RONALD DWORKIN E A UNIDADE DE VALOR
Paulo de Tarso Dias Klautau Filho
I. INTRODUÇÃO
O mais recente livro de Ronald Dworkin, Justice for Hedgehogs, foi lançado em janeiro último, precedido por grande expectativa no meio acadêmico e jurídico. Antes mesmo da publicação, os manuscritos preliminares foram amplamente discutidos e criticados em aproximadamente trinta papers, apresentados em simpósio promovido pela Boston University Law School no primeiro semestre de 2010. Este material, acompanhado das respostas de Dworkin aos críticos, foi publicado em edição especial da Boston University Law Review 90, nº 2 (abril de 2010), intitulado Symposium: Justice for Hedgehogs: A Conference on Ronald Dworkin’s Forthcoming Book.. Dworkin procurou incorporar as críticas e sugestões ao texto agora oficialmente publicado.
Tamanha expectativa e repercussão prévia atestam o reconhecimento da relevância da contribuição de Dworkin para a filosofia política, a filosofia moral, a filosofia do direito e a teoria da justiça contemporâneas. Em Justice for Hedgehogs, Dworkin propõe uma visão unificada de sua reflexão sobre esses campos do conhecimento ao longo de mais de quarenta anos.
Além disso, o lançamento dessa obra, juntamente com o último livro de Amartya Sen, The Idea of Justice, faz parte das efemérides comemorativas dos simbólicos quarenta anos da publicação, em 1971, da Teoria da Justiça, de John Rawls.
Nesse contexto, as discussões que antecederam à publicação de Justice for Hedgehogs (daqui por diante, Justice) marcam apenas o início de um profícuo debate em torno da questão da justiça distributiva, da “boa vida” e da natureza interpretativa dos conceitos morais, éticos, políticos e jurídicos, tal como abordados por Dworkin.
Na linha de trabalhos dedicados à filosofia do direito que venho propondo em meus artigos para A Leitura, gostaria de desenvolver um texto introdutório das teses apresentadas por Dworkin nesse seu último livro. Espero com isso contribuir para situar e iniciar os interessados na discussão que certamente se seguirá nos próximos anos.
II. RAPOSAS E OURIÇOS
Dworkin defende uma tese filosófica ampla e antiga: a da unidade do valor.
O termo hedgehogs do título corresponde à palavra em língua inglesa para ouriços (porcos-espinhos). Invoca uma frase do poeta grego antigo Arquilochus, tornada famosa pelo filósofo político britânico Isaiah Berlin: “a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa grande”.
Dworkin se pretende um ouriço. Para ele, o valor é uma única coisa grande. A verdade sobre como viver bem e sobre como ser bom é não apenas coerente, mas mutuamente reforçada. Ele tenta ilustrar a unidade entre valores éticos (dizem respeito ao que devemos fazer para viver bem) e morais (dizem respeito ao que devemos uns aos outros), propondo uma teoria sobre o que é viver bem e sobre o que, se queremos viver bem, devemos fazer e não fazer para as demais pessoas. (DWORKIN, 2011, p.1)
Como se vê, o professor da New York University vai além dos horizontes da filosofia do direito e da teoria da justiça. A idéia de que valores morais e éticos dependem uns dos outros é apresentada como um credo, uma proposta de um modo de viver.
Trata-se, também, de uma ampla e complexa teoria filosófica exposta em cinco partes (subdivididas em 19 capítulos): “Independência”, “Interpretação”, “Ética”, “Moralidade” e “Política”.
O livro inicia por temas mais técnicos do mainstream da filosofia contemporânea – meta-ética, metafísica, conhecimento, hermenêutica e significado – até alcançar temas de moralidade política e justiça.
Mas, de acordo com sugestão do próprio Dworkin, na introdução ao livro e na fala de abertura do simpósio na Boston University, passo a expor a presente síntese a partir dos arranjos que o autor considera exigências da justiça, partindo, depois, para as outras temáticas, sempre tentando relacioná-las entre si e com a idéia de unidade de valor, fio condutor de toda a obra.
III. JUSTIÇA
i) Igualdade.
Dentre as exigências do conceito mais amplo de justiça, Dworkin retoma, aqueles que considera como os dois princípios fundantes da legitimidade de qualquer governo, apresentados em Sovereign Virtue (2000), obra em que consolidou sua visão do liberalismo igualitário. Refiro-me aos princípios do igual cuidado (equal concern) e da responsabilidade especial (special responsibility).
O primeiro princípio implica que todo governo deve mostrar igual cuidado pelo destino de cada pessoa sob seu domínio. Pelo segundo princípio, o governo deve respeitar a responsabilidade e o direito de cada pessoa de fazer de sua própria vida algo de valor.
Dworkin examina, então, o impacto desses dois princípios sobre a questão da justiça distributiva, lembrando que não há distribuição politicamente neutra dos recursos de uma nação. Toda distribuição é, em grande parte, a conseqüência das leis e políticas públicas que o governo decide adotar. Desse modo, toda distribuição deverá ser justificada pela demonstração acerca de se e como ela se adéqua aos dois princípios legitimadores já explicitados.
Dworkin testa, primeiramente, a “tese do laissez-faire” (DWORKIN, 2011, pp. 352-354), segundo a qual a economia deve ser dominada por mercados sem restrições, nos quais as pessoas são livres para comprar e vender o seu trabalho como desejarem e puderem. Os adeptos dessa visão sustentam que a justiça traduz-se no fato das pessoas obterem para si o que conseguirem nessa livre disputa. Dworkin questiona se mercados irrestritos conseguem atender ao princípio do igual respeito por todos. Afirma que uma pessoa que perde no jogo do mercado e acaba na pobreza teria o direito de perguntar: “Já que outro conjunto de leis poderia me assegurar uma melhor situação, como posso defender leis que geram a atual distribuição? Como pode o governo afirmar que as leis vigentes me tratam com igual cuidado?”
Segundo Dworkin, não correto a um defensor do laissez-faire sustentar simplesmente que as pessoas são responsáveis pelos seus próprios destinos. Afinal, as pessoas não podem ser responsabilizadas por muito do que determina o sucesso ou insucesso nesse modelo econômico, já que não podem ser consideradas moralmente responsáveis por suas heranças genéticas e por seus talentos inatos (explícita influência da “loteria natural” de Rawls). Conclui que a maior ênfase no princípio da especial responsabilidade não legitima a adoção de um modelo que leve a grandes desigualdades, em detrimento do princípio do igual cuidado.
Examina, então, o outro extremo: um governo que tornasse obrigatória a igualdade de riqueza, não importando as escolhas feitas pelos indivíduos. Periodicamente, este governo recolheria toda a riqueza produzida na sociedade e a redistribuiria igualmente entre todos, sob a justificativa do princípio do igual cuidado. Tal programa de ação não respeitaria, contudo, a responsabilidade das pessoas por suas próprias vidas, porque suas escolhas acerca do que fazer – trabalho ou lazer, poupança ou investimento – não trariam conseqüências pessoais. Mas é parte de qualquer concepção de responsabilidade individual que se possa fazer escolhas com um senso de conseqüências. Em outros termos, as pessoas devem fazer suas escolhas, entre trabalho ou lazer, investimento ou poupança, atentas aos custos de tais escolhas para os demais. Se alguém opta por se dedicar exclusivamente ao lazer ou a um trabalho que não produza o que as demais pessoas precisam ou desejam (como estudar e escrever sobre filosofia...), deve assumir plena responsabilidade pelos custos que a escolha impõe, inclusive a conseqüência de obter menores recompensas no jogo do mercado.
Ante os limites dos dois modelos discutidos, Dworkin aponta que a questão da justiça distributiva deverá ser colocada como a busca de uma solução que respeite simultaneamente os princípios do igual cuidado e da responsabilidade especial. Ele procura fazer isso no Capítulo 16 do livro, retomando o conceito de igualdade de recursos desenvolvido em Sovereign Virtue (DWORKIN, 2000, pp. 65-120) , mas, agora, de modo integrado à sua teoria sobre a unidade de valor.
Além disso, Dworkin enfatiza que seu modelo de justiça distributiva é apenas um primeiro passo para uma teoria da justiça mais geral. É preciso, ainda, considerar outras exigências, como as que envolvem os conceitos de liberdade, democracia e direito.
ii) Liberdade.
A justiça requer uma teoria da liberdade tanto quanto uma teoria sobre a igualdade de recursos. Dworkin alerta para os riscos de que tal teoria da liberdade entre em conflito com a teoria igualitária de justiça distributiva por ele defendida (tal como ocorre na visão libertária do laisse-faire) No Capítulo 17, ele argumenta em favor de uma teoria de liberdade que procura eliminar tal perigo.
Inicialmente, distingue entre duas modalidades de liberdade com base em duas palavras distintas em língua inglesa: freedom e liberty. A primeira consiste na ampla faculdade de se fazer o que se quiser sem qualquer restrição governamental; a segunda diz respeito àquela parte precisa da liberdade-freedom que o governo estaria errado em restringir. Desse modo, Dworkin não aceita um direito geral de liberdade (freedom). Em vez disso, defende um direito de liberdade (liberty) relacionado de maneira complexa com as outras demandas da justiça.
Ele destaca três tipos de argumentos para justificar a liberdade. Primeiramente, precisamos de liberdades, particularmente a liberdade de expressão, porque elas são necessárias para um sistema de governo democrático eficiente e justo. Nessa linha, cabe, também, notar que as pessoas têm direitos de liberdade, como à propriedade e ao devido processo legal, que decorrem do princípio do igual cuidado. Em segundo lugar, temos um direito ao que Dworkin chama de independência ética, a qual decorre do já referido princípio da especial responsabilidade. Alega que temos um direito de fazer escolhas fundamentais sobre o significado e a importância da vida humana. Ele diria, por exemplo, que esse direito foi utilizado pelo Supremo Tribunal Federal no Brasil como fundamento último para admitir a constitucionalidade da lei que regula pesquisas com células-tronco. Em terceiro lugar, diz que temos um direito, também fulcrado na independência ética, de não ter negada nenhuma liberdade quando a justificativa governamental se basear apenas na popularidade ou na alegada superioridade de alguma concepção sobre a melhor maneira de viver. Pense-se na recente decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Para Dworkin, esse modelo da liberdade afasta a possibilidade de conflito com sua concepção de igualdade de recursos, porque as duas concepções seriam plenamente integradas: cada uma delas depende da mesma solução para a equação entre o igual cuidado e a especial responsabilidade. Não se pode determinar o que a liberdade demanda sem também decidir qual distribuição de propriedade e de oportunidades melhor atende ao princípio do igual cuidado. Por isso, nessa abordagem, a visão muito popular de que a tributação invade a liberdade é falsa, desde que aquilo que o governo exige do contribuinte possa ser justificado em bases morais.
Conclui, parcialmente, que uma teoria da liberdade deve ser fundada em uma moralidade política mais ampla, devendo ser coerente e integrada a outros aspectos dessa teoria.
iii) Democracia.
Há outro suposto conflito, segundo Dworkin, entre dois tipos de liberdade: positiva e negativa. A liberdade negativa é a liberdade de interferências do governo; a liberdade positiva é a liberdade de governarmos a nós mesmos participando do governo. Para nós, modernos, a liberdade positiva significa democracia, de maneira que precisamos confrontar a sugestão familiar de que a democracia genuína talvez afronte a justiça ou a igualdade, na medida em que uma maioria pode não respeitar os direitos de indivíduos ou de minorias. É o que ocorre, por exemplo, quando uma maioria vota pela incidência de tributação injusta ou pela restrição a liberdades fundamentais.
Dworkin responde a essa sugestão distinguindo especialmente duas, dentre várias concepções de democracia: a concepção majoritária ou estatística e a “concepção da parceria” (partnership conception). Esta última, defendida por ele, sustenta que numa sociedade genuinamente democrática, cada cidadão participa como um parceiro em igual, o que significa mais do que possuir o poder do voto. Significa ter uma voz igual e um interesse igual nos resultados. Nessa concepção, a própria democracia requer a proteção dos direitos individuais de justiça e liberdade que alguns dizem ameaçados pela democracia.
iv) Direito.
No Capítulo 19, Dworkin discute o direito como parte essencial de seu arranjo político. Lembra que desde os primeiros dias da faculdade somos alertados para o potencial conflito entre direito e justiça. Segundo essa visão, nada garante que as leis são justas; e quando elas forem injustas, as autoridades e os cidadãos deverão, em virtude do Estado de Direito (rule of law), respeitá-las, comprometendo o ideal de justiça.
Por sua vez, na proposta de Dworkin, complementar à visão apresentada em Law’s Empire (1986), o direito é descrito não como algo apartado, paralelo ou mesmo potencialmente conflituoso com moral, mas como um ramo da moralidade.
Enfatiza a importância da chamada justiça procedimental (DWORKIN, 2011, pp. 413-415), destacando a moralidade da forma e da justa governança tanto quanto dos justos resultados. Trabalha com a idéia de que é preciso entender a moralidade em geral como a estrutura de uma árvore: o direito consistiria em um ramo (dotado de executoriedade própria mediante instituições adjudicativas e coercitivas que independem de posterior legislação) da moralidade política, a qual, por sua vez, seria um ramo da moralidade em geral, que também se integraria a uma teoria geral sobre o que é viver bem. Em síntese parcial, para Dworkin, o direito nada mais é do que parte de nossa resposta atual e possível à questão sobre como viver bem.
Até aqui, esboçamos como Dworkin apresenta suas concepções das virtudes políticas, tentando adequá-las umas às outras. De fato, ao longo da obra ele defende que, no âmbito da moralidade política, a integração é uma condição necessária de verdade. Em outros termos, sustenta que devemos nos esforçar para demonstrar que nossas concepções políticas são compatíveis, e que, após detida reflexão, sustentam-se como convicções. Daí, a necessidade de se indagar rigorosamente sobre como demonstrar que uma concepção de igualdade ou de liberdade ou de democracia é correta e as demais são erradas. Como demonstrar e o que significa dizer que um conceito de moralidade política é verdadeiro? Esse, o desafio que Dworkin se dedica enfrentar na Parte Dois do livro: Interpretação.
IV. INTERPRETAÇÃO
Dworkin considera necessário pensar sobre conceitos, para que se possa distingui acerca dos tipos de conceitos que usamos. Entende que partilhamos alguns conceitos, porque partilhamos critérios para sua aplicação. Quando não partilhamos critérios em casos limítrofes, nossa discordância não é real. Exemplifica: em geral concordaremos sobre quantos livros há sobre uma mesa, porque partilhamos o mesmo conceito de livro. Nossa discordância acerca de quantos livros há sobre uma mesa pode ser meramente vocabular. Uma pessoa pode entender que um panfleto é um livro e outra não. Mas elas não discordarão sobre quantos “objetos destinados à leitura” há sobre a mesa. Tal discordância será ilusória.
Mas justiça, liberdade, igualdade, democracia e outros conceitos políticos são diferentes. Certamente, estão entre os conceitos mais importantes que partilhamos, apesar de não partilharmos critérios exatos para sua aplicação. Dworkin sustenta que partilhamos esses conceitos políticos, e outros, de um modo diferente. Eles funcionam para nós como conceitos interpretativos. (o Capítulo 8 é dedicado à definição dessa tipo de conceito).
Partilhamos tais conceitos, porque partilhamos práticas e experiências, nas quais são necessariamente aplicados. Entendemos que os conceitos descrevem valores, mas discordamos, em certo grau, e em alguns casos intensamente, sobre como aquele valor deve ser expresso e sobre o que é aquele valor.
Isso explicaria por que teorias radicalmente distintas de justiça são apresentadas como fundamento para responder o que torna uma instituição justa ou injusta. Essas são discordâncias genuínas, de modo diverso à discordância referida sobre os livros. São discordâncias sobre qual descrição de valores fundamentais em discussão sobre a justiça é a melhor.
E, aqui, já se pode adiantar a resposta de Dworkin a uma das questões que apresentou, “o que é ter uma teoria da igualdade, da liberdade ou do direito?”: temos uma teoria sobre um conceito político quando podemos mostrar quais são os valores a serem realizados nas aplicações daquele conceito. As teorias de justiça utilitaristas dirão, por exemplo, que o valor em jogo é o da felicidade agregada. Outros (com inspiração em Rawls) dirão que são os valores do fair play e da imparcialidade (fairness).
Qual dessas visões, a partir de valores, oferece a melhor compreensão e justificação das práticas ligadas ao conceito de justiça? Qual oferece a melhor justificação de paradigmas de injustiça sobre os quais todos concordamos, como, por exemplo, a condenação de um inocente?
Além disso, cada teoria promove questões ulteriores: o que é felicidade? O que é imparcialidade (fairness)? Provavelmente, pessoas que partilham da mesma teoria discordarão acerca do significado da melhor definição dos seus valores fundamentais. Para argumentar em favor de uma determinada concepção de felicidade ou de imparcialidade, é preciso recorrer a valores ulteriores. E assim por diante. Para Dworkin, compreendemos cada um de nossos valores através da visão de seu lugar numa ampla rede que inclua todos esses valores. Esse fato, afirma, é um argumento importante a favor da sua tese da unidade de valor.
V. VERDADE E VALOR
Dworkin sustenta, expressamente, que há verdades objetivas sobre valor. Ele acredita que algumas instituições são realmente injustas e alguns atos são realmente errados, não importando quantas pessoas acreditem que eles não sejam (invoca o exemplo da tortura de bebês). Pressupõe, portanto, que assertivas sobre valores podem ser verdadeiras ou falsas.
É preciso, então, indagar se esta presunção está correta. Ou as afirmações de valores devem ser compreendidas como expressões de nossas emoções ou construções de nossa personalidade? Ou devemos supor que são compromissos, propostas sobre como pretendemos viver e sobre como sugerimos aos outros que vivam? Para Dworkin, se alguma dessas descrições alternativas for melhor, então seria tolice pensar que afirmações sobre e de valores podem ser falsas ou verdadeiras.
Tais questões são cruciais na discussão de conceitos políticos. Os filósofos que negam que juízos morais ou políticos possam ser verdadeiros, oferecendo aquelas compreensões alternativas sobre seu papel ou função, têm em mente, diz Dworkin, nossas vidas privadas. Afirmam que o melhor é tratar os juízos morais apenas como expressões de atitude ou algo do tipo. Além de não concordar com essa posição acerca de nossas vidas privadas (no Capítulo 9, defende a ideia de que nossa dignidade implica no reconhecimento de que o viver bem não é apenas uma questão de achar individualmente que se vive bem), Dworkin afirma que esse raciocínio é mais grave ainda no âmbito político. A política envolve questões de vida e morte. Por isso, não podemos exercer nossa responsabilidade como governantes ou cidadãos, a não ser que possamos ir além de dizer confortavelmente que: “esta visão sobre o que a igualdade requer me agrada ou expressa minhas atitudes ou estado de espírito acerca de como planejo viver”. Para Dworkin, precisamos ser capazes de dizer: “Isto é verdade”. È certo que outras pessoas discordarão. Mas aqueles que exercem o poder devem, pelo menos, acreditar no que dizem. E isso significa que a velha questão, “a moralidade pode ser verdadeira?”, alcança sua maior importância na moralidade política.
VI. RESPONSABILIDADE
A concordância sobre a possibilidade de veracidade/falsidade de juízos morais e políticos não dispensa reconhecer que discussões sobre o que é falso e verdadeiro não são facilmente resolvidas. Aqueles que discordam a respeito, por exemplo, da justiça de um determinado sistema tributário ou de determinado sistema público universal de saúde, fundados em diferentes teorias da justiça, provavelmente não conseguirão persuadir uns aos outros. Pelo contrário, se a natureza dessas discordâncias sobre moralidade política for tal como sugere Dworkin, elas continuarão se expandindo para outras áreas da teoria moral e ética. As pessoas continuarão a discordar e a discordância se tornará cada vez mais profunda.
Dworkin aponta, então, para outra importante virtude moral: a responsabilidade. Se não podemos exigir concordância de nossos concidadãos, podemos exigir responsabilidade. E precisamos desenvolver uma teoria da responsabilidade moral suficientemente detalhada, de modo que possamos dizer a algumas pessoas: “discordo de você, mas reconheço a integridade de seu argumento. Reconheço a sua responsabilidade.” Ou: “concordo, mas você ‘tirou cara ou coroa’, ou baseou-se apenas no ‘Jornal Nacional’; logo, você formou sua opinião de maneira irresponsável”.
Dworkin chama sua teoria da responsabilidade moral de “epistemologia moral”. Apesar de podermos “tocar a verdade moral”, podemos argumentar bem ou mal acerca de questões morais. Sua teoria da responsabilidade moral é parte de sua teoria mais ampla sobre a interpretação. A argumentação moral, para Dworkin, é uma forma de raciocínio interpretativo. Os juízos morais são interpretações de conceitos morais básicos. Testamos essas interpretações verificando sua adequação a uma rede mais ampla de valores. A moralidade como um todo, e não apenas a moralidade política, caracteriza uma empreitada interpretativa.
Para ilustrar sua posição, ao final do Capítulo 8, Dworkin propõe uma leitura das filosofias (ética, moral e política) de Platão e Aristóteles como paradigmas clássicos da abordagem interpretativa.
VII. ÉTICA e MORALIDADE
Na Parte Três (Capítulos 9 e 10), Dworkin argumenta que cada um de nós tem uma responsabilidade ética de fazer de nossas vidas algo de valor (essa, em síntese, sua definição do campo ético). Na Parte Quatro (Capítulos 11, 12, 13 e 14), sustenta que nossas várias responsabilidades e obrigações para com as outras pessoas (campo da moralidade) decorrem de nossa responsabilidade por nossas próprias vidas. Mas somente em alguns papéis e circunstâncias especiais – principalmente na política – essas responsabilidades para com os outros incluem alguma exigência de imparcialidade entre eles e nós mesmos.
Para reunir coerentemente as várias partes do livro, integrando os valores cuja unidade ele reivindica, Dworkin encontra-se diante da tarefa de conectar ética, moralidade e moralidade política. Para tanto, ele se apóia fortemente em dois princípios éticos (princípios sobre como devemos viver nossas próprias vidas) que se emparelham aos dois princípios cardeais do governo legítimo, inicialmente aqui referidos (igual cuidado e especial responsabilidade).
O primeiro princípio ético é o auto-respeito (integrado ao princípio político do igual cuidado). Decorre da responsabilidade de cada um de nós em levar sua própria vida a sério – pensar que importa como se vive – não se e por que acontece de querermos viver bem, mas porque reconhecemos que essa é nossa responsabilidade. Devemos tentar dar valor às nossas vidas. Dworkin fala em valor adverbial: importa mais como se vive, não o que se deixa para trás. Certamente, algumas pessoas deixam grandes obras e tesouros: grandes poemas, grandes livros e descobertas...
A maioria de nós almeja vivem bem em sentido diverso. Queremos viver bem, diz Dworkin em momento de inspiração aristotélica, do modo como se toca bem uma peça musical ou do modo como se pratica bem um esporte. Isso é suficiente, mais do que suficiente, ele complementa: “é maravilhoso” (DWORKIN, 2011, p. 13).
O segundo princípio ético emparelha-se ao outro princípio soberano da moralidade política (igual responsabilidade). Devemos aceitar a responsabilidade de identificar o que conta como viver bem. Devemos, nós mesmos, fazer isso, sem delegações ou subordinações a terceiros.
Esses dois princípios são substantivos. Eles não são verdadeiros por definição, nem seguem alguma lei imutável da natureza humana. A rigor, eles têm sido, historicamente, mais negados do que afirmados. Apesar disso, Dworkin os oferece como verdadeiros. Ele pretende mostrar, agora em modo kantiano, que muitos de nós já aceitamos esses princípios no modo como vivemos.
Dworkin remete a Kant, para dizer que devemos aceitar que o que torna esses princípios verdadeiros é nossa humanidade. Isso é algo que partilhamos com todos os outros seres humanos. Tal dimensão da moralidade pessoal decorre da ética mais ampla desses princípios. E dessa moralidade pessoal decorre a moralidade política referida inicialmente.
Mas ele alerta que há uma grande diferença entre a moralidade pessoal e a moralidade política: nós, como governantes, em nosso papel político, devemos tratar todos e cada um com igual cuidado; mas, como indivíduos, não temos essa mesma responsabilidade, acredita, Dworkin.
Justifica tal diferença pelo fato da política ser coercitiva. Nela, estamos todos em posição de causar danos aos outros de uma forma que não seria admissível na dimensão da moralidade pessoal. Estamos nessa posição, porque somos parte de uma comunidade, de uma união política.
Numa democracia, todos estamos em posição de causar danos aos demais. Corremos sempre o risco de tiranizar a dignidade dos outros. É preciso, defende Dworkin, encontrar um modo de conciliar esse fato inescapável da política com nossa moralidade pessoal. Ele entende que não é possível fazer isso através de um contrato social: não podemos fazer isso pressupondo um consenso unânime. Podemos e devemos fazê-lo pela aceitação de que essa situação somente poderá ser legítima se todos puderem participar em igualmente em três dimensões: igualdade de voto, igualdade de voz e igualdade de interesse. Igualdade de interesse significa que quando agimos juntos na política, devemos tratar a todos os indivíduos com igual cuidado.
VIII. CONCLUSÃO
A tese filosófica defendida por Dworkin é complexa e bastante abrangente, mas é de leitura acessível. Dworkin escreve com a clareza e elegância que marcam sua forma de raciocínio, além de oferecer, ao longo da obra, vários resumos de argumentos favoráveis e contrários às suas posições.
Suas posições filosóficas apresentam importantes repercussões na forma de ver e pensar o Direito. É, particularmente, inspiradora, provocativa e instigante a idéia de que o Direito é parte de uma teoria geral sobre viver bem.
Como vem fazendo há mais de quarenta anos, Dworkin convoca a nós, profissionais do campo jurídico, para ocuparmos um posto de observação e de reflexão sobre nossas práticas e instituições que nos permita um distanciamento do automatismo e tecnicismo das metas em que nos vemos cotidianamente inseridos. Trata-se também de nossa responsabilidade em praticar bem o bom direito.
Se não pode nos oferecer todas as respostas (o que seria descabido no contexto de uma teoria de argumentação interpretativa), Dworkin é certamente um interlocutor único na construção de nossas próprias convicções.
Espero que o leitor descubra em breve o prazer dessa conversa um dos intelectuais ligados ao universo jurídico mais estimulante de nosso tempo.