feminismo negro americano nos Estados Unidos não conseguiria perceber muitas lacunas. Não conseguiria perceber o quão é importante observar o discurso das feministas decoloniais latinas. Muito menos o quanto a gente está recepcionando ferramentas não adaptadas e por isso elas estão sendo desvirtuadas, não é mesmo? 

Demorei? Demorei! Mas ter entrado numa universidade pública e construir a minha trajetória neste espaço, ou virar fã do Axl Rose e conseguir me comunicar com uma grande docente, como a Kimberlé, em inglês e, por isso, ser convidada por ela para estudar nos EUA são oportunidades que passaram e eu consegui agarrar..., mas é muito difícil definir o que é singular, talvez só mais para frente eu consiga falar, pois creio ser um conjunto de coisas que torna cada pessoa diferente das outras ao redor. 

CGT – Você encerra em 2019 seu Pós-Doutorado e agora integra o programa Martin-Flynn Global Law Faculty até 2021. Partilhe conosco um pouco mais sobre essas duas experiências e as possibilidades que se abrem. 

Ísis – Eu tenho prazer na produção científica, de saberes e o pós-doutorado surgiu como um meio de institucionalizar a minha pesquisa/sistematização sobre interseccionalidade, a qual tenho a pretensão de publicar seja como artigo fora do país, seja como livro. Além disso, tem as disciplinas de Gênero e Etnia na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde sou professora colaboradora, que permite uma investigação mais vertical no tema, inclusive pensando nas aulas que ministro em parceria com a professora Eunice Prudente. O programa Martin-Flynn Global Law Faculty é um curso de primavera que ministro nos Estados Unidos resultado desse novo momento de dedicação exclusiva a vida acadêmica, em função também do lugar que ocupo na Unilab.

 CGT – Após todos esses feitos, o que está em seu horizonte de atuação acadêmica e política daqui por diante? 

Ísis – Descansar [risadas]! Esse primeiro ano na Unilab, foram muitas palestras, o projeto de extensão que é gigantesco, trazer pessoas para a universidade, como meu colega que era diplomata na Nigéria, ajudar a professora Eunice, aula de direito internacional, aula de gênero e relações internacionais... definitivamente, descansar foi um projeto meio fracassado! Chegou uma hora que minha hiperatividade me desconcentrou da meta que tinha quando mudei para Salvador... CGT – Quais são suas expectativas no campo do direito e gênero? Ísis – A minha grande expectativa, até por conta da minha produção de pesquisa, agora, é avançar na produção da teoria do direito, ampliar cada vez mais o número de cientistas que vão pensar e produzir justiça racial. Estruturar uma teoria transnacional do debate de interseccionalidade, ou uma teoria de interseccionalidade que se sedimente no Brasil, que não seja a transposição da perspectiva do EUA como tem acontecido, sem a coerência da abordagem teórica do feminismo negro. E, claro, curtir a vida. Ela, para nós negros, é muito curta.


NOTAS

 1 STEM é a sigla em inglês para Science, Technology, Engineering e Mathematics (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, em português) 2 A Faculdade de Direito da UCLA, também conhecida como UCLA Law, é uma das 12 escolas profissionais da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. A UCLA Law vem sendo constantemente classificada como uma das melhores escolas de direito dos Estados Unidos. 3 De origem africana, 'griô' é um guardião da memória da história oral de um povo ou comunidade. 4 Pré-Vestibular comunitário, que atua pela inclusão da população negra e empobrecida no Ensino Superior. Tem sido um ator relevante na construção de políticas públicas de ações afirmativas, como cotas nas universidades. 5 Em 2002, Alyne da Silva Pimentel Teixeira – mulher negra, 28 anos, era casada e mãe de uma filha de cinco anos – no sexto mês de gestação, acabou falecendo em decorrência de hemorragia digestiva resultante de negligência médica. Após sucessivos erros médicos, ausência de leitos e violência obstétrica, Alyne se tornou um ícone da luta de mulheres negras por direitos sexuais e reprodutivos. O Estado brasileiro foi responsabilizado, em 2011, pela Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw), órgão ligado à ONU, por não cumprir seu papel de prestar o atendimento médico adequado desde o início das complicações na gravidez de Alyne. Para o órgão, a assistência à saúde uterina e ao ciclo reprodutivo é um direito básico da mulher e a falta dessa assistência consiste em discriminação, por tratar-se de questão exclusiva da saúde e da integridade física feminina. 6 Ingriane Barbosa Carvalho de Oliveira, também mulher negra, com 31 anos, morreu por infecção generalizada após recorrer a um abortamento inseguro no qual um talo de mamona foi introduzido em seu útero para interromper uma gravidez de aproximadamente quatro meses, em Petrópolis, Rio de Janeiro. Seu caso foi referência em agosto de 2018, durante audiência pública que discutiu, no Supremo Tribunal Federal (STF), a descriminalização do aborto até as doze semanas de gestação por livre decisão da mulher. 7 Organizações de projeção nacional, com sede em São Paulo, que atuam no campo de defesa dos direitos humanos. 8 Luís Roberto Barroso é um jurista, professor e magistrado brasileiro. É ministro do Supremo Tribunal Federal.

https://periodicos.utfpr.edu.br/cgt/article/view/9494/6424 



COVID-19 vaccines could become mandatory. Here’s how it might work.

 After a COVID-19 vaccine is available, you may need to get inoculated to go to the office, attend a sporting event, or even get a seat at a restaurant.

BY JILLIAN KRAMER

PUBLISHED AUGUST 19, 2020


YOU WALK TOWARD the arena, ready for a big game, tickets in hand. But what you see is a long line wrapping around the corner of the building and a bottleneck at the entrance as people search their pockets and purses for a small piece of paper. To be cleared to enter, you’ll also need that document—proof that you’ve received a COVID-19 vaccination.

This is the future as some experts see it: a world in which you’ll need to show you’ve been inoculated against the novel coronavirus to attend a sports game, get a manicure, go to work, or hop on a train.

“We’re not going to get to the point where the vaccine police break down your door to vaccinate you,” says Arthur Caplan, a bioethicist at New York University’s School of Medicine. But he and several other health policy experts envision vaccine mandates could be instituted and enforced by local governments or employers—similar to the current vaccine requirements for school-age children, military personnel, and hospital workers.

In the United States, most vaccine mandates come from the government. The Advisory Committee on Immunization Practices (ACIP) makes recommendations for both pediatric and adult vaccines, and state legislatures or city councils determine whether to issue mandates. These mandates are most commonly tied to public school attendance, and all 50 states require students to receive some vaccines, with exemptions for medical, religious, and philosophical reasons.

Adult vaccine mandates—compelling employees and the public to inoculate themselves—aren’t nearly as widespread, but they’re not unheard of. U.S. states and cities can and have forced compulsory vaccinations on citizens. In 1901, for example, Cambridge, Massachusetts, adopted a law that required all citizens aged 21 and older to get vaccinated against smallpox. Failure to comply could lead to a five-dollar fine, or the equivalent of $150 today. Those who challenged the order in court lost. (The last outbreak of smallpox in the U.S. occurred in 1949.)


O direito universal à respiração- por Achille Mbembe

 Se a Covid-19 é expressão espectacular do impasse planetário no qual a humanidade se encontra, então trata-se, nada mais nada menos, de recompormos uma Terra habitável, e assim ela poderá oferecer a todos uma vida respirável. Seremos capazes de redescobrir a nossa pertença à mesma espécie e o nosso inquebrável vínculo à totalidade do vivo? Talvez esta seja a derradeira questão, antes que a porta se feche para sempre. 


Algumas pessoas enunciam já um «pós-Covid-19». Por que não? No entanto, para a maioria de nós, especialmente nas zonas do mundo em que os sistemas de saúde foram devastados por anos de negligência organizada, o pior ainda está para vir. Na ausência de camas hospitalares, máquinas respiratórias, testes em quantidade, máscaras, desinfectantes à base de álcool e de outros dispositivos de quarentena para quem já foi atingido, infelizmente prevemos que muitos não passarão pelo buraco da agulha.


A política do vivo


Há algumas semanas, perante o tumulto e a consternação que se anunciava, tentámos descrever estes nossos tempos. Tempos sem garantia ou promessa, num mundo cada vez mais dominado pelo medo do seu próprio fim, dissemos. Mas, ainda, tempo caracterizado por «uma desigual redistribuição da vulnerabilidade» e por «novos e ruinosos compromissos com formas de violência tão futuristas quanto arcaicas», acrescentámos1. E, pior, tempo de brutalismo2.


Além das suas origens no movimento arquitectónico de meados do século XX, definimos brutalismo como o processo contemporâneo «pelo qual o poder enquanto força geomórfica é actualmente constituído, se exprime, se reconfigura, actua e se reproduz». E fá-lo pela «fractura e fissura», «pelo preenchimento de vasos, «pela perfuração» e pelo «esvaziar de substâncias orgânicas» (p.11), por fim, pelo que chamamos de «esgotamento» (p. 9-11).


A este propósito, assinalámos os modos moleculares, químicos e até radioactivos desses processos: «Não será a toxicidade, isto é, a multiplicação de produtos químicos e resíduos perigosos, uma dimensão estrutural do presente? Tais substâncias e resíduos não atacam apenas a natureza e o ambiente (ar, solo, água, cadeias alimentares), mas igualmente os corpos expostos ao chumbo, ao fósforo, mercúrio, berílio, aos fluidos refrigerantes» (p.10).


De facto, referíamo-nos aos «corpos vivos expostos à exaustão física e a todo o tipo de riscos biológicos, muitas vezes invisíveis». No entanto, falámos de vírus (quase 600 mil, transportados por todo o tipo de mamíferos) apenas metaforicamente, no capítulo dedicado aos «corpos-fronteira». Porém, o que estava em causa3 era, de novo, a política do vivo como totalidade. E o coronavírus é obviamente o seu nome.


Humanidade errante


Nestes tempos púrpuros — assumindo que a característica que distingue os tempos é a sua cor — talvez devamos, por conseguinte, começar por prestar homenagem a todos os que já nos deixaram. Uma vez atravessada a barreira dos alvéolos pulmonares, o vírus infiltrou-se na circulação sanguínea. De seguida atacou os órgãos e outros tecidos, começando pelos mais expostos.


Seguiu-se uma inflamação sistémica. Quem, antes do ataque, já apresentava problemas cardiovasculares, neurológicos ou metabólicos, ou patologias ligadas à poluição, sofreram os mais furiosos ataques. Sem fôlego e privados de máquinas respiratórias, muitos partiram repentinamente, sem qualquer possibilidade de se despedirem. Os restos mortais foram imediatamente cremados ou enterrados. Em solidão. Disseram-nos para nos livrarmos deles o mais rapidamente possível.


Já que vamos por aí, por que não adicionar a estas pessoas todas as outras, que prefazem dezenas de milhões, vítimas de HIV, cólera, malária, ébola, de vírus nipah, febre tifóide, febre amarela, zica, chikungunya, a diversidade de cancros, epizootias e outras pandemias zoonóticas, como a peste suína ou a febre catarral ovina (ou língua azul), e todas as epidemias imagináveis ​​e inimagináveis ​​que devastaram, durante séculos, povos sem nome em terras distantes. Isto sem contar com substâncias explosivas e outras guerras predatórias e de ocupação que mutilam e dizimam dezenas de milhares e atiram para os caminhos do êxodo outras centenas de milhares de pessoas. A humanidade errante.


Além disso, como esquecer o desmatamento intensivo, os mega-incêndios e a destruição de ecossistemas, a ação nefasta das empresas que poluem e destroem a biodiversidade, e hoje em dia — uma vez que o confinamento faz parte de nossa condição — as multidões que habitam as prisões do mundo e outras pessoas cuja vida é despedaçada contra muros e outras técnicas de criar fronteiras, sejam os inúmeros check points que pontuam vários territórios, ou os mares, oceanos, desertos e tudo o mais?


Ontem e anteontem, tratava-se apenas de aceleração, de redes tentaculares de conexão abrangendo o globo inteiro, da inexorável mecânica da velocidade e da desmaterialização. Era no computacional que se supunha residir tanto o futuro dos humanos e da produção material como o destino do vivo. Lógica omnipresente, com a ajuda da circulação a alta velocidade e a memória em massa, bastaria «transferir para um duplo digital todas as capacidades dos vivos» e pronto4. O estágio supremo da nossa breve história na Terra, o humano poderia finalmente ser transformado em dispositivo plástico. O caminho fora traçado para a realização do velho projecto de extensão infinita do mercado.


No meio da intoxicação geral, é neste rumo dionisíaco, descrito aliás em Brutalisme, que o vírus vem estancar-se sem, no entanto, o interromper definitivamente, mesmo quando tudo fica na mesma. Agora, porém, vive-se a asfixia e a putrefacção, amontoamento e cremação de cadáveres, numa palavra, a ressurreição de corpos vestidos, de vez em quando, com a sua mais bela máscara funerária e viral. Para os seres humanos, a Terra estaria prestes a transformar-se numa roda dentada, a Necrópole universal? Até onde terá de chegar a propagação de bactérias de animais selvagens entre os humanos se, na realidade, a cada vinte anos, são cortados quase cem milhões de hectares de floresta tropical (pulmões da Terra)?


Desde o início da revolução industrial no Ocidente que cerca de 85% das áreas húmidas foram drenadas. À medida que continua inabalável a destruição de habitats, as populações de saúde precária são, quase diariamente, expostas a novos agentes patogénicos. Antes da colonização, os animais selvagens, principais reservatórios de patogénicos, estavam confinados a ambientes onde somente viviam populações isoladas. Foi o caso, por exemplo, dos últimos países silvicultores do mundo, os da Bacia do Congo.


As comunidades que viviam nesses territórios e dependiam de recursos naturais têm sido expropriadas. Têm sido expulsas em prol da venda de terras por regimes tirânicos e corruptos, e pela concessão de grandes cedências estatais a consórcios agroalimentares, deixaram de conseguir manter a sua autonomia alimentar e energética que, durante séculos, lhes permitiu viver em equilíbrio com a mata.

Nunca aprendemos a morrer


Nestas condições, uma coisa é preocuparmo-nos com a morte de outro, ao longe. Outra, é de súbito tomar consciência da própria putrescibilidade, de viver na vizinhança da própria morte, de contemplá-la enquanto possibilidade real. À partida, é esse o terror suscitado pelo confinamento a muita gente, a obrigação de, por fim, responder pela sua vida e nome.


Responder aqui e agora pela nossa vida sobre a Terra com outros (incluindo os vírus) e pelo nosso nome em comum: é isto que o momento patogénico impõe à espécie humana. Momento patogénico, mas também momento catabólico por excelência, o da decomposição dos corpos, da triagem e da eliminação de todo o tipo de detritos-de-homens — a «grande separação» e o grande confinamento, em resposta à surpreendente propagação do vírus e em consequência da extensiva digitalização do mundo.


Não importa o quanto nos tentemos livrar dele. No final, tudo nos traz de volta ao corpo. Tentámos enxertá-lo noutros suportes, fazer um corpo-objecto, um corpo-máquina, um corpo digital, um corpo ontofánico.


Ele regressa sob a forma angustiante de uma enorme mandíbula, veículo de contaminação, vector de pólen, de esporos e de bolor.


Saber que não estamos sós nessa provação, ou de que seremos muitos a escapar, trará apenas um vão conforto. E se assim não for é porque nunca aprendemos a viver com o que é vivo, a preocuparmo-nos verdadeiramente com os danos causados pelo homem nos pulmões da Terra e no seu organismo. Numa palavra, nunca aprendemos a morrer. Com o advento do Novo Mundo e, alguns séculos mais tarde, a aparição das «raças industrializadas», nós escolhemos, numa espécie de vicariato ontológico, delegar a nossa morte noutrem e fazer da própria existência um grande repasto sacrificial.


Em breve deixará de ser possível delegar a morte noutrem. O outro não morrerá mais em nosso lugar. Não seremos apenas condenados a assumir, sem mediação, a nossa própria morte. Haverá cada vez menos possibilidades de adeus. Aproxima-se a hora da autofagia e, com ela, o fim da comunidade, porque dificilmente haverá comunidade digna desse nome se dizer adeus, isto é, fazer a memória do vivo, deixar de ser possível.


Pois a comunidade, ou melhor, o em-comum, não assenta apenas na possibilidade de dizer adeus, isto é, de ter um encontro único com os outros e a honrá-lo de novo de cada vez. O em-comum assenta também na possibilidade da partilha sem condição e de, a cada vez, recuperar qualquer coisa de absolutamente intrínseca, ou seja, de incomensurável, incalculável, e por isso sem preço.


O digital, novo buraco na terra causado pela explosão 


Manifestamente, o céu não deixa de escurecer. Presa no ciclo vicioso da injustiça e das desigualdades, uma boa parte da humanidade está ameaçada pela grande asfixia, ao mesmo tempo que prolifera o sentimento de que o nosso mundo alivia. Se, nestas condições, ele existir no dia seguinte, não poderá ser à custa de alguns, sempre os mesmos, como na Antiga economia. Deverá ser para todos os habitantes da Terra, sem distinção de espécie, raça, sexo, cidadania, religião ou qualquer outra marca de diferenciação. Por outras palavras, não poderá haver alívio senão à custa de uma gigantesca ruptura, produto de uma imaginação radical.


Não basta tapar o buraco. No meio da cratera é preciso tudo inventar, a começar pelo social. Pois quando trabalhar, aprovisionar, informar-se, manter o contacto, nutrir e conservar as ligações, conversar e trocar, beber juntos, celebrar o culto ou organizar funerais, não pode ter lugar senão por interpostos écrans, é tempo de tomar consciência de que estamos cercados de anéis de fogo por todo o lado. Em grande medida, o digital é o novo buraco que a explosão criou na terra. Trincheira, entranhas e paisagem lunar ao mesmo tempo, é o bunker onde homem e mulher isolados são convidados a refugiar-se. Acredita-se que, através do digital, o corpo, a carne e os ossos, o corpo físico e mortal, se liberte do peso e da inércia. No fim desta transfiguração, poder-se-á finalmente atravessar o espelho, resgatados à corrupção biológica e restituídos ao universo sintético dos fluxos. Ilusão porque, do mesmo modo que dificilmente haverá humanidade sem corpo, também a humanidade não conhecerá a liberdade fora da sociedade ou da dependência da biosfera.


Guerra contra o vivo 


É preciso portanto começar de novo, se, para as necessidades da nossa própria sobrevivência, for imperativo devolver a tudo o que é vivo (incluindo a biosfera) o espaço e a energia de que necessitam.  Na sua versão nocturna, a modernidade foi, do princípio ao fim, uma interminável guerra travada contra os vivos. Ela está longe de acabar. A sujeição ao digital é uma das modalidades dessa guerra. Conduz directamente ao empobrecimento e à dessecação de áreas inteiras do planeta.


É de temer que, finda esta calamidade, longe de santificar todas as formas do estar vivo, o mundo infelizmente não evite um novo período de tensão e brutalidade. No plano geopolítico, a lógica da força e do poder continuará a prevalecer. Na ausência de infraestruturas comuns, uma feroz divisão do globo acentuar-se-á e as linhas de segmentação intensificar-se-ão. Muitos Estados procurarão reforçar as suas fronteiras na esperança de se proteger da exterioridade. Lutarão igualmente por reprimir a sua violência constitutiva, que descarregarão, como de costume, nos mais vulneráveis entre os seus. A vida atrás de écrans e em enclaves protegidos por segurança privada tornar-se-á a norma.


Em África, em particular, e bem dentro das regiões do Sul do mundo, a extracção consumidora de energia, a expansão agrícola e a predação, razão de ser da venda de terras e da destruição de florestas, continuarão sem entrave. A alimentação e o arrefecimento de chips e super-computadores disso depende. O fornecimento e o encaminhamento de recursos e de energia, necessários à infraestrutura da computação planetária, far-se-ão à custa de uma maior restrição da mobilidade humana. Manter o mundo à distância será a norma, para poder expulsar para o exterior todo o tipo de riscos. Porém, como não ataca a nossa precariedade ecológica, esta visão catabólica do mundo, inspirada em teorias de imunização e de contágio, não permitirá sair do impasse planetário em que nos encontramos.


Direito fundamental à existência 


Podemos dizer que a propriedade principal das guerras travadas contra o vivo  era cortar o fôlego. Enquanto entrave maior à respiração e à reanimação dos corpos e dos tecidos humanos, a Covid-19 inscreve-se na mesma trajectória. De facto, em que consiste a respiração senão na absorção de oxigénio e na rejeição de dióxido de carbono, ou na troca dinâmica entre sangue e tecidos? Mas ao ritmo com que segue a vida na Terra, e tendo em conta o que ainda sobeja da riqueza do planeta, estaremos assim tão longe do momento em que haverá mais dióxido de carbono para inalar do que oxigénio a inspirar?


Antes deste vírus, a humanidade já estava ameaçada de asfixia. Se tiver de haver guerra, deverá ser, em consequência, não contra um vírus em particular, mas contra tudo o que condena a grande maioria da humanidade à paragem prematura de respiração, tudo o que ataca fundamentalmente as vias respiratórias, tudo o que, na longa duração do capitalismo, confinou segmentos inteiros de populações e raças inteiras a uma respiração difícil, ofegante, a uma vida pesada. Mas para daí sair é preciso ainda compreender a respiração, para lá de aspectos puramente biológicos, como aquilo que nos é comum e que, por definição, escapa a qualquer cálculo. Falamos, assim, de um direito universal de respiração.


Simultaneamente acima do chão e nosso chão comum, o direito universal à respiração não é quantificável. Não é apropriável. É um direito relativo à universalidade, não apenas de cada membro da espécie humana, mas do vivo na sua totalidade. É preciso então compreendê-lo como um direito fundamental à existência. Enquanto tal, não pode ser confiscado e, por isso, escapa a toda a soberania, uma vez que recapitula o princípio soberano em si. Ele é, além do mais, um direito originário de habitação da Terra, um direito próprio da comunidade universal dos habitantes da Terra, humanos e não-humanos5.


Coda


O processo foi mil vezes intentado. Podemos recitar de olhos fechados as principais acusações. Seja a destruição da biosfera, o resgate das mentes pela tecnociência, a desintegração das resistências, os reiterados ataques contra a razão, a crescente cretinice das mentalidades, ou a ascensão dos determinismos (genéticos, neural, biológico, ambiental), as ameaças à humanidade são cada vez mais existenciais.


De todos estes perigos, o maior será que toda e qualquer forma de vida se torne impossível. Entre quem sonha transferir a nossa consciência para máquinas e quem está persuadido de que a próxima mutação da espécie reside na emancipação da nossa pandilha biológica, a diferença é insignificante. A tentação eugenista não desapareceu. Pelo contrário, está na base dos recentes progressos das ciências e da tecnologia.


Entretanto, esta paragem repentina surge, não da história, mas de algo ainda difícil de entender. Por ser forçada, esta interrupção não é um feito da nossa vontade. É, de diversas formas, simultaneamente imprevista e imprevisível. Ora, é de uma interrupção voluntária, consciente e plenamente consentida que precisamos, de outro modo pouco restará. Restará somente uma série ininterrupta de acontecimentos imprevistos.


Se, de facto, a Covid-19 é a expressão espectacular do impasse planetário em que se encontra a humanidade, então não se trata senão, nem mais nem menos, de recompormos uma Terra habitável, porque ela oferecerá a todos a possibilidade de uma vida respirável. Trata-se, pois, de recuperar os recursos do nosso mundo com o fim de forjar novas terras. A humanidade e a biosfera estão ligadas. Uma não tem futuro sem a outra. Seremos capazes de redescobrir a nossa pertença à mesma espécie e o nosso inquebrável vínculo à totalidade do vivo? Talvez esta seja a derradeira questão, antes que a porta se feche para sempre. 


Artigo publicado originalmente em francês na revista AOC media - Analyse Opinion Critique.  https://aoc.media/opinion/2020/04/05/le-droit-universel-a-la-respiration/ 

LE DROIT UNIVERSEL À LA RESPIRATION - PAR ACHILLE MBEMBE

 

Si guerre il doit y avoir, ce doit être non pas tant contre un virus en particulier que contre tout ce qui sur la longue durée du capitalisme aura confiné des races entières à une respiration difficile, à une vie pesante


Certains évoquent d’ores et déjà “l’après-Covid-19”. Pourquoi pas? Pour la plupart d’entre nous cependant, surtout dans ces régions du monde où les systèmes de santé ont été dévastés par plusieurs années d’abandon organisé, le pire est encore à venir. En l’absence de lits dans les hôpitaux, de machines respiratoires, de tests massifs, de masques, de désinfectants à base d’alcool et autres dispositifs de mise en quarantaine de ceux qui sont d’ores et déjà atteints, nombreux sont malheureusement ceux et celles qui ne passeront pas par le trou de l’aiguille.

Il y a quelques semaines, face au tumulte et au désarroi qui s’annoncaient, certains d’entre nous tentaient de décrire ces temps qui sont les nôtres. Temps sans garantie ni promesse, dans un monde de plus en plus dominé par la hantise de sa propre fin, disions-nous. Mais aussi temps caractérisé par “une redistribution inégalitaire de la vulnérabilité” et par de “nouveaux et ruineux compromis avec des formes de violence aussi futuristes qu’archaïques”, ajoutions-nous ​(Achille Mbembe et Felwine Sarr, sous la dir. de; ​Politique des temps​, Paris, Philippe Rey, 2019, pp. 8-9)​. Davantage encore, temps du brutalisme ​(Achille Mbembe, ​Brutalisme​, Paris, La Decouverte, 2020)​.

Par-delà ses origines dans le mouvement architectural de la moitié du XXe siècle, nous définissions le brutalisme comme le procès contemporain “par lequel le pouvoir en tant que force géomorphique désormais se constitue, s’exprime, se reconfigure, agit et se reproduit”. Par quoi, sinon par “la fracturation et la fissuration”, par “le désemplissement des vaisseaux”, “le forage” et le “vidage des substances organiques” (11), bref, par ce que nous appelions “la déplétion” (pages 9-11) ?

Nous attirions l’attention, à juste titre, sur la dimension moléculaire, chimique, voire radioactive de ces processus: “La toxicité, c’est-à-dire la multiplication de substances chimiques et de déchets dangereux, n’est-elle pas une dimension structurelle du présent? Ces substances et déchets ne s’attaquent pas seulement à la nature et à l’environnement (l’air, les sols, les eaux, les chaînes alimentaires), mais aussi aux corps ainsi exposés au plomb, au phosphore, au mercure, au béryllium, aux fluides frigorigènes” (10).

Nous faisions, certes, référence aux “corps vivants exposés à l’épuisement physique et à toutes sortes de risques biologiques parfois invisibles”. Nous ne citions cependant pas nommément les virus (près de 600 000, portés par toutes sortes de mammifères), sauf de façon métaphorique, dans le chapitre consacré aux “corps-frontières”. Mais pour le reste, c’est bel et bien de la politique du vivant dans son ensemble dont il était, une fois de plus, question (Achille Mbembe, ​Necropolitics​, Duke University Press, 2019). Et c’est d’elle dont le coronavirus est manifestement le nom.

En ces temps pourpres – à supposer que le trait distinctif de tout temps soit sa couleur – peut-être faudrait-il, par conséquent, commencer en s’inclinant devant tous ceux et toutes celles qui nous ont d’ores et déjà quittés. La barrière des alvéoles pulmonaires franchie, le virus a infiltré leur circulation sanguine. Il s’est ensuite attaqué à leurs organes et autres tissus, en commençant par les plus exposés.

Il s’en est suivi une inflammation systémique. Ceux d’entre eux qui, préalablement à l’attaque, avaient déjà des problèmes cardiovasculaires, neurologiques ou métaboliques, ou souffraient de pathologies liées à la pollution, ont subi les assauts les plus furieux. Le souffle coupé et privés de machines respiratoires, certains sont partis comme à la sauvette, soudainement, sans aucune possibilité de dire adieu. Leurs restes auront aussitôt été incinérés ou inhumés. Dans la solitude. Il fallait, nous dit-on, s’en débarrasser le plus vite possible.

Mais puisque nous y sommes, pourquoi ne pas ajouter, à ceux et celles-là, tous les autres, et ils se comptent par dizaines de millions, victimes du SIDA, du choléra, du paludisme, d’Ebola, du Nipah, de la fièvre de Lasse, de la fièvre jaune, du Zika, du chikungunya, de cancers de toutes sortes, des épizooties et autres pandémies animales comme la peste porcine ou la fièvre catarrhale ovine, de toutes les épidémies imaginables et inimaginables qui ravagent depuis des siècles des peuples sans nom dans des contrées lointaines, sans compter les substances explosives et autres guerres de prédation et d’occupation qui mutilent et déciment par dizaines de milliers et jettent sur les routes de l’exode des centaines de milliers d’autres, l’humanite en errance.

Comment oublier, par ailleurs, la déforestation intensive, les mégafeux et la destruction des écosystèmes, l’action néfaste des entreprises polluantes et destructrices de la biodiversité, et de nos jours, puisque le confinement fait désormais partie de notre condition, les multitudes qui peuplent les prisons du monde, et ces autres dont la vie est brisée en miettes face aux murs et autres techniques de frontiérisation, qu’il s’agisse des innombrables ​check points qui parsèment maints territoires, ou des mers, des océans, des déserts et de tout le reste ?

Hier et avant-hier, il n’était en effet question que d’accélération, de tentaculaires réseaux de connection enserrant l’ensemble du globe, de l’inexorable mécanique de la vitesse et de la dématérialisation. C’est dans le computationnel qu’était supposé résider aussi bien le devenir des ensembles humains et de la production matérielle que celui du vivant. Logique ubiquitaire, circulation à haute vitesse et mémoire de masse aidant, il suffisait maintenant de “transférer sur un double numérique l’ensemble des compétences du vivant” et le tour était joué (Cf. Alexandre Friederich, ​H+. Vers une civilisation 0.0​, Paris, Editions Allia, 2020, p. 50). Stade suprême de notre brève histoire sur Terre, l’humain pouvait enfin être transformé en un dispositif plastique. La voie était balisée pour l’accomplissement du vieux projet d’extension infini du marché.

Au milieu de l’ivresse générale, c’est cette course dionysiaque, décrite par ailleurs dans ​Brutalisme, que le virus vient freiner, sans toutefois l’interrompre définitivement, alors même que tout reste en place. L’heure, néanmoins, est désormais à la suffocation et à la putréfaction, à l’entassement et à l’incinération des cadavres, en un mot, à la résurrection des corps vêtus, à l’occasion, de leur plus beau masque funéraire et viral. Pour les humains, la Terre serait-elle donc en passe de se transformer en une roue bruissante, l’universelle Nécropole? Jusqu’où ira la propagation des bactéries des animaux sauvages vers les humains si, de fait, tous les vingt ans, près de 100 millions d’hectares de forêts tropicales (les poumons de la terre) doivent être coupés ?

Depuis le début de la révolution industrielle en Occident, ce sont près de 85% des zones humides qui ont été asséchées. La destruction des habitats se poursuivant sans relâche, des populations humaines en état de santé précaire sont presque chaque jour exposées à de nouveaux agents pathogènes. Avant la colonisation, les animaux sauvages, principaux réservoirs de pathogènes, étaient cantonnés dans des milieux dans lesquels ne vivaient que des populations isolées. C’était par exemple le cas dans les derniers pays forestiers au monde, ceux du Bassin du Congo.

De nos jours, les communautés qui vivaient et dépendaient des ressources naturelles dans ces territoires ont été expropriées. Mises à la porte à la faveur du bradage des terres par des régimes tyranniques et corrompus et de l’octroi de vastes concessions domaniales à des consortiums agro-alimentaires, elles ne parviennent plus à maintenir les formes d’autonomie alimentaire et énergétique qui leur ont permis, pendant des siècles, de vivre en équilibre avec la brousse.

Dans ces conditions, une chose est de se soucier de la mort d’autrui, au loin. Une autre est de prendre soudain conscience de sa propre putrescibilité, de devoir vivre dans le voisinage de sa propre mort, de la contempler en tant que réelle possibilité. Telle est, en partie, la terreur que suscite le confinement chez beaucoup, l’obligation de devoir enfin répondre de sa vie et de son nom.

Répondre ici et maintenant de notre vie sur cette Terre ​avec d’autres (les virus y compris) et de notre nom en commun, telle est bel et bien l’injonction que ce moment pathogène adresse à l’espèce humaine. Moment pathogène, mais aussi moment catabolique par excellence, celui de la décomposition des corps, du triage et de l’élimination de toutes sortes de déchets-d’hommes – la “grande séparation” et le grand confinement, en réponse à la propagation ahurissante du virus et en conséquence de la numérisation extensive du monde.

Mais l’on aura beau chercher à s’en délester, tout nous ramène finalement au corps. Nous aurons tenté de le greffer sur d’autres supports, d’en faire un corps-objet, un corps-machine, un corps digital, un corps ontophanique. Il nous revient sous la forme stupéfiante d’une énorme mâchoire, véhicule de contamination, vecteur de pollens, de spores et de moisissure.

De savoir que l’on n’est pas seul dans cette épreuve, ou que l’on risque d’être nombreux à déguerpir, ne procure que vain réconfort. Pourquoi sinon parce que nous n’aurons jamais appris à vivre avec le vivant, à nous soucier véritablement des dégâts causés par l’homme dans les poumons de la Terre et dans son organisme. Du coup, nous n’avons jamais appris à mourir. Avec l’avènement du Nouveau-Monde et, quelques siècles plus tard, l’apparition des “races industrialisées”, nous avons pour l’essentiel choisi, dans une sorte de vicariat ontologique, de déléguer notre mort à autrui et de faire de l’existence elle-même un grand repas sacrificiel.

Or bientôt, il ne sera plus possible de déléguer sa mort à autrui. Ce dernier ne mourra plus à notre place. Nous ne serons pas seulement condamnés à assumer, sans médiation, notre propre trépas. De possibilité d’adieu, il y en aura de moins en moins. L’heure de l’autophagie approche, et avec elle, la fin de la communauté puisqu’il n’y a guère de communauté digne de ce nom là où ​dire adieu​, c’est-à-dire faire mémoire du vivant, n’est plus possible.

Car, la communauté ou plutôt ​l’en-commun ne repose pas uniquement sur la possibilité de dire ​aurevoir,​ c’est-à-dire de prendre chaque fois avec d’autres un rendez-vous unique et chaque fois à honorer de nouveau.​ L’en-commun repose aussi sur la possibilité du partage sans condition et chaque fois à reprendre de quelque chose d’absolument intrinsèque, c’est-à-dire d’incomptable, d’incalculable, et donc ​sans prix​.

Le ciel, manifestement, ne cesse donc de s’assombrir. Prise dans l’étau de l’injustice et des inégalités, une bonne partie de l’humanité est menacée par le grand étouffement, et le sentiment selon lequel notre monde est en sursis ne cesse de se répandre.

Si, dans ces conditions, de ​jour d’après il doit y en avoir, ce ne pourra guère être aux dépens de quelques-uns, toujours les mêmes, comme dans l’Ancienne Economie.​ Ce devra nécessairement être pour tous les habitants de la Terre, sans distinction d’espèce, de race, de sexe, de citoyenneté, de religion ou autre marqueur de différenciation. En d’autres termes, ce ne pourra être qu’au prix d’une gigantesque rupture, le produit d’une imagination radicale.

Un simple replâtrage ne suffira en effet pas. Au milieu du cratère, il faudra littéralement tout réinventer, à commencer par le social. Car, lorsque travailler, s’approvisionner, s’informer, garder le contact, nourrir et conserver les liens, se parler et échanger, boire ensemble, célébrer le culte ou organiser des funérailles n’ont plus lieu que par écrans interposés, il est temps de se rendre compte que l’on est encerclé de toutes parts par des anneaux de feu. Dans une large mesure, le numérique est le nouveau trou creusé dans la terre par l’explosion. A la fois tranchée, boyaux et paysage lunaire, il est le bunker où l’homme et la femme isolées sont invités à se tapir.

Par le biais du numérique, croit-on, le corps de chair et d’os, le corps physique et mortel sera délesté de son poids et de son inertie. Au terme de cette transfiguration, il pourra enfin entreprendre la traversée du miroir, soustrait à la corruption biologique et restitué à l’univers synthétique des flux. Illusion, car de même qu’il n’y aura guère d’humanité ​sans corps​, de même l’humanité ne connaîtra la liberté seule, hors la société ou aux dépens de la biosphère.

Il faut donc repartir d’ailleurs si, pour les besoins de notre propre survie, il est impératif de redonner à tout le vivant (la biosphère y compris) l’espace et

l’énergie dont il a besoin. Sur son versant nocturne, la modernité aura de bout en bout été une interminable guerre menée contre le vivant. Elle est loin d’être terminée. L’assujettissement au numérique constitue l’une des modalités de cette guerre. Elle conduit tout droit à l’appauvrissement en monde et à la dessiccation de pans entiers de la planète.

Il est à craindre qu’au lendemain de cette calamité, loin de sanctuariser toutes les espèces du vivant, le monde ne rentre malheureusement dans une nouvelle période de tension et de brutalité. Sur le plan géopolitique, la logique de la force et de la puissance continuera de prévaloir. En l’absence d’infrastructure commune, une féroce partition du globe s’accentuera et les lignes de segmentation s’intensifieront. Beaucoup d’Etats chercheront à renforcer leurs frontières dans l’espoir de se protéger de l’extériorité. Ils peineront également à refouler leur violence constitutive qu’ils déchargeront comme d’habitude sur les plus vulnérables en leur sein. La vie derrière les écrans et dans des enclaves protégées par des firmes privées de sécurité deviendra la norme.

En Afrique, en particulier, et dans bien des régions du Sud du monde, extraction énergivore, épandage agricole et prédation sur fonds de bradage des terres et de destruction des forêts continueront de plus belle. L’alimentation et le refroidissement des puces et des supercalculateurs en dépend. L’approvisionnement et l’acheminement des ressources et de l’énergie nécessaires à l’infrastructure de la computation planétaire se feront au prix d’une plus grande restriction de la mobilité humaine. Garder le monde a distance deviendra la norme, histoire d’expulser à l’extérieur les risques de toutes sortes. Mais parce qu’elle ne s’attaque pas à notre précarité écologique. cette vision catabolique du monde inspirée par les théories de l’immunisation et de la contagion ne permettra guère de sortir de l’impasse planétaire dans laquelle nous nous trouvons.

Des guerres menées contre le vivant, l’on peut dire que leur propriété première aura été de couper le souffle. En tant qu’entrave majeure à la respiration et à la réanimation des corps et des tissus humains, le Covid-19 s’inscrit dans la même trajectoire. ​En effet, à quoi tient la respiration sinon en l’absorption d’oxygène et en le rejet du gaz carbonique, ou encore en un échange dynamique entre le sang et les tissus? Mais au rythme où va la vie sur Terre, et au vu de ce qui reste de la richesse de la planète, sommes-nous si éloignés que cela du temps où il y aura davantage de gaz carbonique à inhaler que d’oxygène à aspirer ?

Avant ce virus, l’humanité était d’ores et déjà menacée de suffocation. Si guerre il doit y avoir, ce doit par conséquent être non pas tant contre un virus en particulier que contre tout ce qui condamne la plus grande partie de l’humanité à l’arrêt prématuré de la respiration, tout ce qui s’attaque fondamentalement aux voies respiratoires, tout ce qui sur la longue durée du capitalisme aura confiné des segments entiers de populations et des races entières à une respiration difficile, haletante, à une vie pesante. Mais pour s’en sortir, encore faut-il faut comprendre la respiration au-delà des aspects purement biologiques, comme cela qui nous est commun et qui, par définition, échappe à tout calcul. L’on parle, ce faisant, d’un droit universel de respiration.

En tant que cela qui est à la fois hors-sol et notre sol commun, le droit universel à la respiration n’est pas quantifiable. Il ne saurait être appropriable. Il est un droit au regard de l’universalité non seulement de chaque membre de l’espèce humaine, mais du vivant dans son ensemble. Il faut donc le comprendre comme un droit fondamental à l’existence. En tant que tel, il ne pourrait faire l’objet de confiscation et échappe de ce fait à toute souveraineté puisqu’il récapitule le principe souverain en soi. Il est par ailleurs ​un droit orginaire d’habitation de la Terre, un droit propre à la communauté universelle des habitants de la Terre, humains et autres (Sarah Vanuxem, ​La propriété de la Terre, Paris, Wildproject, 2018; et Marin Schaffner, ​Un sol commun. Lutter, habiter, penser,​ Paris, Wildproject, 2019).

Coda

Le procès aura été mille fois intenté. On peut réciter les yeux fermés les principaux chefs d’accusation. Qu’il s’agisse de la destruction de la biosphère, de l’arraisonnement des esprits par la technoscience, du délitement des résistances, des attaques répétées contre la raison, de la crétinisation des esprits, de la montée des déterminismes (génétique, neuronal, biologique, environnemental), les dangers pour l’humanité sont de plus en plus existentiels.

De tous ces dangers, le plus grand est que toute forme de vie sera rendue impossible. Entre ceux qui rêvent de télécharger notre conscience sur des machines et ceux qui sont persuadés que la prochaine mutation de l’espèce réside en notre affranchissement de notre gangue biologique, l’écart est insignifiant. La tentation eugéniste n’a pas disparu. Au contraire, elle est au fondement des progrès récents des sciences et de la technologie.

Sur ces entrefaites survient ce brusque coup d’arrêt, non pas de l’histoire, mais de quelque chose qu’il est encore difficile de saisir. Parce que forcée, cette interruption n’est pas le fait de notre volonté. A plusieurs égards, elle est a la fois imprévue et imprévisible. Or, c’est d’une ​interruption volontaire, consciente et pleinement consentie dont nous avons besoin, faute de quoi il n’y aura guère d’après. Il n’y aura qu’une suite ininterrompue d’événements imprévus.

Si, de fait, le covid-19 est l’expression spectaculaire de l’impasse planétaire dans laquelle l’humanité se trouve, alors il ne s’agit, ni plus ni moins, de recomposer une Terre habitable parce qu’elle offrira à tous la possibilité d’une vie respirable. Il s’agit donc de se ressaisir des ressorts de notre monde, dans le but de forger de nouvelles terres. L’humanité et la biosphère ont partie liée. L’une n’a aucun avenir sans l’autre. Serons-nous capables de redécouvrir notre appartenance à la même espèce et notre insécable lien avec l’ensemble du vivant ? Telle est peut-être la question, la toute dernière, avant que ne se ferme une bonne fois pour toute, la porte.

https://aoc.media/opinion/2020/04/05/le-droit-universel-a-la-respiration/ 

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

STF - TEMA DE REPERCUSSÃO GERAL - TRATAMENTO MÉDICO. DIREITO À SAÚDE. SOLIDARIEDADE. CIRURGIA. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. VIABILIDADE TÉCNICA. SENTENÇA MANTIDA.

 MANIFESTAÇÃO:

O Senhor Ministro Luís Roberto Barroso (relator):

Ementa: Direito constitucional e sanitário. Recurso extraordinário. Direito à saúde. Custeio pelo Estado de tratamento médico diferenciado em razão de convicção religiosa. Repercussão geral.

1. A decisão recorrida condenou a União, o Estado do Amazonas e o Município de Manaus ao custeio de procedimento cirúrgico indisponível na rede pública, em razão de a convicção religiosa do paciente proibir transfusão de sangue. 

2. Constitui questão constitucional relevante definir se o exercício de liberdade religiosa pode justificar o custeio de tratamento de saúde pelo Estado.

3. Repercussão geral reconhecida.

1. Trata-se de recurso extraordinário interposto pela União contra acórdão da Turma Recursal do Juizado Especial Federal do Amazonas e Roraima, que condenou os três entes federativos ao custeio de tratamento médico não disponível na rede do Estado, assentando que o Poder Público deve garantir o direito à saúde de maneira compatível com as convicções religiosas do cidadão, uma vez que não basta garantir a sua sobrevivência, mas uma existência digna, com respeito às crenças de cada um, nos moldes do art. 1º, III, da Constituição Federal. Confira-se a ementa do acórdão recorrido:

1. Trata-se de recursos inominados interpostos pela União, Estado do Amazonas e Município de Manaus contra sentença que julgou procedente o pedido inicial, condenando, solidariamente, os réus a custear a cirurgia de artroplastia total primária cerâmica, na modalidade Tratamento Fora do Domicílio TFD, em hospital público ou particular, que realize o procedimento sem uso de transfusão de sangue, garantindo ao autor a disponibilização de cobertura assistencial integral (consultas, rotinas médicas, medicamentos etc.) para completa recuperação de sua saúde, e custear ao autor e a um acompanhante passagens aéreas, traslados, hospedagem, alimentação, ajuda de custo etc., para a completa realização do seu tratamento.

(...)

7. Em relação ao argumento de violação ao princípio da isonomia, uma vez que deve haver observância da ordem cronológica dos pacientes, sendo indevido ao Poder Judiciário conhecer as necessidades que não foram demandadas judicialmente, igualmente não prospera. Primeiro, porque tanto o Estado do Amazonas quanto a União não identificam uma lista de pacientes em idêntico quadro médico, o que importaria uma infração à ordem de preferência. Segundo, porque o tratamento cirúrgico requerido é fora do domicílio de Manaus (cirurgia de artroplastia total primária cerâmica), não havendo notícia nos autos de outros pacientes em iguais condições e que, portanto, seriam preteridos acaso deferido o provimento jurisdicional.

8. Por fim, a alegação de impossibilidade de realizar uma cirurgia com a garantia plena de que não haverá transfusão de sangue não tem cabimento se há previsão na técnica médica em sentido contrário. É importante ressaltar que, em sendo tecnicamente possível, o Poder Público deve garantir o direito à saúde de maneira compatível com as convicções religiosas do cidadão, uma vez que não basta garantir a sua sobrevivência, mas uma existência digna, com respeito às crenças de cada um, nos moldes do art. 1º, III, da Constituição Federal. Além disso, tanto o Estado do Amazonas quanto a União, a despeito de dotados de assessoria técnica para tanto, não demonstraram nos autos a impossibilidade do referido procedimento sem transfusão de sangue, limitando-se a levantar indagações sem suporte concreto.

(...)

12. Recursos da União, Estado do Amazonas e Município de Manaus conhecidos e não providos.


2. A União, com fundamento no artigo 102, III, alíneas a e b, da Constituição Federal, pretende a reforma do acórdão, sob a alegação de: (i) ilegitimidade passiva, em razão da diretriz do art. 198, inciso I, da CF/1988, que cuida da descentralização da prestação do serviço de saúde; (ii) afronta ao princípio da isonomia, tendo em vista que o acolhimento do pedido de custeio de tratamento médico criará uma preferência em relação aos demais pacientes; e (iii) violação ao princípio da razoabilidade, uma vez que qualquer procedimento cirúrgico pode ter complicações, exigindo a transfusão de sangue.

 

3. A Procuradoria Geral da República opinou pelo desprovimento do recurso extraordinário. Sustentou que a União não demonstrou a impossibilidade de realização do procedimento sem a transfusão de sangue. Consignou que, para divergir da conclusão do acórdão acerca da necessidade e da viabilidade do procedimento médico, seria preciso reavaliar fatos e provas.

4. A Turma Recursal de origem admitiu parcialmente o recurso, negando trânsito apenas ao capítulo relacionado à ilegitimidade passiva da União. 

5. É o relatório. Passo à manifestação.

6. O recurso extraordinário deve ser conhecido. Como constatado pela Turma Recursal de origem, a questão relacionada ao custeio público de procedimento médico compatível com as convicções religiosas do paciente foi expressamente enfrentada pelo acórdão recorrido. Além disso, o dever de saúde do Estado foi afirmado com base em dispositivos da Constituição, não sendo necessário o exame de legislação infraconstitucional. Não é preciso, ainda, reexaminar fatos e provas, tendo em vista que não está em discussão a necessidade do procedimento cirúrgico reclamado, nem a sua viabilidade. A questão constitucional em exame se restringe a definir se a liberdade de crença e consciência, prevista no art. 5º, inciso VI, da CF, pode justificar o custeio de tratamento médico indisponível na rede pública.

7. O acórdão recorrido afirmou que o direito social à saúde não se limita à garantia de sobrevivência, sendo o dever do Estado mais amplo e relacionado à provisão de condições que assegurem uma existência digna. Afirmou, assim, que não basta ao Poder Público dispor de rede de assistência médica se os serviços de saúde existentes não são compatíveis com as convicções religiosas dos pacientes. Em outras palavras, entendeu-se que equivaleria a uma omissão do Estado não possuir serviço de saúde adequado às convicções do paciente. 

8. A questão constitucional trazida neste recurso extraordinário exige a determinação da extensão de liberdades individuais. É certo que a Constituição assegura, em seu art. 5º, inciso VI, o livre exercício de consciência e de crença. E é igualmente certo que essa liberdade acaba restringida se a conformação estatal das políticas públicas de saúde desconsidera essas concepções religiosas e filosóficas compartilhadas por comunidades específicas. Afinal, dizer que o direito social à saúde é apenas aquele concretizado por uma concepção sanitária majoritária traz em si uma discriminação às percepções minoritárias sobre o que é ter e viver com saúde. A capacidade de autodeterminação, i.e., o direito do indivíduo de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente sua personalidade acabam constrangidas pelo acesso meramente formal aos serviços de saúde do Estado que excluem conformações diversas de saúde e bem-estar. 

9. No entanto, admitir que o exercício de convicção religiosa autoriza a alocação de recursos públicos escassos coloca em tensão a realização de outros princípios constitucionais. Não se pode afastar que a demanda judicial por prestação de saúde não incorporada ao sistema público impõe a difícil ponderação do direito à vida e à saúde de uns contra o direito à vida e à saúde de outros. Nessa linha, exigir que o sistema de saúde absorva toda e qualquer pretensão individual, como se houvesse na Constituição o direito a um trunfo ilimitado, leva à ruína qualquer tentativa de estruturação de serviços públicos universais e igualitários. Dessa forma, deve-se ponderar não apenas qual bem constitucional deve preponderar no caso concreto, mas também em que medida ou intensidade ele deve preponderar. 

10. Assim sendo, a identificação de solução para o conflito potencial entre, de um lado, a liberdade religiosa e, de outro, o dever do Estado de assegurar prestações de saúde universais e igualitárias é matéria de evidente repercussão geral, sob todos os pontos de vista (econômico, político, social e jurídico), em razão da relevância e transcendência dos direitos envolvidos.

11. Diante do exposto, manifesto-me no sentido de reconhecer a repercussão geral da seguinte questão constitucional: saber se o exercício de liberdade religiosa pode justificar o custeio de tratamento de saúde pelo Estado.

12. É a manifestação.

do site: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=6974138


MANIFESTAÇÃO

    O Senhor Ministro Gilmar Mendes

Trata-se de recurso extraordinário interposto em face de acórdão da Turma Recursal da Seção Judiciária de Alagoas, que negou provimento a recurso e manteve decisão que impedira paciente testemunha de Jeová a submeter-se a procedimento cirúrgico sem transfusão de sangue.

    Eis um trecho da ementa desse julgado:

    PROCEDIMENTO CIRÚRGICO. RISCO INERENTE AO PROCEDIMENTO. ISONOMIA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO E SAÚDE PÚBLICA. RECURSO IMPROVIDO.

    1. Recurso da parte autora contra sentença que negou o custeio de procedimento cirúrgico (cirurgia de substituição da válvula aórtica), com base no fundamento de que não há tratamento médico que possa afastar os riscos inerentes ao próprio procedimento, entre eles a eventual necessidade de realização de uma transfusão sanguínea. Aduz que as alternativas constantes no SUS não são compatíveis com a fé professada pela autora.

    2. É inegável o direito do cidadão à assistência estatal direcionada à proteção da saúde, em face do insculpido no art. 196, caput, da Constituição Política de 1988.


    (…)

    8. Destacou o juízo monocrático: Destaco que as declarações médicas trazidas nos documentos médicas 49/55 declaram (o que não se desconhece) a possibilidade da cirurgia ocorrer sem a necessidade de transfusão de sangue. Ocorre que tais documentos não garantem (e não poderiam) que uma transfusão não seja necessária durante o procedimento, mas apenas que, na medida do possível, são evitadas. Ou seja, não existem garantias técnicas de que a cirurgia possa transcorrer, sem riscos para a autora, a partir dos procedimentos médicos por ela pretendidos. Registro não ser o caso de fazer ponderações sobre custos monetários do procedimento, mas do efetivo conhecimento técnico dos profissionais da Santa Casa de Misericórdia, inclusive ponderando sobre o (des)conhecimento de como proceder para cumprir a ordem judicial em caso de hemorragia durante o procedimento cirúrgico. Ressalto que a discussão sobre as possibilidades técnicas do caso em nada diz respeito a um formalismo arcaico ou presta favor a qualquer burocracia estatal, mas busca estabelecer as reais possibilidades médicas para o presente caso, buscando compatibilizar a vontade da parte (calcada em motivos religiosos) e os limites médicos possíveis. O caso dos autos, pois, em tudo difere daquelas hipóteses de ações ajuizadas por unidades hospitalares em face de pacientes para obrigá-los a receber certo tratamento (como feito é exemplo Agravo de Instrumento 0017343-82.2016.4.01, eDJF 08/07/2016, julgado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região). Aqui, ao contrário, existe a busca por uma providência estatal ativa. Como dito linhas acima, não se está a dizer que as opções administrativas são inexpugnáveis ao controle judicial. Na atual quadra de nosso sistema constitucional, a separação entre os poderes precisa ser visto sob uma nova perspectiva, mesmo porque o modelo jurídico do Estado Social dotado de normas que buscam forjar certa realidade exige um Poder Judiciário que interfira, alguma medida, nos demais organismos estatais. O foco da atuação judicial desloca-se, pois, da separação pura e simples dos Poderes para a necessidade de proteger e concretizar os direitos fundamentais. O problema, aqui, é a necessidade de clarividência acerca das opções possíveis médicas e de suas consequências. Não pode ser desconsiderado quando em exame o funcionamento das políticas de saúde a necessária especialização técnica dos órgãos administrativos. Desde assuntos estreitamente vinculados à tecnologia (como energia e telecomunicações), passando por matérias tradicionais (como saúde e educação), os temas relevantes apresentam uma crescente exigência de conhecimentos especializados. À míngua de elementos que permitam concluir pela viabilidade do procedimento médico almejado, não há como fazer prosperar a pretensão autoral. Como visto nos fundamentos acima, não se está negando a possibilidade da fé professada pela autora permitir-lhe um tratamento médico diferente da transfusão de sangue, mas apenas reconhecendo a inexistência, neste momento, de opções médicas viáveis e que possam garantir sua vida diante dessa escolha.

    9. Além disso, é necessário frisar que a concessão de um tratamento diferenciado fere o princípio da isonomia na prestação de serviços públicos. (eDOC 16, p. 1-3)

    No recurso extraordinário, interposto com fundamento no art. 102, III, a, da Constituição Federal, aponta-se violação aos artigos 1º, III; 5º, caput, incisos II, VI e VIII; e 196 do texto constitucional. (eDOC 21, p. 2)

    Nas razões recursais, a parte recorrente alega que a discussão dos autos cinge-se a saber se é legítima a recusa à transfusão de sangue no tratamento de saúde por paciente testemunha de Jeová.

    Sustenta que a paciente, ora recorrente, é pessoa maior de idade, plenamente capaz, lúcida e orientada. Narra que, em razão de doença cardíaca, foi encaminhada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para a Santa Casa de Misericórdia de Maceió, a fim de realizar cirurgia de substituição de válvula aórtica. Afirma que, por ser testemunha de Jeová, decidiu submeter-se ao tratamento de saúde sem o uso de transfusões de sangue alogênico (sangue de terceiros), pretendendo ter resguardado seu direito de autodeterminação com a assunção dos possíveis riscos de um tratamento médico em detrimento de outro.

    Diz que a equipe médica teria concordado com seus termos, com emissão de declaração escrita. Aduz que, entretanto, a diretoria da Santa Casa de Misericórdia de Maceió teria condicionado a realização da cirurgia à assinatura de documento de consentimento, por meio do qual a recorrente deveria conceder autorização prévia para a realização de eventuais transfusões sanguíneas. Argumenta que, diante da impossibilidade de conceder tal autorização, a administração da Santa Casa cancelou o procedimento cirúrgico.

    Nesse contexto, ajuizou ação de obrigação de fazer em face dos entes mantenedores do SUS para obter o tratamento de saúde necessário. Assevera que, inicialmente, o Juizado Especial Federal de Maceió julgou improcedente o pedido, por entender que a recorrente não poderia optar pela realização da cirurgia prescrita sem o uso de transfusões de sangue, uma vez que, segundo seu entendimento, haveria riscos em tal procedimento.

    Após a interposição de recurso inominado, a Turma Recursal dos Juizados Federais da Seção Judiciária de Alagoas manteve a sentença, cuja decisão reconheceu a existência de declarações de profissionais médicos credenciados no SUS, atestando a possibilidade de a cirurgia ocorrer pelo SUS sem a necessidade de transfusão de sangue. Entretanto, negou provimento ao recurso por entender que não existem garantias técnicas de que a cirurgia possa transcorrer, sem riscos para a autora, a partir dos procedimentos médicos por ela pretendidos. Contra essa decisão, opôs embargos de declaração, os quais foram rejeitados.

    A recorrente afirma que sua determinação de se submeter a procedimento médico sem o uso de transfusões de sangue decorre da sua consciência religiosa. Nesses termos, a exigência de consentimento prévio para a realização de transfusões de sangue, como condição para o seu ingresso no centro cirúrgico, ofendeu a sua dignidade e o seu direito de acesso à saúde.

    Argumenta que o direito à vida não constitui direito absoluto, havendo hipóteses constitucionais e legais em que se admite a sua flexibilização. Aduz assim que, na questão posta em análise, cabe tão somente ao indivíduo escolher entre o risco do tratamento que deseja e o risco da transfusão de sangue, devendo o Estado abster-se de interferir em tal escolha existencial legítima, baseada em convicções e valores muito caros, que definem uma testemunha de Jeová enquanto ser humano, sujeito de direitos e merecedor de respeito à sua dignidade.

    Nesse sentido, argumenta afronta à liberdade religiosa, tendo em vista a imposição externa de valores existenciais e a consequente violação da dignidade como autonomia.

    Destaco que, inicialmente, neguei seguimento ao recurso extraordinário, por entender ser aplicável ao caso a Súmula 279, bem como ao fundamento da índole infraconstitucional da matéria, motivo pelo qual foi interposto agravo regimental.

    Entretanto, em nova análise do caso, verifico que a discussão dos autos acerca da legitimidade da recusa à transfusão de sangue no tratamento de saúde por paciente testemunha de Jeová versa sobre matéria constitucional, conforme será demonstrado abaixo. Desse modo, reconsidero a decisão agravada, julgo prejudicado o agravo regimental e passo a novo exame do recurso extraordinário.

    É o relatório.

    Presentes os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário, passo à análise da existência de repercussão geral da matéria constitucional.

    A questão posta nos autos diz respeito à possibilidade de paciente submeter-se a tratamento médico recomendado e disponível na rede pública sem a necessidade de transfusão de sangue, em respeito aos direitos da liberdade religiosa e da dignidade da pessoa humana.

    Verifico que se trata de matéria de inegável relevância, que fixa tese potencialmente direcionada a toda a comunidade que se identifica como testemunha de Jeová. O conflito não se limita, portanto, aos interesses jurídicos das partes recorrentes, razão pela qual a repercussão geral da matéria deve ser reconhecida.

    Ressalto, ademais, que o objeto da presente controvérsia é diversa da discussão posta no tema 952 da sistemática da repercussão geral, cujo paradigma é o RE-RG 979.742, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 9.6.2017, que restou assim ementado:

    Direito constitucional e sanitário. Recurso extraordinário. Direito à saúde. Custeio pelo Estado de tratamento médico diferenciado em razão de convicção religiosa. Repercussão geral. 1. A decisão recorrida condenou a União, o Estado do Amazonas e o Município de Manaus ao custeio de procedimento cirúrgico indisponível na rede pública, em razão de a convicção religiosa do paciente proibir transfusão de sangue. 2. Constitui questão constitucional relevante definir se o exercício de liberdade religiosa pode justificar o custeio de tratamento de saúde pelo Estado. 3. Repercussão geral reconhecida. (RE 979.742 RG, Rel. Min. Roberto Barroso, julg. em 29.6.2017, DJe 31.7.2017)

    A questão ora analisada refere-se à possibilidade de paciente submeter-se a tratamento médico disponível na rede pública sem a necessidade de transfusão de sangue, em respeito a sua convicção religiosa. Por sua vez, a discussão no RE 979.742-RG (tema 952) relaciona-se à determinação da extensão de liberdades individuais, na medida em que pretende definir se a convicção religiosa pode autorizar o custeio, pelo Estado, de tratamento médico indisponível no sistema público, conforme bem assentado pela decisão de admissibilidade do recurso extraordinário (eDOC 26, p. 1-3).

    Nesses termos, o citado paradigma pretende definir se a liberdade de crença e consciência pode justificar que o Poder Público custeie procedimento indisponível no sistema público, para garantir o direito à saúde de maneira compatível com a convicção religiosa.

    Feito esse distinguishing, anote-se que, por sua natureza de direito fundamental, a liberdade religiosa abrange, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva.

    Enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face do Estado ou de particulares. Incluem-se aqui, por exemplo, a liberdade de confessar ou não uma fé e o direito contra qualquer forma de agressão a sua crença.

    Na sua dimensão como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais formam a base do ordenamento jurídico de um Estado de Direito Democrático. No tocante à liberdade religiosa, a manutenção deste quadro de democracia é garantida pela neutralidade religiosa e ideológica do Estado.

    Destaque-se que o alcance dos destinatários da liberdade religiosa não deve ser medido pela força numérica, nem pela importância social de determinada associação religiosa. A liberdade de credo deve ser assegurada de modo igual a todos, desde os membros de pequenas comunidades religiosas aos das grandes igrejas e de seitas exóticas ao círculo cultural (PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 244).


    Nesse contexto, a possibilidade de paciente submeter-se a procedimento cirúrgico com a opção de não receber transfusão de sangue, em respeito a sua autodeterminação confessional, é questão diretamente vinculada ao direito fundamental à liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI), além de outros princípios e garantias constitucionais, como os insculpidos no art. 1º, II e III; art. 3º, I e IV; art. 5º, caput, da CF.

    A relevância constitucional do tema parece-me, pois, evidente.

    Ressalte-se, por fim, que a questão ora exposta é objeto da ADPF 618, proposta pela Procuradoria-Geral da República, de relatoria do Ministro Celso de Mello.

    Dessa forma, concluo que a controvérsia referente ao direito de autodeterminação confessional dos testemunhas de Jeová em submeter-se a tratamento médico realizado sem transfusão de sangue possui natureza constitucional e inegável relevância, além de transcender os interesses subjetivos da causa.

    Diante do exposto, manifesto-me pela existência da repercussão geral para análise do mérito no Plenário.

do site: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=8457698