quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

A teoria da moralidade comum na obra de Beauchamp e Childress

Letícia Erig Osório de Azambuja, Volnei Garrafa

Resumo

A obra “Principles of biomedical ethics”, de Tom L. Beauchamp e James F. Childress, embasadora do principialismo, é o livro mais estudado no campo da bioética, tendo participado decisivamente do processo de consolidação e expansão mundial da disciplina. Seus quatro princípios, contudo, advêm de teorias diferentes: o princípio da autonomia foi retirado da teoria kantiana (Kant); a beneficência, da teoria utilitarista (Mill); a justiça, da teoria da justiça (Rawls); e a não maleficência, da teoria da moralidade comum (Clouser e Gert). A partir da década de 1990, diversas críticas surgiram quanto à homogeneidade epistemológica da proposta. Foram então introduzidas transformações na obra, que são objeto deste estudo, especialmente a teoria da
moralidade comum, incorporada como fundamentação do principialismo, da 4ª edição em diante. O objetivo da pesquisa foi estudar a inclusão da referida teoria ao principialismo, analisando criticamente seu conteúdo a partir das quatro últimas edições do livro.




Palavras-chave

Bioética. Princípios morais. Ética médica. Teoria ética.

LER NA ÍNTEGRA

Rev. bioét. (Impr.). 2015; 23 (3): 634-44 A teoria da moralidade comum na obra de Beauchamp e Childress
http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422015233100

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Roe versus Wade: uma perspectiva bioética da decisão judicial destinada a resolver um conflito entre estranhos morais

LER NA ÍNTEGRA


Universitas JUS, Brasília, n. 18, p. 1-77, jan./jun. 2009 

1
Resumo
Graziela Ramalho Galdino de Morais2

“O homem não é só biologia, mas também biografia e símbolo”. Roberto Luiz d’Ávila

Em 1973, a Suprema Corte dos Estados Unidos proferiu a decisão que declarou inconstitucional qualquer lei que proibisse a interrupção voluntária da gravidez até o segundo trimestre de gestação. Com fundamento na autonomia reprodutiva da mu- lher, segundo o direito à privacidade como liberdade individual e garantia fundamen- tal amparada pela cláusula constitucional do devido processo, a Corte descriminou a conduta em todo o país. Houvera um verdadeiro embate judicial, no qual, de um lado, argumentava-se contra a descriminação da conduta segundo um princípio moral ab- soluto de inviolabilidade da vida humana – que teria sua origem na concepção –, e de outro, a favor, segundo um princípio de tangibilidade da vida, em defesa do reconheci- mento da mulher como agente moral livre para decidir sobre uma gestação e materni- dade voluntária e desejada. A decisão envolve, necessariamente, uma análise no campo da bioética, que permite contemplar um posicionamento ético a partir da controvérsia moral apresentada no caso Roe versus Wade, inserindo-o em um contexto social e hu- mano que ultrapassa a questão do pecado moral ou da ilegalidade para atingir substan- cialmente a vida de muitas mulheres que optam por essa intervenção. A controvérsia sobre o aborto nos Estados Unidos se estende até hoje sem um consenso entre os gru- pos, caracterizados, segundo a teoria de Engelhardt, como estranhos morais, porque não compartilham de um mesmo entendimento sobre o que é moral. Diante dessa realidade moral plural, a tolerância aparece, na teoria de Engelhardt, como virtude para a convivência pacífica em uma sociedade que se pretende democrática.


1 Monografia apresentada como requisito para conclusão do curso de Bacharelado em Di- reito do Centro Universitário de Brasília, 2007. Monografia vencedora da 2a Edição do Prêmio Victor Nunes Leal, do Núcleo de Monografia do UniCEUB. Orientadora: Aline Albuquerque.
2 Graziela Ramalho Galdino de Morais, bacharel em Direito pelo Uniceub especialista em Bioética pela UnB.
page1image19384

Universitas JUS, Brasília, n. 18, p. 1-79, jan./jun. 2009
2|

Palavras-chave: Aborto. Bioética. Ética. Autonomia reprodutiva. Inviolabilidade
da vida. Roe versus Wade. Estranhos morais. Pluralismo moral. Tolerância. 

do site publicações academicas

Zika Vírus: a biopolítica dos úteros

controle das populações ganha nomes originais a depender da época. Já foi eugenia, agora é prevenção. Cada tempo teria sua biopolítica e seus inimigos do bem-estar, permitam-me lembrar Michel Foucault. O infeliz da vez é o zika vírus; e, com pouca originalidade, a população são os úteros das mulheres. O aumento na notificação de recém-nascidos com microcefalia em áreas endêmicas de dengue acendeu a hipótese de que haveria causalidade entre o zika e a má-formação. O Instituto Evandro Chagas encontrou o vírus em tecidos e sangue de um único bebê, e o alarde foi internacional: “Ministério da Saúde confirma relação entre zika vírus e microcefalia”.
Quanta ambiguidade e terror nesse anúncio. Em ciência, “relação” pode ser tudo e nada ao mesmo tempo. Há uma diferença entre causa e relação — o que precisamos saber é se o zika vírus causa a microcefalia no feto. Por que essa diferença importa? Porque relação pode ser erro científico — “o risco de sarampo é maior entre os consumidores de tomates” diz o quê? Que entre as pessoas que gostam de tomate, muitas tiveram sarampo, mas nada sobre a causa do sarampo. Não quero aqui contestar que uma nova descoberta científica possa estar em curso, apenas estranhar como uma hipótese, um único caso de relação comprovada, pode ter sido suficiente para um alerta de saúde pública com consequências importantes para as mulheres. E não quaisquer mulheres, mas as pobres e nordestinas.
Há tempos convivemos com a dengue. O mosquito Aedes aegypti é daqueles cujo nome científico é conhecido sem decoreba de escola. A dengue é doença da vida comum, todas nós conhecemos alguém que já sentiu as dores cortantes do vírus da dengue. A microcefalia no feto é outra ordem de inquietação sanitária — a má-formação não tem cura e, mesmo o diagnóstico sendo feito intraútero, não há direito ao aborto no Brasil. Os dados epidemiológicos anunciam um crescimento de dez vezes nos casos notificados — de pouco mais de cem nos últimos cinco anos, agora identificamos mais de mil recém-nascidos com microcefalia. E os casos são complexos: em alguns bebês, há múltiplas más-formações; em outros, apenas a microcefalia.
Se essa é uma “situação inédita para a pesquisa científica mundial”, segundo o Ministério da Saúde, para a história do controle dos corpos das mulheres, é repetição do já-vivido. A biopolítica tem nas mulheres alvo preferido — não se esperam certezas científicas para anunciar que a melhor prevenção da microcefalia é não engravidar; que para conter o crescimento populacional é preciso restringir número de filhos; que, para que não haja crianças na rua, esterilizar mulheres pobres seria a saída. Esse não é um bom anúncio. A única prevenção ao zika vírus é o controle do mosquito. O resto é política de saúde para amadores.
Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e autora do livro “Cadeia: relatos sobre mulheres” (Civilização Brasileira). Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga https://www.facebook.com/AnisBioetica.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro


Luciana Dadalto 1 , Unai Tupinambás 2 , Dirceu Bartolomeu Greco 3

Resumo
O presente artigo é fruto de tese cujo objetivo geral foi propor um modelo de diretivas antecipadas de vontade para o Brasil. Para tanto, realizou-se uma revisão de literatura sobre as diretivas antecipadas nas Américas e na Europa, especialmente nos Estados Unidos da América e na Espanha, e entrevistas semiestruturadas com médicos oncologistas, intensivistas e geriatras de Belo Horizonte-MG. Percebeu-se que o modelo brasileiro deve se distanciar dos padrões de formulários utilizados em muitos estados norte-americanos e províncias espanholas, visando deixar espaço para a subjetividade de cada paciente. Conclui-se, assim, que o modelo proposto tem o condão de auxiliar o cidadão que deseja fazer sua diretiva antecipada, bem como os médicos que desejam apresentar essa possibilidade para seus pacientes, mas deve ser sempre utilizado como guia e não como um modelo fechado às peculiaridades de cada situação concreta. Palavras-chave: Direito a morrer. Diretivas antecipadas de vontade. Autonomia pessoal.

Leia o artigo

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Corte Especial aprova súmula sobre surdez unilateral em concurso público

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou, na tarde desta quarta-feira (4), a Súmula 552. A nova súmula, relatada pelo ministro Mauro Campbell Marques, estabelece que “o portador de surdez unilateral não se qualifica como pessoa com deficiência para o fim de disputar as vagas reservadas em concursos públicos”.
As súmulas são o resumo de entendimentos consolidados nos julgamentos do tribunal. Embora não tenham efeito vinculante, servem de orientação a toda a comunidade jurídica sobre a jurisprudência firmada pelo STJ, que tem a missão constitucional de unificar a interpretação das leis federais.
Súmulas Anotadas
Na página de Súmulas Anotadas do site do STJ, é possível visualizar todos os enunciados do tribunal juntamente com trechos dos julgados que lhes deram origem, além de outros precedentes relacionados ao tema, que são disponibilizados por meio de links.
A ferramenta, criada pela Secretaria de Jurisprudência, facilita o trabalho dos advogados e demais interessados em informações necessárias para a interpretação e a aplicação da jurisprudência do STJ.
A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou, na tarde desta quarta-feira (4), a Súmula 552. A nova súmula, relatada pelo ministro Mauro Campbell Marques, estabelece que “o portador de surdez unilateral não se qualifica como pessoa com deficiência para o fim de disputar as vagas reservadas em concursos públicos”.
As súmulas são o resumo de entendimentos consolidados nos julgamentos do tribunal. Embora não tenham efeito vinculante, servem de orientação a toda a comunidade jurídica sobre a jurisprudência firmada pelo STJ, que tem a missão constitucional de unificar a interpretação das leis federais.
Súmulas Anotadas
Na página de Súmulas Anotadas do site do STJ, é possível visualizar todos os enunciados do tribunal juntamente com trechos dos julgados que lhes deram origem, além de outros precedentes relacionados ao tema, que são disponibilizados por meio de links.
A ferramenta, criada pela Secretaria de Jurisprudência, facilita o trabalho dos advogados e demais interessados em informações necessárias para a interpretação e a aplicação da jurisprudência do STJ.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

História do Testamento Vital: entendendo o passado e refletindo sobre o presente

 História do Testamento Vital: entendendo o passado e refletindo sobre o presente 

http://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/medicinae/pdfs/med2015-01-03.pdf 

ANGOTTI NETO, Hélio (org.). Mirabilia Medicinæ 4 (2015/1). Virtudes e Princípios no Cuidado com a Saúde Virtues and Principles in Healthcare Virtudes y Principios en la Atención Médica Jan-Jun 2015/ISSN 1676-5818


autora: Luciana DADALTO- Doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG. Mestre em Direito Privado pela PUC-Minas. Sócia fundadora da Dadalto & Carvalho Advocacia e Consultoria em Saúde. Adminstradora do portal www.testamentovital.com.br. Email: contato@testamentovital.com.br


Resumo: O presente artigo tem como objetivo fazer um esforço histórico sobre o testamento vital, analisando seu surgimento e desenvolvimento nos Estados Unidos e a recepção do instituto na Europa e na América Latina. Espera-se, com isso, apresentar para o leitor um panorama do assunto e uma visão crítica sobre o instituto com o fim de questionar a implementação do testamento vital e dos demais instrumentos de manifestação de vontade do paciente no Brasil.

Palavras-chave: História, Testamento Vital, Autonomia do paciente.

clique para ler na íntegra

 RECEBIDO: 20.01.2015 APROVADO: 21.06.2015

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Palestra Cuidados Paliativos


Nova Resolução de Reprodução Assistida

Mulheres com mais de 50 anos poderão utilizar 
técnicas de reprodução assistida desde que assumam
 riscos juntamente com o médico


















As mulheres com mais de 50 anos que queiram engravidar usando as técnicas de reprodução 
assistida não mais precisarão do aval do sistema conselhal, desde que, junto com seu médico, 
assumam os riscos de uma gravidez tardia. Esta é uma das novidades da Resolução nº 2.121/15, 
aprovada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que atualizou normativa anterior, aprovada 
em 2013. “Pela saúde da mulher e da criança, continuamos defendendo o limite máximo
 de 50 anos, mas caso ela, após esclarecimento de seu médico, decida pela gravidez 
e assuma os riscos junto com ele, entendemos ser possível o uso das técnicas de 
reprodução”, esclarece o tesoureiro e coordenador da Câmara Técnica de Ginecologia
 e Obstetrícia do CFM, José Hiran Gallo.

A Resolução 2.121/15 também clarificou pontos no que diz respeito ao uso da Reprodução 
Assistida por casais homoafetivos femininos, permitindo a gestação compartilhada. Ou seja, 
uma mulher pode transferir o embrião gerado a partir da fertilização de um óvulo de sua 
parceira. “Alguns casais e médicos tinham dúvidas quanto a esse tipo de procedimento, 
uma vez que não ficava claro se era doação. Agora, com a nova redação, o CFM afirma 
claramente esta possibilidade entre mulheres”, comenta o especialista em reprodução 
assistida e diretor da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), Adelino Amaral.

Outro ponto aperfeiçoado diz respeito à doação de gametas. Pela norma, os homens podem
 fazer o processo sem restrições, salvo a idade limite, que é de 50 anos. Já para as mulheres, 
a doação fica limitada àquelas que têm até 35 anos e estão, no período do ato, em fase de 
tratamento de reprodução assistida. 

Neste tipo de situação, a paciente doadora pode receber ajuda no custeio do tratamento 
(ou de parte dele) por outra mulher, que também esteja passando o mesmo processo, mas 
não tenha óvulos em condições de serem fertilizados. Assim, a paciente receptora ao
 contribuir com o pagamento de procedimentos e produtos (anestesia, medicamentos, etc) terá 
direito a uma parte dos óvulos  gerados pela doadora. O acordo mediado pela clínica de 
fertilização assegura o anonimato de ambas e não pode, de forma alguma, envolver trocas 
pecuniárias ou vantagens outras que não as relacionadas ao processo de fertilização.

 “Agora, está claro que só podem ser doados gametas masculinos (espermatozoides) e que 
a doação compartilhada de oócitos deve ocorrer quando doadora e receptora têm 
problemas de reprodução. Cortamos o comércio”, defende a representante da Federação 
Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) no Núcleo de Reprodução Assistida do 
CFM, Hitomi Nakagawa.
  
Outro ponto aperfeiçoado diz respeito à doação de gametas, restringindo para os do sexo 
masculino. “Agora, está claro que só podem ser doados gametas masculinos (espermatozoides) 
e que a doação compartilhada de oócitos deve ocorrer quando doadora e receptora têm 
problemas de reprodução. Cortamos o comércio”, defende a representante da Federação 
Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) no Núcleo de Reprodução Assistida do 
CFM, Hitomi Nakagawa.

O novo texto também fez algumas alterações no capítulo que trata do diagnóstico genético 
pré-implantação de embriões. “Graças à evolução da medicina, pais que têm alguma 
incompatibilidade genética podem fazer a seleção, tanto para evitar que outro filho nasça
 com graves problemas de saúde, como para permitir que graças às células-tronco do 
cordão umbilical do filho que vai nascer seja viabilizado o tratamento do irmão doente 
já nascido”, explica o geneticista Salmo Raskin. Neste último caso, as técnicas de 
diagnóstico genético pré-implantação de embriões utilizam a tipagem do sistema HLA, 
que é o ponto do material genético definidor da compatibilidade de órgãos entre as pessoas.

Histórico – A primeira resolução do CFM que trouxe normas éticas para a utilização das 
técnicas de Reprodução Assistida foi a de número 1.358/92, que proibia o uso de técnicas 
com o objetivo de selecionar o sexo ou qualquer característica biológica do futuro filho e a 
doação gratuita de material genético. Não estabelecia limites de idade e definia a transferência 
de até quatro embriões. Previa a doação gratuita e temporária de útero até a segunda geração.

A Resolução 1.958/92 foi substituída pela de número 1.957/10, que manteve parte das regras 
anteriores e acrescentou uma gradação para a transferência de embriões, começando com dois
 para mulheres com até 35 anos, chegando até quatro para àquelas com mais de 40 anos. 
Afirmava que toda pessoa podia ser receptora das técnicas de reprodução assistida e permitia 
a fertilização post mortem, desde que tivesse havido a autorização do falecido (a).

Novos acréscimos foram realizados na Resolução 2.023/13, que estabeleceu o limite de
 idade de 50 anos, ampliou a possibilidade do útero substituição para parentes até quatro 
grau do pai ou da mãe (situações excepcionais poderiam passar pelo crivo do Conselho Regional 
de Medicina), permitiu o uso da técnica para relacionamentos homoafetivos, trazia regras para 
o registro civil da criança pelos pais genéticos, estabelecia o limite para doação de gametas 
(35 anos para mulher e 50 para homens), permitia a doação compartilhada de óvulos e o uso 
da tipagem genética como forma de evitar doenças hereditárias ou para beneficiar filho do 
casal que poderia ser beneficiado pelo transplante de células-tronco.

“Cada resolução reflete os avanços obtidos na área de Reprodução Assistida e a evolução da
 própria sociedade. É natural que o CFM amplie o alcance das normas e faça algumas alterações, 
dentro do objetivo de garantir a segurança da paciente e oferecer um escopo ético para o trabalho 
do médico”, afirma José Hiran da Silva Gallo. O Conselho Federal de Medicina continuará 
acompanhando os avanços científicos e as mudanças sociais e, caso sinta necessidade, 
poderá a editar nova resolução para regulamentar a reprodução assistida.

As atualizações da norma contam a participação de entidades como a Febrasgo, a Sociedade 
Brasileira de Reprodução Humana (SBRA), a Sociedade Brasileira de Genética Médica, 
além de profissionais com atuação reconhecida na área. “A reprodução assistida é um 
procedimento complexo e é importante que haja essa colaboração”, defende o geneticista Salmo
 Raskin.
  
Fertilização in vitro segue em alta no Brasil


Apesar de regulamentar apenas a atuação do médico, as resoluções do CFM sobre a reprodução 
assistida são as únicas normas no Brasil a tratar diretamente do assunto, já que o 
Congresso Nacional ainda não produziu nenhuma lei sobre o assunto. O procedimento, no 
entanto, é cada vez mais comum no Brasil. Segundo o 8º Relatório do Sistema Nacional de
 Produção de Embriões (SisEmbrio), elaborado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária 
(Anvisa), existem no Brasil 106 clínicas de reprodução assistida, que realizaram em 2014 
mais de 60 mil transferências de embriões em pacientes submetidas a técnicas de fertilização in vitro.

Ao longo do ano de 2014, foram registrados 27.871 ciclos de fertilização. Em 2013, foram
 mais de 52 mil transferências de embriões e realizados mais de 24 mil ciclos de fertilização.
 Já no ano passado foram congelados 47.812 embriões nas clínicas de reprodução assistida. 
Deste total, 68% estão em bancos da Região Sudeste; 12% na Região Sul; 12% no Nordeste 
e 8% no Centro-Oeste. Na Região Norte, o número de congelamentos não chegou a 1%. 
Foram doados para pesquisas com células-tronco, 1.110 embriões.

O relatório da Anvisa revela, também, que a taxa média de clivagem (como é chamada a divisão 
que dá origem ao embrião) nas clínicas brasileiras foi de 95%, maior que a média de 2013, de 91%. 
Os valores são compatíveis com os preconizados em literatura, que é de acima de 80%. Já a taxa 
média de fertilização manteve-se em 74%. O percentual é maior que os valores sugeridos em literatura 
internacional, que variam entre 65% a 75%.

Nem os planos de saúde, nem o Sistema Único de Saúde (SUS) são obrigados a custear técnicas 
de reprodução. Contudo, alguns casais já têm conseguido, por meio de decisões judiciais, que os
 planos de saúde arquem com todo o tratamento, inclusive até a paciente engravidar. Quanto ao SUS, 
tramitam projetos de lei no Congresso Nacional que objetivam garantir esta cobertura. Hoje, apenas 
algumas unidades oferecem o tratamento. O Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), o Hospital
 da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e o Hospital das Clinicas de Belo Horizonte, são 
alguns deles.


O que mudou com a Resolução 2.121/15

Resolução 2.013/13
Resolução 2.121/15
Idade máxima para o recebimento de óvulos
Até 50 anos
Após 50 anos, condicionada à fundamentação técnica e científica e desde que médico e pacientes assumam os riscos em termo de consentimento livre e esclarecido.
Idade máxima para a doação de espermatozoides
Até 50 anos
Até 50 anos
Idade máxima para a doação de óvulos
Até 35 anos
Até 35 anos
Número de embriões implantados
Mulheres com até 35 anos – até dois embriões; de 36 a 39 anos - até três; de 40 a 50 anos- quatro embriões (limite máximo).
Regras foram mantidas
Doação de gametas
Não determinava se era feminino ou masculino
Permite apenas a doação de gametas masculinos e proíbe a doação pelas mulheres, salvo no caso detalhado no item doação compartilhada de óvulos.
Doação compartilhada de óvulos
A mulher de até 35 anos em processo de processo de reprodução assistida pode doar óvulos para uma mulher que nos os produz mais, em troca de custeio de parte do tratamento. A doadora tem preferência sobre o material biológico produzido.
Regras foram mantidas
Reprodução assistida feita por homossexuais e solteiros
Homossexuais e solteiros são citados na resolução como elegíveis para o tratamento. O uso da reprodução assistida passa a ser permitido legalmente.
Além das garantias anteriores, foi clarificada a situação das homossexuais femininas, permitindo a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina em que não exista infertilidade.
Descarte de embriões
A clínica deverá manter os embriões congelados por 5 anos. Depois disso, podem descartar ou doar para estudos. A decisão sobre o destino dos embriões deve ser expressa por escrito pelos pacientes no momento da criopreservação.
Manteve o prazo de 5 anos para o congelamento dos embriões antes do descarte e a necessidade de os pacientes expressarem por escrito o que deve ser feito depois desta data. Esclarece que a utilização dos embriões em pesquisas de células-tronco não é obrigatória.
Seleção genética para evitar doenças hereditárias
Permite a seleção genética de embriões com o intuito de evitar que o bebê nasça com doenças hereditárias já apresentadas por algum filho do casal. Também passa a permitir o transplante de células-tronco desse bebê para o irmão mais velho. Veta a escolha do sexo do bebê em laboratório, com exceção dos casos de doenças ligadas ao sexo.
Manteve os critérios anteriores. Esclarece que nos casos de seleções de embriões submetidos a diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças, é possível a doação para pesquisa, ou o descarte.
Útero de substituição
As doadoras temporárias do útero podem pertencer à família de um dos parceiros e ter até o grau de parentesco: mãe (1º grau), irmã (2º grau), tia (3º grau) ou prima (4º grau)
Manteve as regras quanto ao grau de parentesco. Substituiu o termo “contrato” por “termo de compromisso” entre os pacientes e a doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação.
Fertilização post mortem
Permite, desde que haja autorização prévia do falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado.
Regras foram mantidas.


segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Cláusula que veda tratamento domiciliar recomendado por médico é abusiva

O tratamento domiciliar (home care), quando constitui desdobramento da internação hospitalar, deve ser prestado de forma completa e por tempo integral. Esse foi o entendimento da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar recurso especial interposto pela Amil Assistência Médica Internacional S.A.
O caso envolveu a recomendação médica de tratamento domiciliar para paciente que necessita acompanhamento constante, pois sofre de mal de Alzheimer, hipertensão arterial, insuficiência cardíaca e doença pulmonar obstrutiva crônica, além de doenças agravadas por sua incapacidade total de locomoção.
A recomendação foi de acompanhamento home care em regime de 24 horas, mas a Amil, além de fornecer o tratamento domiciliar de forma incompleta, suspendeu o serviço depois de um mês, o que resultou em complicações na saúde da paciente.
O caso foi parar na Justiça. A sentença, confirmada no acórdão de apelação, entendeu pela ilegalidade da suspensão e do serviço prestado de forma deficiente. Foi determinada a continuidade da internação domiciliar e estipulado o pagamento de R$ 5 mil a título de indenização por danos morais.
Liberalidade
No STJ, a empresa alegou que o plano contratado não estabelecia obrigação de assistência médica domiciliar. Afirmou ainda que a assistência foi prestada em conjunto com a família e por mera liberalidade.
O relator, ministro Villas Bôas Cueva, reconheceu que o tratamento médico em domicílio não está no rol de procedimentos mínimos ou obrigatórios que devem ser oferecidos pelos planos de saúde, mas, segundo ele, nos casos em que a internação domiciliar é recomendada em substituição à internação hospitalar, esse direito não pode ser negado de forma automática.
“Qualquer cláusula contratual ou ato da operadora de plano de saúde que importe em absoluta vedação da internação domiciliar como alternativa de substituição à internação hospitalar será abusivo, visto que se revela incompatível com a equidade e a boa-fé, colocando o usuário (consumidor) em situação de desvantagem exagerada” – disse o ministro, citando o artigo 51, IV, da Lei 8.078/90.
Suspensão descabida
Villas Bôas Cueva observou, entretanto, que não se trata de um benefício a ser concedido simplesmente para a comodidade do paciente ou de seus familiares, pois há necessidade de indicação médica. Também se exigem condições estruturais da residência e o não comprometimento do equilíbrio atuarial do plano de saúde.
“Quando for inviável a substituição da internação hospitalar pela internação domiciliar apenas por questões financeiras, a operadora deve sempre comprovar a recusa com dados concretos e dar oportunidade ao usuário de complementar o valor de tabela”, explicou o relator.
No caso apreciado, entretanto, Villas Bôas Cueva definiu como “descabida” a suspensão do tratamento sem prévia aprovação médica e sem ao menos ter sido disponibilizada à paciente a reinternação em hospital.
“Essa atitude ilícita da operadora gerou danos morais, pois submeteu a usuária em condições precárias de saúde à situação de grande aflição psicológica e tormento interior, que ultrapassa o mero dissabor, bem como acabou por agravar suas patologias”, concluiu o relator.

sábado, 19 de setembro de 2015

Tratamento médico e distribuiçao de recursos

O paciente de R$ 800 mil

A história do rapaz que recebe do SUS o tratamento mais caro do mundo revela um dos maiores desafios do Brasil: resolver o conflito entre o direito individual e o direito coletivo à saúde

CRISTIANE SEGATTO



capitulo 1
Como Rafael Favaro ganhou uma briga jurídica e um tratamento de primeiro mundo
Quem acompanha o tratamento médico de Rafael Notarangeli Fávaro – um rapaz de 29 anos formado em gestão ambiental – se convence de que o sistema público de saúde no Brasil é um dos melhores do mundo. Sábado sim, sábado não, ele entra sozinho no próprio carro, um Meriva financiado, e dirige os 84 quilômetros que separam São José dos Campos de São Paulo. Sente-se tão bem-disposto que nem sequer precisa de acompanhante. É atendido com presteza e simpatia quando chega ao Hospital Sírio-Libanês, a instituição de elite famosa por cuidar da saúde das celebridades e dos figurões da República. No 2o andar, Rafael é instalado numa confortável poltrona de couro para receber, numa veia do braço direito, uma dose do tratamento mais caro do mundo. De acordo com um ranking elaborado pela revista americana Forbes, nenhum tratamento clínico é tão dispendioso quanto usar o medicamento Soliris (eculizumab) para amenizar as complicações de uma forma raríssima de anemia, denominada hemoglobinúria paroxística noturna (HPN), causadora de vários problemas que podem levar à morte. O Soliris ainda não é vendido no Brasil. Importado, vem em pequenos frascos. 
O PACIENTE Rafael Fávaro durante tratamento no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Para levar uma vida normal, ele tem  de tomar o remédio  para sempre  (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Cada vidrinho de 30 mililitros custa mais de R$ 11 mil. Em menos de meia hora, a corrente sanguínea de Rafael absorve o conteúdo de três frascos, diluído numa bolsa de soro. São R$ 35 mil a cada 15 dias. Cerca de R$ 70 mil por mês. Mais de R$ 800 mil por ano.
O remédio não cura, mas melhora a qualidade de vida. Se Rafael quiser continuar levando uma rotina normal, precisará receber o Soliris para sempre. Vida normal, no caso dele, significa acordar cedo e trabalhar em horário comercial numa empresa que faz geoprocessamento de imagens de satélite. No final do dia, voltar para casa a tempo de jantar com a mulher, Fabiana, no pequeno apartamento de São José dos Campos emprestado ao casal pelos pais dele. Rafael não precisa se preocupar com o aluguel. Nem com as despesas de seu tratamento. Em cinco anos, os gastos (apenas com o medicamento) ultrapassarão os R$ 4 milhões. Quem paga é o SUS, o Sistema Único de Saúde. Religiosamente. Sem atraso. Como ele conseguiu isso tudo? Como milhares de outros doentes em todo o Brasil, Rafael entrou na Justiça com uma ação contra o governo estadual.
Qualquer um que estivesse na pele dele provavelmente faria o mesmo. Aos 23 anos, recém-casado, ele sofreu uma trombose (formação de coágulos nos vasos sanguíneos que pode provocar infarto, AVC, insuficiência renal ou embolia pulmonar). Poderia ter morrido. Aquele foi apenas o evento mais grave de uma lista de problemas de saúde que o impossibilitavam de trabalhar e viver como um jovem normal. Enfrentou constantes e fortes dores abdominais, uma cirurgia para extrair 21 centímetros do intestino que haviam necrosado, anemia, sucessivas transfusões de sangue. Todo o sofrimento era decorrente da já citada HPN. De uma forma simplificada, pode-se dizer que a HPN é uma anemia crônica causada pela decomposição excessivamente rápida dos glóbulos vermelhos.
Quando recebeu o diagnóstico, Rafael descobriu que pacientes como ele podem ser submetidos a um transplante de medula. É uma alternativa muito mais barata (custa cerca de R$ 50 mil ao SUS) e a única capaz de curar. Apesar disso, nem sequer procurou um doador. Como o tratamento mais caro do mundo estava ao alcance das mãos, considerou que valia a pena optar pela nova droga e evitar os riscos da solução tradicional. O transplante cura metade das pessoas que têm HPN. Mas 30% podem morrer ou ter alguma complicação grave. O Soliris não cura, mas reduz a destruição dos glóbulos vermelhos e os sintomas da doença. Ainda assim, não elimina totalmente o risco de trombose. É por isso que Rafael também precisa tomar anticoagulante para sempre.
Se tivesse de pagar o tratamento do próprio bolso, importar o remédio estaria fora de cogitação. Faria o transplante pelo SUS e teria fé na cura. Várias pessoas, no entanto, o incentivaram a tentar conseguir o Soliris pela via judicial. Um médico de São José dos Campos o encaminhou à capital para ser atendido de graça pelo hematologista Celso Arrais Rodrigues, do Sírio-Libanês. Rodrigues explicou como o Soliris funcionava e indicou uma advogada que entrara com ações contra a Secretaria Estadual de Saúde em nome de outros pacientes. Rodrigues afirma que decidiu cuidar de Rafael e de outros pacientes de HPN sem cobrar nada, por mero interesse científico. Graças a Rodrigues, eles foram incluídos no programa de filantropia do Sírio-Libanês e, por isso, o tratamento inteiro é feito no hospital cinco estrelas. Para o Sírio, o atendimento de doentes como Rafael é vantajoso, porque garante isenção de alguns impostos federais. No final das contas, quem paga o tratamento do rapaz num dos melhores hospitais do Brasil é o contribuinte.
O hematologista Rodrigues diz não ter vínculos com a fabricante do remédio, a americana Alexion. Mas é pago por ela para dar aulas sobre HPN. “A empresa junta um grupo de médicos e me paga para falar sobre a doença e o tratamento”, afirma. Rodrigues indicou a Rafael a advogada Fernanda Tavares Gimenez. Ela é remunerada pela Associação Brasileira de HPN, uma ONG de pacientes que recebe apoio financeiro da Alexion. Fernanda diz cobrar cerca de R$ 5 mil de cada cliente. “No caso do Soliris, não tenho causa perdida”, afirma.
O GESTOR Giovanni Cerri, secretário estadual de Saúde de São Paulo. “A judicialização  da saúde é uma injustiça.  Os mais ricos desviam recursos dos mais pobres”, diz  (Foto: Camila Fontana/ÉPOCA)
A estratégia é insistir no argumento da urgência e sustentar que, sem o remédio, a morte do paciente é iminente. “Sou uma advogada que sai da cadeira. Marco audiências com juízes e desembargadores e explico o caso do paciente pessoalmente.” Alguns magistrados se sensibilizam. Outros, não. São minoria. No ano passado, o governo estadual foi obrigado a fornecer o Soliris a 34 pacientes. Fernanda foi a advogada de 28 deles.
“Isso virou uma grande indústria. Alguns médicos recebem estímulos do fabricante(viagens, benefícios) para prescrever medicamentos de alto custo. As empresas financiam as ONGs de pacientes e a isso tudo se associam os advogados”, diz o secretário de Saúde do Estado de São Paulo, Giovanni Guido Cerri. O ponto de vista de quem enfrenta uma doença grave é outro. “Todos os brasileiros deveriam ter o atendimento que estou recebendo. Não sou melhor que ninguém, mas sinceramente não sei qual é o critério do governo para decidir quem deve viver e quem deve morrer”, diz Rafael.




Capítulo 2 
O que o caso de Rafael ensina sobre a saúde pública brasileira 


Ninguém quer a morte de Rafael. Nem de qualquer outro doente que recorre à Justiça para conseguir outros medicamentos caríssimos.
Mas, quando são obrigados a fornecer remédios caros da noite para o dia (ao preço que o fabricante se dispõe a vender), os gestores do orçamento público da saúde tiram o dinheiro de outro lugar. Com isso, milhares (ou milhões) de cidadãos perdem. A verba destinada à compra de um frasco de Soliris seria suficiente para garantir milhares de doses de anti-hipertensivos e de outros medicamentos baratos que atingem a maior parte da população. Sem interrupções. É preciso reconhecer que priorizar o direito individual em detrimento do direito coletivo tem consequências sobre a saúde pública.
A JUSTIÇA Sessão do Supremo Tribunal Federal. Em 2009, o STF realizou audiências públicas para discutir  a pertinência de ações contra  o SUS. A controvérsia persiste  (Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF)
Se os pacientes ficarem sem esses medicamentos, o resultado pode ser uma trombose, um AVC, um infarto – todas as ameaças que o Estado procura evitar ao fornecê-los a Rafael. Para salvar uma vida, pode abrir mão de muitas outras. “Os recursos para cumprir as demandas judiciais saem do orçamento público para ações prioritárias, como a prevenção básica de problemas de saúde entre os mais pobres”, diz André Medici, economista sênior do Banco Mundial, em Washington. “As demandas judiciais aumentam a iniquidade do sistema de saúde e diminuem a qualidade de vida dos que detêm menos recursos.”
O maior desafio dos administradores públicos é preservar o direito do doente ao melhor tratamento sem que o Estado se torne perdulário. É preciso lembrar que a saúde no Brasil é subfinanciada. O país aplica em saúde cerca de 8,5% do PIB (considerando os gastos públicos e privados). É pouco. A França investe 11%. O México gasta menos que o Brasil (5,9%), mas tem taxas de mortalidade infantil e materna mais baixas, dois parâmetros importantes para avaliar a qualidade da assistência à saúde prestada por um país. O Brasil gasta pouco e gasta mal. Diante das verbas limitadas, um bom gestor é aquele que evita o desperdício de recursos ou o investimento em tratamentos inadequados. A pressão crescente das ordens judiciais impede que isso aconteça.
Em 2005, o Ministério da Saúde foi citado em 387 ações. Gastou R$ 2,4 milhões para atender essas três centenas de pacientes. Em 2011, foram 7.200 ações. A conta disparou para R$ 243 milhões. As ações contra o governo federal são uma pequena parte do problema. Como todas as esferas do Poder Público (federação, Estados e municípios) são corresponsáveis pelo financiamento da saúde, a maioria dos pacientes processa só o secretário municipal, só o estadual ou ambos.
Segundo os advogados, é mais fácil ganhar as ações quando os citados são os gestores das esferas inferiores. O Estado de São Paulo foi o que mais gastou com essas ações em 2010. As despesas chegaram a R$ 700 milhões para atender 25 mil cidadãos. Isso é quase metade do orçamento do governo estadual para a distribuição regular de medicamentos (R$ 1,5 bilhão) a toda a população paulista. Os gastos com as ações judiciais crescem R$ 200 milhões por ano. “Daria para construir um hospital novo por mês”, diz o secretário estadual Giovanni Guido Cerri.
As ações são baseadas no Artigo 196 da Constituição, segundo o qual a saúde é direito de todos e dever do Estado. Nem todos os juízes, porém, interpretam esse artigo como uma obrigação explícita de que o Poder Público deve prover ao paciente todo e qualquer tratamento solicitado. Muitos, no entanto, dão sentenças favoráveis ao doente. Quando isso acontece, o gestor citado é obrigado a fornecer o medicamento rapidamente. Se ignorar a determinação, pode ir para a cadeia.
O Brasil dispõe de uma relação de remédios regularmente distribuídos no SUS. Ela inclui as drogas necessárias para tratar as doenças que afetam a maioria da população. Além dela, existe uma lista de medicamentos excepcionais – em geral, de alto custo. São drogas novas, criadas para tratar doenças raras ou cada vez mais comuns, como o câncer.
As associações de pacientes reclamam que o governo demora a incluir nas listas drogas caras, mas de benefício inegável. Por isso, defendem ações judiciais como uma forma legítima de pressão. “As ações estão crescendo de forma desesperadora para os governos, mas elas os obrigam a arrumar verbas. Se eles arranjam dinheiro para outras coisas, por que não podem conseguir para remédios?”, afirma Fernanda Tavares Gimenez, advogada de Rafael.
Não há dúvida de que alguns pedidos de pacientes são justos e fundamentados. É verdade também que o SUS deveria ser mais ágil na atualização das listas. Muitos juízes, porém, não têm condição técnica de avaliar se um medicamento importado é melhor que o tratamento existente. Nem se sua eficácia foi comprovada. Nem se é capaz de provocar danos irreversíveis ao doente, além de rombos orçamentários.
A expressão “cada cabeça uma setença” se aplica perfeitamente ao caso dos pedidos de medicamentos. O entendimento sobre o assunto varia entre os magistrados. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma série de audiências públicas sobre a questão – e a controvérsia persiste. No Rio Grande do Norte, o juiz Airton Pinheiro negou o pedido de uma paciente que pretendia receber o Soliris. Argumentou que o SUS já oferece um tratamento para a doença (o transplante). E sustentou que o fornecimento desse remédio provocaria um abalo financeiro no orçamento da saúde do Estado, prejudicando toda a coletividade que depende do SUS.
No Ceará, o entendimento foi outro. O Estado foi obrigado a fornecer o Soliris a quatro pacientes. Por enquanto, o governo comprou a droga para dois deles. “O dinheiro necessário para atender os quatro corresponde a 67% do valor repassado pelo governo estadual para a compra de medicamentos básicos do município de Fortaleza inteiro”, afirma Einstein Nascimento, supervisor do departamento que controla os medicamentos de alto custo da Secretaria da Saúde do Ceará. “Esse caso ilustra muito bem o impacto dessas ações sobre o orçamento da saúde pública.”
Nos pequenos municípios, as decisões podem ser arrasadoras. É o caso de Buritama, uma cidade de 15 mil habitantes no interior de São Paulo. O orçamento do município para fornecimento de remédios é de R$ 650 mil por ano. No ano passado, mais da metade foi destinada apenas ao cumprimento de demandas judiciais. Um único paciente pediu na Justiça – e ganhou – uma cirurgia de implante de eletrodos para amenizar o mal de Parkinson. Preço: R$ 108 mil. “Todos os pacientes que entraram na Justiça ganharam a causa. E o Judiciário nem mandou o Estado compartilhar os gastos conosco”, diz Nancy Ferreira da Silva Cunha, secretária de Saúde de Buritama. “Essas ações estão acabando com os pequenos municípios.”
Cada nova ação que chega à Justiça torna explícito o conflito entre o direito individual e o direito coletivo à saúde. Os que administram orçamentos públicos parecem ter a resposta na ponta da língua. “A saúde pública tem de priorizar o interesse coletivo. Os interesses individuais devem ser bancados pelas famílias. É como o transporte público. O transporte é o mesmo para todos. Quem quiser andar de carro importado tem de pagar esse luxo”, diz Cerri, secretário estadual de São Paulo.
Além dos pacientes, quem mais se beneficia da judicialização são as empresas que fabricam os medicamentos. ÉPOCA procurou a Alexion, empresa americana que fabrica o Soliris. Nenhum representante aceitou dar entrevista. Nem no Brasil nem nos Estados Unidos. Em nota preparada pela assessoria de imprensa, a empresa afirmou não comentar suas atividades no Brasil nem o número de brasileiros que atualmente recebem o medicamento.
As ordens judiciais já não estão restritas apenas ao fornecimento de remédios. Além dos gastos com drogas que não estavam previstos no planejamento, em 2011 os juízes obrigaram o governo paulista a fornecer outros itens que consumiram mais R$ 80 milhões. Não são medicamentos, mas os juízes aceitaram a argumentação de que seriam indispensáveis à saúde e, portanto, deveriam ser fornecidos pelo Poder Público. Parece lista de supermercado: sabão de coco em pó, escova de dente, antisséptico bucal, xampu anticaspa, pilhas, copos descartáveis, chupetas, papel toalha, creme fixador de dentaduras, fraldas geriátricas, filtros de água, óleo de soja, creme de leite, fubá, amido de milho, farinha láctea...
Os administradores dos recursos da saúde tentam basear suas decisões em avaliações técnicas do custo e do benefício dos medicamentos. Os orçamentos para comprar remédios estão cada vez mais ameaçados pelos preços altíssimos das novas drogas. Ele é justificado, segundo a indústria farmacêutica, pelo investimento de longos anos em pesquisa refinada e pelo universo relativamente reduzido de consumidores, no caso das doenças raras. Grande parte dos custos nesse setor também está relacionada a investimentos vultosos de marketing para promover as novas marcas.
Os preços elevados combinados ao aumento da parcela da população que sofre de doenças crônicas ameaçam o atendimento à saúde até mesmo nas nações mais ricas. “Nos países desenvolvidos, o tratamento do câncer transformou-se numa cultura de excessos”, escreveu o professor Richard Sullivan numa edição da revista Lancet Oncology, publicada em setembro de 2011. “Diagnosticamos demais, tratamos demais e prometemos demais.” Lá, é cada vez mais frequente a pergunta cruel: é justo que o Estado gaste centenas de milhares de dólares para prolongar a vida de um doente de câncer em apenas dois meses?

Capítulo 3 
E se Rafael fosse inglês? 
O REMÉDIO O Solíris, empregado em casos  como o de Rafael Fávaro. O remédio evita um transplante de medula  – mas sua distribuição abala  o orçamento público de saúde   (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
No caso de doenças raras como a de Rafael, cada país age de uma forma. Na Inglaterra, o governo garante o Soliris apenas aos pacientes que tenham recebido pelo menos quatro transfusões de sangue no último ano. Na Escócia, o governo não paga.
Nos Estados Unidos, alguns planos de saúde oferecem o remédio. A maioria não o garante. O Medicare, o sistema público de saúde para maiores de 65 anos, paga a droga apenas em raras situações. No Canadá, que dispõe de um sistema público de saúde abrangente, apenas uma província (Quebec) garante o Soliris. No Chile e na Argentina, alguns doentes conseguem o remédio ao processar os planos de saúde ou os governos.
É possível fazer diferente. Com critérios técnicos, gestores públicos poderiam decidir como aplicar o orçamento da melhor forma possível, para garantir a saúde do maior número de cidadãos por mais tempo. Existem ferramentas matemáticas capazes de comparar os benefícios oferecidos por diferentes formas de cuidado médico.
Para cuidar disso, o Reino Unido criou o Instituto Nacional para a Saúde e a Excelência Clínica (Nice). Em atividade desde 1999, o órgão faz esses estudos e realiza reuniões com representantes da sociedade (pacientes, médicos, indústria farmacêutica) para debater o que deve ou não ser oferecido pelo National Health Service (NHS), o sistema que banca 95% de toda a saúde no país. O que o Nice decide oferecer vale para todos. Isso não quer dizer que os britânicos estejam satisfeitos com os serviços prestados. Os protestos são constantes. Em 2008, doentes de câncer renal fizeram uma grande mobilização para exigir que o governo oferecesse uma nova droga. O remédio só foi adotado muitos meses depois – mesmo assim para pacientes que preenchiam critérios predeterminados. Não há exemplo, no mundo, de país que tenha um orçamento tão elástico que seja capaz de satisfazer todos os desejos. Há sempre um grupo exigindo mais drogas para alguma doença. Mas, pelo menos, as regras podem ser transparentes e universais. “Economias emergentes como o Brasil enfrentam desafios semelhantes aos do Reino Unido: enquanto as doenças crônicas avançam e demandam mais e mais recursos, os dois países têm de zelar pela equidade no acesso à saúde”, diz Kalipso Chalkidou, uma das diretoras do Nice. “Temos trocado experiências com o governo brasileiro e esperamos estreitar essa parceria em 2012.”
Por enquanto, o volume das decisões judiciais leva o Ministério da Saúde a pedir suplementações orcamentárias ao Congresso Nacional. “Poderíamos estar pedindo esse dinheiro extra para melhorar a atenção básica à população”, afirma Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. “Em vez disso, pedimos dinheiro para bancar medicamentos que podem ser danosos ao cidadão que solicitou um remédio que não foi aprovado pela Anvisa. Isso é uma irracionalidade.”
Em outubro, a presidente Dilma Rousseff regulamentou a Lei no 12.401, que estabelece parâmetros para a inclusão de medicamentos no sistema público. Ela determina que o SUS não deve fornecer medicamentos, produtos ou procedimentos clínicos e cirúrgicos experimentais sem registro na Anvisa. É possível que a lei sirva de parâmetro técnico aos juízes. Muitos advogados, porém, acreditam que sempre será possível argumentar com base na garantia constitucional e, dessa forma, garantir o fornecimento do remédio pelo sistema público.
Além de destinar mais recursos à saúde, o Brasil precisa definir explicitamente o que vai e o que não vai financiar. A regra deve ser clara e válida para todos – indistintamente. É uma decisão dura e impopular, mas é a melhor forma de amenizar a desigualdade. No cenário atual, Rafael é um felizardo. “Melhorei 100% com esse remédio. Parece que foi instantâneo. Logo na primeira infusão, fiquei cheio de pique.” Nas missas de domingo, ele agradece. Toca guitarra enquanto a mãe canta. Com 1,80 metro e 103 quilos, risonho e falante, não poderia parecer mais saudável.