sábado, 13 de setembro de 2014

Resumo de Justice for Hedgehogs



RONALD DWORKIN E A UNIDADE DE VALOR
Paulo de Tarso Dias Klautau Filho



Doutor em Teoria Geral e Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo (USP).Master of Laws pela New York University (NYU). Professor do Centro Universitário do Pará (CESUPA). Procurador do Estado do Pará.



I. INTRODUÇÃO

O mais recente livro de Ronald Dworkin, Justice for Hedgehogs[1], foi lançado em janeiro último, precedido por grande expectativa no meio acadêmico e jurídico. Antes mesmo da publicação, os manuscritos preliminares foram amplamente discutidos e criticados em aproximadamente trinta papers, apresentados em simpósio promovido pela Boston University Law School no primeiro semestre de 2010. Este material, acompanhado das respostas de Dworkin aos críticos, foi publicado em edição especial da Boston University Law Review 90, nº 2 (abril de 2010), intitulado Symposium: Justice for Hedgehogs: A Conference on Ronald Dworkin’s Forthcoming Book.[2]. Dworkin procurou incorporar as críticas e sugestões ao texto agora oficialmente publicado.

Tamanha expectativa e repercussão prévia atestam o reconhecimento da relevância da contribuição de Dworkin para a filosofia política, a filosofia moral, a filosofia do direito e a teoria da justiça contemporâneas. Em Justice for Hedgehogs, Dworkin propõe uma visão unificada de sua reflexão sobre esses campos do conhecimento ao longo de mais de quarenta anos.

Além disso, o lançamento dessa obra, juntamente com o último livro de Amartya Sen, The Idea of Justice[3], faz parte das efemérides comemorativas dos simbólicos quarenta anos da publicação, em 1971, da Teoria da Justiça,[4] de John Rawls.

Nesse contexto, as discussões que antecederam à publicação de Justice for Hedgehogs (daqui por diante, Justice) marcam apenas o início de um profícuo debate em torno da questão da justiça distributiva, da “boa vida” e da natureza interpretativa dos conceitos morais, éticos, políticos e jurídicos, tal como abordados por Dworkin.

Na linha de trabalhos dedicados à filosofia do direito que venho propondo em meus artigos para A Leitura, gostaria de desenvolver um texto introdutório das teses apresentadas por Dworkin nesse seu último livro. Espero com isso contribuir para situar e iniciar os interessados na discussão que certamente se seguirá nos próximos anos.

II. RAPOSAS E OURIÇOS

Dworkin defende uma tese filosófica ampla e antiga: a da unidade do valor.

O termo hedgehogs do título corresponde à palavra em língua inglesa para ouriços (porcos-espinhos). Invoca uma frase do poeta grego antigo Arquilochus, tornada famosa pelo filósofo político britânico Isaiah Berlin: “a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa grande”.[5]

Dworkin se pretende um ouriço. Para ele, o valor é uma única coisa grande. A verdade sobre como viver bem e  sobre como ser bom é não apenas coerente, mas mutuamente reforçada. Ele tenta ilustrar a unidade entre valores éticos (dizem respeito ao que devemos fazer para viver bem) e morais (dizem respeito ao que devemos uns aos outros), propondo uma teoria sobre o que é viver bem e sobre o que, se queremos viver bem, devemos fazer e não fazer para as demais pessoas. (DWORKIN, 2011, p.1)

Como se vê, o professor da New York University vai além dos horizontes da filosofia do direito e da teoria da justiça. A idéia de que valores morais e éticos dependem uns dos outros é apresentada como um credo, uma proposta de um modo de viver.

Trata-se, também, de uma ampla e complexa teoria filosófica exposta em cinco partes (subdivididas em 19 capítulos): “Independência”, “Interpretação”, “Ética”, “Moralidade” e “Política”.

O livro inicia por temas mais técnicos do mainstream da filosofia contemporânea – meta-ética, metafísica, conhecimento, hermenêutica e significado – até alcançar temas de moralidade política e justiça.

Mas, de acordo com sugestão do próprio Dworkin, na introdução ao livro e na fala de abertura do simpósio na Boston University, passo a expor a presente síntese a partir dos arranjos que o autor considera exigências da justiça, partindo, depois,  para as outras temáticas, sempre tentando relacioná-las entre si e com a idéia de unidade de valor, fio condutor de toda a obra.

III. JUSTIÇA

i) Igualdade.

Dentre as exigências do conceito mais amplo de justiça, Dworkin retoma, aqueles que considera como os dois princípios fundantes da legitimidade de qualquer governo, apresentados em Sovereign Virtue (2000)[6], obra em que consolidou sua visão do liberalismo igualitário[7]. Refiro-me aos princípios do igual cuidado (equal concern) e da responsabilidade especial (special responsibility).

O primeiro princípio implica que todo governo deve mostrar igual cuidado pelo destino de cada pessoa sob seu domínio. Pelo segundo princípio, o governo deve respeitar a responsabilidade e o direito de cada pessoa de fazer de sua própria vida algo de valor. 

Dworkin examina, então, o impacto desses dois princípios sobre a questão da justiça distributiva, lembrando que não há distribuição politicamente neutra dos recursos de uma nação. Toda distribuição é, em grande parte, a conseqüência das leis e políticas públicas que o governo decide adotar[8]. Desse modo, toda distribuição deverá ser justificada pela demonstração acerca de se e como ela se adéqua aos dois princípios legitimadores já explicitados.

Dworkin testa, primeiramente, a “tese do laissez-faire” (DWORKIN, 2011, pp. 352-354), segundo a qual a economia deve ser dominada por mercados sem restrições, nos quais as pessoas são livres para comprar e vender o seu trabalho como desejarem e puderem. Os adeptos dessa visão sustentam que a justiça traduz-se no fato das pessoas obterem para si o que conseguirem nessa livre disputa. Dworkin questiona se mercados irrestritos conseguem atender ao princípio do igual respeito por todos. Afirma que uma pessoa que perde no jogo do mercado e acaba na pobreza teria o direito de perguntar: “Já que outro conjunto de leis poderia me assegurar uma melhor situação, como posso defender leis que geram a atual distribuição? Como pode o governo afirmar que as leis vigentes me tratam com igual cuidado?” 

Segundo Dworkin, não correto a um defensor do laissez-faire sustentar simplesmente que as pessoas são responsáveis pelos seus próprios destinos. Afinal, as pessoas não podem ser responsabilizadas por muito do que determina o sucesso ou insucesso nesse modelo econômico, já que não podem ser consideradas moralmente responsáveis por suas heranças genéticas e por seus talentos inatos (explícita influência da “loteria natural” de Rawls). Conclui que a maior ênfase no princípio da especial responsabilidade não legitima a adoção de um modelo que leve a grandes desigualdades, em detrimento do princípio do igual cuidado.

Examina, então, o outro extremo: um governo que tornasse obrigatória a igualdade de riqueza, não importando as escolhas feitas pelos indivíduos. Periodicamente, este governo recolheria toda a riqueza produzida na sociedade e a redistribuiria igualmente entre todos, sob a justificativa do princípio do igual cuidado. Tal programa de ação não respeitaria, contudo, a responsabilidade das pessoas por suas próprias vidas, porque suas escolhas acerca do que fazer – trabalho ou lazer, poupança ou investimento – não trariam conseqüências pessoais. Mas é parte de qualquer concepção de responsabilidade individual que se possa fazer escolhas com um senso de conseqüências. Em outros termos, as pessoas devem fazer suas escolhas, entre trabalho ou lazer, investimento ou poupança, atentas aos custos de tais escolhas para os demais. Se alguém opta por se dedicar exclusivamente ao lazer ou a um trabalho que não produza o que as demais pessoas precisam ou desejam (como estudar e escrever sobre filosofia...), deve assumir plena responsabilidade pelos custos que a escolha impõe, inclusive a conseqüência de obter menores recompensas no jogo do mercado.

 Ante os limites dos dois modelos discutidos, Dworkin aponta que a questão da justiça distributiva deverá ser colocada como a busca de uma solução que respeite simultaneamente os princípios do igual cuidado e da responsabilidade especial. Ele procura fazer isso no Capítulo 16 do livro, retomando o conceito de igualdade de recursos desenvolvido em Sovereign Virtue (DWORKIN, 2000, pp. 65-120) [9], mas, agora, de modo integrado à sua teoria sobre a unidade de valor.

Além disso, Dworkin enfatiza que seu modelo de justiça distributiva é apenas um primeiro passo para uma teoria da justiça mais geral. É preciso, ainda, considerar outras exigências, como as que envolvem os conceitos de liberdade, democracia e direito.

ii) Liberdade.

A justiça requer uma teoria da liberdade tanto quanto uma teoria sobre a igualdade de recursos. Dworkin alerta para os riscos de que tal teoria da liberdade entre em conflito com a teoria igualitária de justiça distributiva por ele defendida (tal como ocorre na visão libertária do laisse-faire)   No Capítulo 17, ele argumenta em favor de uma teoria de liberdade que procura eliminar tal perigo.
Inicialmente, distingue entre duas modalidades de liberdade com base em duas palavras distintas em língua inglesa: freedom e liberty. A primeira consiste na ampla faculdade de se fazer o que se quiser sem qualquer restrição governamental; a segunda diz respeito àquela parte precisa da liberdade-freedom que o governo estaria errado em restringir. Desse modo, Dworkin não aceita um direito geral de liberdade (freedom). Em vez disso, defende um direito de liberdade (liberty) relacionado de maneira complexa com as outras demandas da justiça.
Ele destaca três tipos de argumentos para justificar a liberdade. Primeiramente, precisamos de liberdades, particularmente a liberdade de expressão, porque elas são necessárias para um sistema de governo democrático eficiente e justo. Nessa linha, cabe, também, notar que as pessoas têm direitos de liberdade, como à propriedade e ao devido processo legal, que decorrem do princípio do igual cuidado. Em segundo lugar, temos um direito ao que Dworkin chama de independência ética, a qual decorre do já referido princípio da especial responsabilidade. Alega que temos um direito de fazer escolhas fundamentais sobre o significado e a importância da vida humana. Ele diria, por exemplo, que esse direito foi utilizado pelo Supremo Tribunal Federal no Brasil como fundamento último para admitir a constitucionalidade da lei que regula pesquisas com células-tronco. Em terceiro lugar, diz que temos um direito, também fulcrado na independência ética, de não ter negada nenhuma liberdade quando a justificativa governamental se basear apenas na popularidade ou na alegada superioridade de alguma concepção sobre a melhor maneira de viver. Pense-se na recente decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Para Dworkin, esse modelo da liberdade afasta a possibilidade de conflito com sua concepção de igualdade de recursos, porque as duas concepções seriam plenamente integradas: cada uma delas depende da mesma solução para a equação entre o igual cuidado e a especial responsabilidade. Não se pode determinar o que a liberdade demanda sem também decidir qual distribuição de propriedade e de oportunidades melhor atende ao princípio do igual cuidado. Por isso, nessa abordagem, a visão muito popular de que a tributação invade a liberdade é falsa[10], desde que aquilo que o governo exige do contribuinte possa ser justificado em bases morais.
Conclui, parcialmente, que uma teoria da liberdade deve ser fundada em uma moralidade política mais ampla, devendo ser coerente e integrada a outros aspectos dessa teoria.
iii) Democracia.
Há outro suposto conflito, segundo Dworkin, entre dois tipos de liberdade: positiva e negativa. A liberdade negativa é a liberdade de interferências do governo; a liberdade positiva é a liberdade de governarmos a nós mesmos participando do governo. Para nós, modernos, a liberdade positiva significa democracia, de maneira que precisamos confrontar a sugestão familiar de que a democracia genuína talvez afronte a justiça ou a igualdade, na medida em que uma maioria pode não respeitar os direitos de indivíduos ou de minorias. É o que ocorre, por exemplo, quando uma maioria vota pela incidência de tributação injusta ou pela restrição a liberdades fundamentais.
Dworkin responde a essa sugestão distinguindo especialmente duas, dentre várias concepções de democracia: a concepção majoritária ou estatística[11] e a “concepção da parceria” (partnership conception). Esta última, defendida por ele, sustenta que numa sociedade genuinamente democrática, cada cidadão participa como um parceiro em igual, o que significa mais do que possuir o poder do voto. Significa ter uma voz igual e um interesse igual nos resultados. Nessa concepção, a própria democracia requer a proteção dos direitos individuais de justiça e liberdade que alguns dizem ameaçados pela democracia.

iv) Direito.

No Capítulo 19, Dworkin discute o direito como parte essencial de seu arranjo político. Lembra que desde os primeiros dias da faculdade somos alertados para o potencial conflito entre direito e justiça. Segundo essa visão, nada garante que as leis são justas; e quando elas forem injustas, as autoridades e os cidadãos deverão, em virtude do Estado de Direito (rule of law), respeitá-las, comprometendo o ideal de justiça.

Por sua vez, na proposta de Dworkin, complementar à visão apresentada em Law’s Empire (1986)[12], o direito é descrito não como algo apartado, paralelo ou mesmo potencialmente conflituoso com moral, mas como um ramo da moralidade.

Enfatiza a importância da chamada justiça procedimental (DWORKIN, 2011, pp. 413-415), destacando a moralidade da forma e da justa governança tanto quanto dos justos resultados. Trabalha com a idéia de que é preciso entender a moralidade em geral como a estrutura de uma árvore: o direito consistiria em um ramo (dotado de executoriedade própria mediante instituições adjudicativas e coercitivas que independem de posterior legislação) da moralidade política, a qual, por sua vez, seria um ramo da moralidade em geral, que também se integraria a uma teoria geral sobre o que é viver bem. Em síntese parcial, para Dworkin, o direito nada mais é do que parte de nossa resposta atual e possível à questão sobre como viver bem.

Até aqui, esboçamos como Dworkin apresenta suas concepções das virtudes políticas, tentando adequá-las umas às outras. De fato, ao longo da obra ele defende que, no âmbito da moralidade política, a integração é uma condição necessária de verdade. Em outros termos, sustenta que devemos nos esforçar para demonstrar que nossas concepções políticas são compatíveis, e que, após detida reflexão, sustentam-se como convicções. Daí, a necessidade de se indagar rigorosamente sobre como demonstrar que uma concepção de igualdade ou de liberdade ou de democracia é correta e as demais são erradas. Como demonstrar e o que significa dizer que um conceito de moralidade política é verdadeiro?  Esse, o desafio que Dworkin se dedica enfrentar na Parte Dois do livro: Interpretação.

IV. INTERPRETAÇÃO

Dworkin considera necessário pensar sobre conceitos, para que se possa distingui acerca dos tipos de conceitos que usamos. Entende que partilhamos alguns conceitos, porque partilhamos critérios para sua aplicação. Quando não partilhamos critérios em casos limítrofes, nossa discordância não é real. Exemplifica: em geral concordaremos sobre quantos livros há sobre uma mesa, porque partilhamos o mesmo conceito de livro. Nossa discordância acerca de quantos livros há sobre uma mesa pode ser meramente vocabular. Uma pessoa pode entender que um panfleto é um livro e outra não. Mas elas não discordarão sobre quantos “objetos destinados à leitura” há sobre a mesa. Tal discordância será ilusória.

Mas justiça, liberdade, igualdade, democracia e outros conceitos políticos são diferentes. Certamente, estão entre os conceitos mais importantes que partilhamos, apesar de não partilharmos critérios exatos para sua aplicação. Dworkin sustenta que partilhamos esses conceitos políticos, e outros, de um modo diferente. Eles funcionam para nós como conceitos interpretativos. (o Capítulo 8 é dedicado à definição dessa tipo de conceito).

Partilhamos tais conceitos, porque partilhamos práticas e experiências, nas quais são necessariamente aplicados. Entendemos que os conceitos descrevem valores, mas discordamos, em certo grau, e em alguns casos intensamente, sobre como aquele valor deve ser expresso e sobre o que é aquele valor.

Isso explicaria por que teorias radicalmente distintas de justiça são apresentadas como fundamento para responder o que torna uma instituição justa ou injusta. Essas são discordâncias genuínas, de modo diverso à discordância referida sobre os livros. São discordâncias sobre qual descrição de valores fundamentais em discussão sobre a justiça é a melhor.

 E, aqui, já se pode adiantar a resposta de Dworkin a uma das questões que apresentou, “o que é ter uma teoria da igualdade, da liberdade ou do direito?”: temos uma teoria sobre um conceito político quando podemos mostrar quais são os valores a serem realizados nas aplicações daquele conceito. As teorias de justiça utilitaristas dirão, por exemplo, que o valor em jogo é o da felicidade agregada. Outros (com inspiração em Rawls) dirão que são os valores do fair play e da imparcialidade (fairness).

Qual dessas visões, a partir de valores, oferece a melhor compreensão e justificação das práticas ligadas ao conceito de justiça? Qual oferece a melhor justificação de paradigmas de injustiça sobre os quais todos concordamos, como, por exemplo, a condenação de um inocente? 

Além disso, cada teoria promove questões ulteriores: o que é felicidade? O que é imparcialidade (fairness)? Provavelmente, pessoas que partilham da mesma teoria discordarão acerca do significado da melhor definição dos seus valores fundamentais. Para argumentar em favor de uma determinada concepção de felicidade ou de imparcialidade, é preciso recorrer a valores ulteriores. E assim por diante. Para Dworkin, compreendemos cada um de nossos valores através da visão de seu lugar numa ampla rede que inclua todos esses valores. Esse fato, afirma, é um argumento importante a favor da sua tese da unidade de valor.

V. VERDADE E VALOR

Dworkin sustenta, expressamente, que há verdades objetivas sobre valor. Ele acredita que algumas instituições são realmente injustas e alguns atos são realmente errados, não importando quantas pessoas acreditem que eles não sejam (invoca o exemplo da tortura de bebês). Pressupõe, portanto, que assertivas sobre valores podem ser verdadeiras ou falsas.

É preciso, então, indagar se esta presunção está correta. Ou as afirmações de valores devem ser compreendidas como expressões de nossas emoções ou construções de nossa personalidade? Ou devemos supor que são compromissos, propostas sobre como pretendemos viver e sobre como sugerimos aos outros que vivam? Para Dworkin, se alguma dessas descrições alternativas for melhor, então seria tolice pensar que afirmações sobre e de valores podem ser falsas ou verdadeiras.

Tais questões são cruciais na discussão de conceitos políticos. Os filósofos que negam que juízos morais ou políticos possam ser verdadeiros, oferecendo aquelas compreensões alternativas sobre seu papel ou função, têm em mente, diz Dworkin, nossas vidas privadas. Afirmam que o melhor é tratar os juízos morais apenas como expressões de atitude ou algo do tipo. Além de não concordar com essa posição acerca de nossas vidas privadas (no Capítulo 9, defende a ideia de que nossa dignidade implica no reconhecimento de que o viver bem não é apenas uma questão de achar individualmente que se vive bem), Dworkin afirma que esse raciocínio é mais grave ainda no âmbito político. A política envolve questões de vida e morte. Por isso, não podemos exercer nossa responsabilidade como governantes ou cidadãos, a não ser que possamos ir além de dizer confortavelmente que: “esta visão sobre o que a igualdade requer me agrada ou expressa minhas atitudes ou estado de espírito acerca de como planejo viver”. Para Dworkin, precisamos ser capazes de dizer: “Isto é verdade”. È certo que outras pessoas discordarão. Mas aqueles que exercem o poder devem, pelo menos, acreditar no que dizem.[13] E isso significa que a velha questão, “a moralidade pode ser verdadeira?”, alcança sua maior importância na moralidade política.

VI. RESPONSABILIDADE

A concordância sobre a possibilidade de veracidade/falsidade de juízos morais e políticos não dispensa reconhecer que discussões sobre o que é falso e verdadeiro não são facilmente resolvidas. Aqueles que discordam a respeito, por exemplo, da justiça de um determinado sistema tributário ou de determinado sistema público universal de saúde, fundados em diferentes teorias da justiça, provavelmente não conseguirão persuadir uns aos outros. Pelo contrário, se a natureza dessas discordâncias sobre moralidade política for tal como sugere Dworkin, elas continuarão se expandindo para outras áreas da teoria moral e ética. As pessoas continuarão a discordar e a discordância se tornará cada vez mais profunda.

 Dworkin aponta, então, para outra importante virtude moral: a responsabilidade. Se não podemos exigir concordância de nossos concidadãos, podemos exigir responsabilidade.  E precisamos desenvolver uma teoria da responsabilidade moral suficientemente detalhada, de modo que possamos dizer a algumas pessoas: “discordo de você, mas reconheço a integridade de seu argumento. Reconheço a sua responsabilidade.” Ou: “concordo, mas você ‘tirou cara ou coroa’, ou baseou-se apenas no ‘Jornal Nacional’; logo, você formou sua opinião de maneira irresponsável”.

Dworkin chama sua teoria da responsabilidade moral de “epistemologia moral”. Apesar de podermos “tocar a verdade moral”, podemos argumentar bem ou mal acerca de questões morais. Sua teoria da responsabilidade moral é parte de sua teoria mais ampla sobre a interpretação. A argumentação moral, para Dworkin, é uma forma de raciocínio interpretativo. Os juízos morais são interpretações de conceitos morais básicos. Testamos essas interpretações verificando sua adequação a uma rede mais ampla de valores. A moralidade como um todo, e não apenas a moralidade política, caracteriza uma empreitada interpretativa.

Para ilustrar sua posição, ao final do Capítulo 8, Dworkin propõe uma leitura das filosofias (ética, moral e política) de Platão e Aristóteles como paradigmas clássicos da abordagem interpretativa.

VII. ÉTICA e MORALIDADE

Na Parte Três (Capítulos 9 e 10), Dworkin argumenta que cada um de nós tem uma responsabilidade ética de fazer de nossas vidas algo de valor (essa, em síntese, sua definição do campo ético). Na Parte Quatro (Capítulos 11, 12, 13 e 14), sustenta que nossas várias responsabilidades e obrigações para com as outras pessoas (campo da moralidade) decorrem de nossa responsabilidade por nossas próprias vidas. Mas somente em alguns papéis e circunstâncias especiais – principalmente na política – essas responsabilidades para com os outros incluem alguma exigência de imparcialidade entre eles e nós mesmos.

Para reunir coerentemente as várias partes do livro, integrando os valores cuja unidade ele reivindica, Dworkin encontra-se diante da tarefa de conectar ética, moralidade e moralidade política. Para tanto, ele se apóia fortemente em dois princípios éticos (princípios sobre como devemos viver nossas próprias vidas) que se emparelham aos dois princípios cardeais do governo legítimo, inicialmente aqui referidos (igual cuidado e especial responsabilidade).

O primeiro princípio ético é o auto-respeito (integrado ao princípio político do igual cuidado). Decorre da responsabilidade de cada um de nós em levar sua própria vida a sério – pensar que importa como se vive – não se e por que acontece de querermos viver bem, mas porque reconhecemos que essa é nossa responsabilidade. Devemos tentar dar valor às nossas vidas. Dworkin fala em valor adverbial: importa mais como se vive, não o que se deixa para trás. Certamente, algumas pessoas deixam grandes obras e tesouros: grandes poemas, grandes livros e descobertas...

A maioria de nós almeja vivem bem em sentido diverso. Queremos viver bem, diz Dworkin em momento de inspiração aristotélica, do modo como se toca bem uma peça musical ou do modo como se pratica bem um esporte. Isso é suficiente, mais do que suficiente, ele complementa: “é maravilhoso” (DWORKIN, 2011, p. 13).

O segundo princípio ético emparelha-se ao outro princípio soberano da moralidade política (igual responsabilidade). Devemos aceitar a responsabilidade de identificar o que conta como viver bem. Devemos, nós mesmos, fazer isso, sem delegações ou subordinações a terceiros.

Esses dois princípios são substantivos. Eles não são verdadeiros por definição, nem seguem alguma lei imutável da natureza humana. A rigor, eles têm sido, historicamente, mais negados do que afirmados. Apesar disso, Dworkin os oferece como verdadeiros. Ele pretende mostrar, agora em modo kantiano, que muitos de nós já aceitamos esses princípios no modo como vivemos.

Dworkin remete a Kant, para dizer que devemos aceitar que o que torna esses princípios verdadeiros é nossa humanidade.  Isso é algo que partilhamos com todos os outros seres humanos. Tal dimensão da moralidade pessoal decorre da ética mais ampla desses princípios. E dessa moralidade pessoal decorre a moralidade política referida inicialmente.

Mas ele alerta que há uma grande diferença entre a moralidade pessoal e a moralidade política: nós, como governantes, em nosso papel político, devemos tratar todos e cada um com igual cuidado; mas, como indivíduos, não temos essa mesma responsabilidade, acredita, Dworkin. 

Justifica tal diferença pelo fato da política ser coercitiva. Nela, estamos todos em posição de causar danos aos outros de uma forma que não seria admissível na dimensão da moralidade pessoal. Estamos nessa posição, porque somos parte de uma comunidade, de uma união política.

Numa democracia, todos estamos em posição de causar danos aos demais. Corremos sempre o risco de tiranizar a dignidade dos outros. É preciso, defende Dworkin, encontrar um modo de conciliar esse fato inescapável da política com nossa moralidade pessoal. Ele entende que não é possível fazer isso através de um contrato social: não podemos fazer isso pressupondo um consenso unânime. Podemos e devemos fazê-lo pela aceitação de que essa situação somente poderá ser legítima se todos puderem participar em igualmente em três dimensões: igualdade de voto, igualdade de voz e igualdade de interesse. Igualdade de interesse significa que quando agimos juntos na política, devemos tratar a todos os indivíduos com igual cuidado.

VIII. CONCLUSÃO

A tese filosófica defendida por Dworkin é complexa e bastante abrangente, mas é de leitura acessível. Dworkin escreve com a clareza e elegância que marcam sua forma de raciocínio, além de oferecer, ao longo da obra, vários resumos de argumentos favoráveis e contrários às suas posições.

Suas posições filosóficas apresentam importantes repercussões na forma de ver e pensar o Direito. É, particularmente, inspiradora, provocativa e instigante a idéia de que o Direito é parte de uma teoria geral sobre viver bem.

Como vem fazendo há mais de quarenta anos, Dworkin convoca a nós, profissionais do campo jurídico, para ocuparmos um posto de observação e de reflexão sobre nossas práticas e instituições que nos permita um distanciamento do automatismo e tecnicismo das metas em que nos vemos cotidianamente inseridos. Trata-se também de nossa responsabilidade em praticar bem o bom direito.

Se não pode nos oferecer todas as respostas (o que seria descabido no contexto de uma teoria de argumentação interpretativa), Dworkin é certamente um interlocutor único na construção de nossas próprias convicções.

Espero que o leitor descubra em breve o prazer dessa conversa um dos  intelectuais ligados ao universo jurídico mais estimulante de nosso tempo.



[1] DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge-MA: The Belknap Press of Harvard University Press, 2011.
[2] Acessível em:  http://www.concurringopinions.com/archives/2010/05/boston-university-law-review-902-april-2010.html.
[3]SEN, Amartya. The Idea of Justice. Cambridge-MA: The Belknap Press of Harvard University Press, 2011.
[4] RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução: Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
[5] BERLIN. Isaiah. The Hedgehog and the Fox: An Essay on Tolstoy’s View of History.London: Weidenfeld and Nicholson, 1953, p. 3. Berlin propõe uma já clássica distinção entre escritores e pensadores, dividindo-os entre ouriços, os quais veem o mundo através das lentes de uma única ideia definidora (Platão, Dante, Pascal, Hegel, Dostoievsky, Nietzsche); e raposas, que refletem sobre uma ampla variedade de experiências e para quem visões de mundo não podem ser sintetizadas por uma única ideia definidora (Heródoto, Aristóteles, Erasmo, Shakespeare, Montaigne, Moliere, Goethe).
[6] DWORKIN, Ronald. Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality. Cambridge-MA: Harvard University Press, 2000, pp. 4-7.
[7] Ver: GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. Tradução: Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008; VITTA, Álvaro de. A justiça igualitária e seus críticos. 2a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[8] Sobre a aplicação dessa perspectiva à relação entre tributação e justiça, veja-se a seguinte obra que surgiu também do Colóquio sobre Filosofia Social, Política e do Direito coordenado por Dworkin e Thomas Nagel na New York University: NAGEL, Thomas; MURPHY, Liam. O mito da propriedade: os impostos e a justiça. Tradução Marcelo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[9] Para uma breve síntese, ver: KLAUTAU FILHO, Paulo de Tarso Dias. Igualdade e Liberdade: Ronald Dworkin e a Concepção Contemporânea de Direitos Humanos.Belém: Editora CESUPA, 2004, pp. 85-109.
[10] Ver: NAGEL e MURPHY, 2005, pp. 11-14; 55-93.
[11] Ver: DWORKIN, R. Freedom´s law: the moral reading of the American Constitution.Cambridge: Harvard University, 1999, pp. 1-35.
[12] DWORKIN, Ronald. O Império do Direto. Tradução: Jefferson Luiz  Camargo. São Paulo: Matins Fontes, 2007.
[13] Sobre verdade no domínio ontológico e verdade no domínio moral, ver: KLAUTAU FILHO, Paulo. O Direito dos cidadãos à verdade perante o poder público. São Paulo: Editora Método; Belém Editora CESUPA, 2008, pp. 22-30.

do site Filósofo Grego

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Neurobiologia da Personalidade

 
 
Temas e Prática do Psiquiatra
V. 32      N.62-63
P. 1-152
Jan / Dez 2002
São Paulo
 
Décio Gilberto Natrielli Filho

      Resumo
      O estudo da personalidade envolve diferentes campos da psiquiatria e psicologia, recebendo influências da antropologia, sociologia, filosofia e, atualmente, mais do que nunca, da biologia e da genética. Este trabalho tem como objetivo o estudo dos fatores biológicos envolvidos na determinação dos traços de personalidade e de seus distúrbios, citando contribuições dos diversos campos da psiquiatria, com uma ênfase no modelo dimensional de Cloninger e col. do temperamento e caráter e suas aplicações para o estudo do comportamento humano.
      Unitermos: Personalidade, Neurotransmissores, Psicobiologia
      Introdução
      Gordon Alport definiu a personalidade como “uma organização dinâmica, dentro do indivíduo, daqueles sistemas psicofísicos que determinam seus ajustamentos únicos ao ambiente”. O termo “organização dinâmica” enfatiza o fato de que personalidade está constantemente se desenvolvendo e mudando, embora, ao mesmo tempo, exista uma organização ou sistema que une e relaciona os vários componentes da personalidade. O termo “psicofísico” lembra que a personalidade não é nem exclusivamente mental nem exclusivamente neural. A organização envolve a operação do corpo e da mente, inextrincavelmente fundidos em uma unidade pessoal. A palavra “determinam” deixa claro que a personalidade é constituída por tendências determinantes que desempenham um papel ativo no comportamento do indivíduo: “ A personalidade é alguma coisa e faz alguma coisa... Ela é o que está por trás de atos específicos e dentro do indivíduo”.
      É amplamente aceito que a personalidade se desenvolve através da interação de disposições hereditárias e influências ambientais. Do ponto de vista estrutural, a maioria dos autores concordam que a personalidade consiste de temperamento, caráter e inteligência. Resumidamente, o temperamento reflete as contribuições biológicas e o caráter reflete as contribuições culturais e sociais para a personalidade. A inteligência influencia tanto os traços constitucional e social e modifica as funções da personalidade em uma totalidade. As funções básicas da personalidade são sentir, pensar e incorporar estes em comportamentos intencionais.
      Para Kurt Schneider, “A personalidade compreende os sentidos, as tendências não corpóreas e a vontade. Esses três aspectos com certa razão, isoladamente.”. Com uma grande importância conceitual, separa “no ser psíquico individual, dentre inúmeras características particulares”, três complexos de propriedades: a inteligência, a vida dos sentimentos e impulsos corpóreos (vitais) e a personalidade. Wang e col. complementam afirmando que, “a partir desta visão, o indivíduo é constituído de três partes: personalidade, funções cognitivas e sentimentos e instintos vitais que estão em íntimas relações recíprocas”.
      Theodore Millon, citado por Gunderson col., declarou que a personalidade consiste de modos de funcionamento psicológico arraigados, difusos, resistentes e habituais que caracterizam o estilo de um indivíduo. Nas palavras de Millon, “dada uma continuidade no equipamento biológico básico, e uma faixa estreita de experiências para aprender alternativas comportamentais, a criança desenvolve um padrão distintivo de características que estão fortemente enraizadas, não podem ser facilmente erradicadas e penetram em cada faceta de seu funcionamento. Em resumo, estas características são e essência e a soma da sua personalidade, sua maneira automática de perceber, sentir, pensar e comportar-se”.
      Portanto, segundo Millon, quando falamos de um padrão de personalidade, estamos nos referindo a essas maneiras de funcionamento intrínsecas e penetrantes que emergem de toda a matriz de história do desenvolvimento do indivíduo e que agora caracterizam suas percepções e seus modos de lidar com o seu ambiente.
      Nenhum grupo demográfico está imune aos transtornos de personalidade (TP). Estima-se que a prevalência para estes transtornos na população geral varie de 11 a 23 %, dependendo da severidade do comprometimento requerido para o diagnóstico. Estes indivíduos apresentam prejuízos a longo prazo em sua capacidade para trabalhar e amar e tendem ser menos educados, solteiros, toxicômanos, desempregados e apresentam dificuldades nos relacionamentos conjugais. Ainda mais, vários perpetradores de crimes violentos ou não, assim como a maioria dos internos de penitenciárias, apresentam um transtorno de personalidade.
      Por definição, um transtorno de personalidade desenvolve-se já na infância ou na adolescência, permanece relativamente imutável ao longo da vida do indivíduo e constitui o seu modo habitual de ser. O transtorno de personalidade leva a algum grau de sofrimento (angústia, solidão, sensação de fracasso pessoal, dificuldades nos relacionamentos); contudo, este sofrimento pode se tornar aparente apenas tardiamente em sua vida. Wang e col. descrevem também que o conceito desenvolveu-se a partir da observação de criminosos, conotando freqüentemente um caráter pejorativo nas suas sinonímias: psicopatia, sociopatia, personalidade dissocial ou anti-social, insanidade moral entre outros. Sonenreich e col. propõem que “o diagnóstico de Personalidades Patológicas pode ter sido justificado pela necessidade de situar condutas anormais, em geral anti-sociais, praticadas por pessoas sem doenças qualificadas, que as tornem incapazes de entender a natureza de seus atos ou de controla-los”.
      Em psiquiatria, aproximadamente metade de todos os pacientes apresentam um transtorno de personalidade, freqüentemente em comorbidade com transtornos do Eixo I. Os fatores de personalidade interferem com a resposta ao tratamento de todas as síndromes do Eixo I e aumentam a incapacitação pessoal, a morbidade e a mortalidade destes pacientes. Transtornos de personalidade são fatores predisponentes para vários transtornos psiquiátricos, incluindo abuso de substâncias, suicídio, transtornos do humor, transtorno do controle dos impulsos, transtornos alimentares e ansiosos.
      Por estes e vários outros motivos o estudo da personalidade, desde sua descrição histórica até os modelos neurobiológicos e psicológicos atuais, tem importância na prática clínica dos hospitais e ambulatórios. A dificuldade no manejo dos casos que apresentam alterações significativas do funcionamento e convívio diário, dos pacientes em relação ao seu meio (externo e interno), pode ser facilitado pelo conhecimento dos diversos modelos sobre a personalidade ou dos seus transtornos e alterações.
      Este trabalho tem como objetivo descrever principalmente os modelos neurobiológicos (e psicobiológicos) sobre o temperamento, caráter, motivação, traços e definições sobre a personalidade e contribuições da psicologia e psicanálise para este área da psiquiatria.
      O Kaplan & Sadock´s Comprehensive Textbook of Psychiatry (seventh edition) descreve um modelo que engloba níveis filogenéticos hierárquicos do aprendizado e os relaciona com o desenvolvimento ontogenético do temperamento, caráter e conseqüentemente da personalidade. Alguns termos que foram traduzidos para a realização deste trabalho merecem ser detalhados. Para as dimensões do temperamento temos harm-avoidance, novelty seeking, reward dependence e persistence, os quais foram traduzidos respectivamente como: esquiva (evitar danos), exploratório (busca de novidades), dependência por recompensa (ou gratificação) ou dependente e persistência. Nas dimensões do caráter temos self-directedness, cooperativeness e self-transcendent, que foram traduzidos respectivamente como: auto-direcionamento, cooperatividade e auto-transcendência. Também temos que especificar os termos proposicional e procedural, correspondentes às palavras propositional e procedural respectivamente, que serão utilizadas para descrever as formas de memórias e de aprendizado para o modelo neurobiológico do temperamento e caráter.
       Evolução Histórica do Conceito – Tipologias Humanas ou Tipos de Personalidade
      A primeira tipologia desenvolvida na história da medicina e da psicologia foi a resultante das concepções da escola hipocrática-galênica. Os escritos do médico Hipócrates de Cós (cerca de 460-377 a.C.) propunham a visão de que o corpo humano contém quatro humores essenciais – fleuma, bile amarela, bile negra e sangue - que eram secretados por diferentes órgãos, possuíam diferentes qualidades e variavam de acordo com as estações do ano. Nesse sentido, todas as questões médicas repousam sobre a teoria dos quatro elementos do filósofo pré-socrático Empédocles (500-430 a.C.), a saber: água, terra, ar e fogo. O cérebro era considerado como sendo a sede da vida e seu funcionamento normal exigia um equilíbrio entre os humores. Colp, cita o exemplo de que um excesso de fleuma levaria a uma forma de demência, a bile amarela causaria a raiva maníaca e a bile negra causaria a melancolia. Os aspectos psicológicos mais característicos dos quatro temperamentos são: Sangüíneo, Fleumático ou Linfático, Colérico ou Bilioso e Melancólico ou Atrabiliário. Esta teria sido a primeira tentativa de explicar as diferenças de temperamentos e personalidades, dando início, portanto, a um incessante estudo de classificações, tipologias e teorias, que se prolonga até a atualidade.
      Dentre os importantes filósofos da época, Platão (427-347 a.C.) dividia a alma em três partes: racional, apetitiva (desejos e ganância) e espiritural-afetiva. A loucura ocorria quando a alma apetitiva perdia a influência sobre a alma reacional ou quando uma perturbação divina da alma produzia um comportamento destrutivo. Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, foi o primeiro a realmente descrever os afetos de desejo, raiva, medo, coragem, inveja, alegria, ódio e pesar.
      O conceito de transtorno de personalidade remonta ao século XIX. Pinel (1754-1826) descreveu o quadro de manie sans délire em 1809, cuja característica era o prejuízo das funções afetivas, particularmente instabilidade emocional e tendência dissocial, sem prejuízo da função intelectual e cognitiva. Tal concepção também aparece nos escritos de Esquirol sobre as monomanias afetivas e instintivas, em 1838.
      Também no final do século XIX e início do século XX, podemos descrever uma teoria de doença mental descrita por dois psiquiatras franceses, Benedict-Augustin Morel (1809-1873) e Valentin Magnan (1835-1916), na qual salienta a hereditariedade como um importante fator no desenvolvimento das doenças mentais. Afirmavam que a predisposição poderia ativar-se lentamente e se transformar em uma doença pela transmissão repetitiva de pai para filho ou por ação de estímulos externos. Colp cita o psiquiatra italiano Cesare Lombroso (1836-1909), que em seus escritos O Homem Delinqüente, de 1876, e A Mulher Criminosa, de 1893, postulava que os criminosos representavam um fenômeno de degeneração biológica que podia ser identificado com base na aparência.
      Em 1835, Prichard, citado por Rutter, apresentou a descrição da “insanidade moral”, generalizando a concepção de Pinel. Maudsley, em 1874, falou da “privação congênita de senso moral”. O termo psicopatia foi introduzido por Koch em 1891, este autor afirmava que “até mesmo nos piores casos as irregularidades não seriam equivalentes a um distúrbio mental”, referindo-se a este último como os casos de insanidade e idiotia. Seu conceito de “inferioridades psicopáticas” envolvia a maioria das doenças mentais “não-psicóticas” bem como o que atualmente chamamos de transtorno de personalidade ou psicopatia.
      Kurt Schneider publicou, em 1923, a monografia Personalidades Psicopáticas, que ainda hoje é citada como guia para a compreensão do tema. Escreveu que “as personalidades anormais são variações de uma faixa média que se tem em mente. Decisivo é o critério do termo médio, não uma norma de valor; Entre as personalidades anormais e os estados a serem classificados como normais há sempre transições sem limite algum”. Das personalidades anormais distingue como personalidades psicopáticas “aquelas que sofrem com sua anormalidade ou que assim fazem sofrer a sociedade. Ambas as espécies que cruzam. Cientificamente, o único conceito essencial é o de personalidade anormal no qual está incluído o conceito de personalidade psicopática”. Procura também, “em princípio”, distinguir rigorosamente as personalidades anormais das psicoses ciclotímicas e esquizofrênicas “que, com boas razões, são hipoteticamente mórbidas”.
      Schneider descreveu dez tipos de personalidade: hipertímicos, depressivos, inseguros de si (com os subtipos ansioso e obsessivo), fanáticos, necessitados de valorização, lábeis de humor, explosivos, frios de sentimentos, abúlicos e astênicos. Ele acentuou que descreveu os tipos predominantes e não as categorias distintas; a superposição entre os vários tipos é freqüente.
      Sigmund Freud, citado por Hall e col., foi provavelmente o primeiro teórico a enfatizar os aspectos desenvolvimentais da personalidade e em particular o papel decisivo dos primeiros anos do período de bebê e da infância como formadores da estrutura de caráter básica da pessoa. Complementam que, para Freud, a personalidade já estaria muito bem formada pelo final do quinto ano de vida e que o desenvolvimento subseqüente era praticamente só a elaboração dessa estrutura básica. Observando seus pacientes, chegou à conclusão de que suas explorações mentais os levariam de volta a experiências da infância inicial que pareciam decisivas para o desenvolvimento de uma neurose mais tarde na vida (“A criança é o pai do Homem.”).
      Freud diz que “as pulsões sexuais atravessam um complicado curso de desenvolvimento e só em seu final `o primado da zona genital´ é atingido. Antes disso há várias `organizações pré-genitais´da libido – pontos em que ela pode ficar fixada e aos quais retornará, na ocorrência de repressão subseqüente (`regressão´)”. Conforme completa Dalgalarrondo, para a psicanálise as “fixações” infantis da libido e a tendência à regressão (a estes `pontos´ de fixação) acabam por determinar tanto os diversos tipos de neuroses, como o perfil de personalidade do adulto. Particularmente importante, na concepção freudiana, é a trama estrutural inconsciente de amor, ódio e temor de represália em relação aos pais, o complexo de Édipo. Assim, a personalidade do adulto forma-se pela introjeção (sobretudo inconsciente) dos relacionamentos que se estabelecem no interior das relações familiares, em particular da criança pequena com os seus pais, e desses com ela.
      Conforme escrevem Hall e col., para Carl Gustav Jung, a personalidade total, ou a psique, consiste em vários sistemas diferenciados mas interrelacionados.Os principais são o ego, o inconsciente pessoal e seus complexos, e o inconsciente coletivo e seus arquétipos, a anima e o animus, e a sombra. Além desses sistemas interdependentes, existem as atitudes de introversão e extroversão e as funções do pensamento, do sentimento, da sensação e da intuição. Finalmente, existe o self, que é o centro de toda a personalidade. Weiner e col. falam da fase de 1906 a 1914, em que Jung esteve fortemente envolvido com Freud e com o movimento psicanalítico, posteriormente renunciou à presidência da Associação Psicanalítica Internacional. Sonenreich refere-se à presença de Jung “na frente da sociedade psiquiátrica e da revista de psiquiatria nazista em 1938” como um fator negativo “ não somente pelo que o nazismo significou para o mundo inteiro, mas também especificamente pelas posições psiquiátricas nazistas, pelo tratamento criminoso dado aos doentes mentais”.
      Segundo Dalgalarrondo, uma das biotipologias mais marcantes na história da psicopatologia foi a do psiquiatra alemão Ernest Kretschmer. Servindo-se principalmente da ectoscopia, ou seja, da inspeção morfológica externa, da antropometria e de outros recursos complementares, Kretschmer começa por distinguir, no que concerne à arquitetura corporal, três tipos fundamentais: o leptossômico (astênico, em suas formas extremas), o pícnico e o atlético. Melo escreve que ao lado destes, Kretschmer veio a descrever ainda um quarto grupo algo heterogêneo e a que denominou tipos displásicos especiais. Neste grupo estariam incluídos indivíduos que, por algumas características comuns, lembrassem determinadas síndromes endócrinas. Segundo Melo, seriam os chamados “eunucóides de grande crescimento”, “ os acromegalóides”, com ou sem gigantismo e turricefalia (crânio em torre), os obesos, virilóides, hipoplásticos, etc.. Investigando um “ vasto material de enfermos mentais internados”, Kretschmer pôde concluir: 1º) que há uma forte prevalência dos tipos leptossômico e atlético entre os doentes diagnosticados de esquizofrenia; 2º) que há forte prevalência do tipo pícnico entre os doentes diagnosticados de psicose maníaco-depressiva; 3º) que são freqüentes os displásicos entre os esquizofrênicos e 4º) que são raros os displásicos entre os maníacos-depressivos. Melo completa que a partir daí passou a descrever, no domínio dos caracteres anormais, fronteiriços, as duas maneiras de ser antagônicas, a que denominou respectivamente – esquizóide e ciclóide. A primeira seria observada nos indivíduos de hábito astênico, atlético e displásico, ao passo que a segunda pertenceria especificamente aos pícnicos. Acaba, portanto, por isolar os temperamentos esquizotímico e ciclotímico, de cujos traços psicológicos específicos defluiriam, a seu ver, os sintomas clínicos da esquizofrenia e psicose maníaco-depressiva.
      Interesse citar para este trabalho que, em relação à inteligência, Kretschmer encontra-se entre os que preferem abster-se de incluí-la no grupo dos componentes disposicionais da personalidade.
      Na atualidade, encontramos diversos problemas com o sistema categórico dos transtornos da personalidade codificados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), desde a primeira edição publicada em 1952 até a quarta (DSM-IV) e atual edição de 1994. Gunderson e col. comentam que, embora o DSM tente ser ateórico, os transtornos da personalidade do DSM-IV na verdade derivam de quatro estruturas teóricas bastante diferentes: dinâmica, de traço, biológica e sociológica. Os autores completam afirmando que “o desenvolvimento de um sistema de classificação que sintetize as forças destes modelos continua um grande desafio empírico e conceitual”.
      Em seu artigo de revisão, Trull propõe que uma alternativa para estes problemas categóricos seria através do estudo dos modelos dimensionais de classificação (descreve o modelo de Livesley das 18 dimensões, o modelo dos sete fatores de Cloninger e o modelo de traços de personalidade dos cinco fatores). Segundo o autor, os modelos dimensionais fornecem resultados mais confiáveis, ajudam-nos a compreender a heterogeneidade da sintomatologia, a falta de limites bem definidos entre os diagnósticos categóricos (do DSM-IV por exemplo), e refletem de forma mais acurada as achados científicos concernentes à distribuição dos traços de personalidade e ao comportamento mal adaptativo.
      Em uma das primeiras e mais importantes tentativas de encontrar correlação entre os transtornos de personalidade maiores e alterações neurofisiológicos, Cloninger esboçou três dimensões de personalidade independentes e hereditárias, cada uma associada com a atividade de um neurotransmissor. Comportamento exploratório (busca de novidade) estava associado com baixa atividade dopaminérgica basal; comportamento de esquiva (evitar danos) com alta atividade serotoninérgica e comportamento de dependência por recompensa (dependente), com baixa atividade noradrenérgica basal. Essas tendências foram usadas para discriminar muitos (embora não todos) transtornos de personalidade. A persistência tem emergido como uma quarta dimensão herdada, com distintas correlações psicobiológicas, e três dimensões do caráter foram distinguidas daquelas do temperamento, conforme estudaremos no decorrer do trabalho. Portanto, dentro da estrutura teórica biológica para o estudo da personalidade, o autor descreve didaticamente o modelo dimensional dos setes fatores proposto por Cloninger e col.
      Em nosso meio, Fuentes e col. traduziram o Inventário de Temperamento e Caráter – ITC (Temperament and Character Inventory) para a pesquisa dos setes fatores da personalidade. Realizaram um estudo visando um processo de adaptação do ITC para a língua portuguesa, considerando que o inventário foi desenvolvido em uma cultura diversa da brasileira. Os autores concluíram que os resultados apresentam uma boa qualidade e confiabilidade da versão em português. Entretanto, colocaram em dúvida a consistência de alguns dos subfatores do caráter, provavelmente devido às diferenças culturais que “impõem dificuldades na doação de conceitos universais, pois são traços cuja determinação depende grandemente do ambiente”. Consideram a possibilidade dos determinantes biológicos terem menor variabilidade que os culturais, justificando a concordância dos estudos do temperamento realizados em diversos países.
      Temperamento
      O trabalho pioneiro de Alexander Thomas e Stella Chess deu início ao estudo moderno do temperamento nas crianças com o New York Longitudinal Study. Conceituaram o temperamento como componente estilístico (“como”) do comportamento. Entretanto, os conceitos modernos de temperamento enfatizam seus aspectos emocionais, motivacionais e adaptativos. Especificamente quatro traços principais foram identificados: esquiva (evitar danos), exploratórios (busca de novidades), dependência por recompensa (ou gratificação) e persistência. Estes quatro temperamentos são considerados atualmente como dimensões independentes, geneticamente determinadas, que ocorrem em todas as combinações fatoriais possíveis, ao invés de se excluírem mutuamente.
      Distinção entre Temperamento e Caráter
      As quatro dimensões do temperamento humano correspondem intimamente àquelas observadas em outros mamíferos, como roedores ou cachorros. Os múltiplos níveis observados na filogênese das habilidades de aprendizado dos animais, desde os invertebrados até o Homem, indicam que o aprendizado apresenta múltiplos componentes e processos que estão hierarquicamente organizados e interagem extensivamente através do desenvolvimento. O Quadro 1, elaborado por Cloninger e col., apresenta um modelo hierárquico do aprendizado, relacionando os níveis filogenético e cognitivo.
          Quadro 1. Modelo Hierárquico do Aprendizado.
  
Nível cognitivo
Nível filogenético
Idade humana
(modal) em anos
VII
Inventivo
Imaginação
Homo sapiens
> 34
VI
Interpretação
simbólcia
Hominídeos
20 a 34
V
Construção
formal
Grandes primatas
13 a 19
IV
Concreto
Lógico
Mamíferos
6 a 12
III
Emoção
integrada
Répteis
2 a 5
II
Associações
sensitivo-motoras
Anfíbios e Peixes
vertebrados
1 a 2
I
Reflexos
sensitivo-motores
Invertebrados
< 1
      Especificamente, temperamento e caráter são conceituados com base em dois tipos de memória e aprendizado: procedural e proposicional. O temperamento (ou o “core emocional” da personalidade) abrange a memória procedural, que é regulada pelo sistema córticoestriatolímbico, primariamente as áreas corticais sensoriais, amígdala, o caudado e o putâmen. A memória procedural está por trás do aprendizado associativo e envolve o processamento perceptual pré-semântico de informação visuoespacial e de conteúdo afetivo. O aprendizado proposicional abrange as funções cognitivas maiores da abstração e simbolização. Estes dois sistemas de memória e aprendizado podem ser separados funcionamento. Por exemplo, indivíduos com Doença de Parkinson, caracterizada por acometimento estriatal, exibem déficits no aprendizado procedural, mas não no proposicional. Em contraste, pacientes com síndrome amnésica, caracterizada por lesões no lobo temporal medial, apresentam déficits no aprendizado proposicional mas não no procedural.
      Em outras palavras, o temperamento é definido como tendências emocionais e de aprendizado herdadas, as quais são a base para a aquisição de traços de comportamento automáticos (com conteúdo emocional), observáveis precocemente e que são relativamente estáveis durante o período da vida do indivíduo.
      As quatro dimensões (esquiva, exploratório, dependente e persistente) têm se mostrado, repetidas vezes, serem universais nas diferentes culturas, grupos étnicos e sistemas políticos nos cinco continentes. Resumindo, estes aspectos da personalidade são chamados de “temperamento” porque elas são herdados, observáveis precocemente na infância, relativamente estáveis no tempo, preditivos de comportamentos em adolescentes e adultos e uniformes nas diferentes culturas. O Quadro 2, elaborado por Cloninger e col., resumo o contrastante grupo de comportamentos que distinguem os externos das quatro dimensões.
      
     Quadro 2. Descrição dos comportamentos de indivíduos com altos e baixos escores nas quadro dimensões do temperamento.
Dimensão do temperamento
Variantes com escores altos
Variantes com escores baixos
     Esquiva (evitar danos)
     Pessimista
     Medroso
     Tímido
     Fatigável
     Otimista
     Audacioso
     Sociável
     Enérgico
     Exploratório (busca de      novidades)
     Explorador
     Impulsivo
     Extravagante
     Irritável
     Estóico
     Reservado
     Deliberativo
     Parcimonioso
     (econômico)
     Dependência por
     recompensa
     Sentimental
     Aberto
     Caloroso
     Afetivo
     Reservado
     Distante
     Frio
     Independente
     Persistência
     Assíduo
     Determinado
     Entusiástico
     Perfeccionista
     Preguiçoso
     Mimado
     Sem objetivos
     Pragmático

      O quadro 3 resume um modelo neurobiológico compreensivo sobre o aprendizado em animais e que está sistematicamente relacionado à estrutura do temperamento humano. Os termos aplicados (e traduzidos) são utilizados na observação e aferição dos diversos comportamentos animais, sendo, portanto, apenas aproximações de comportamentos mais complexos (e do temperamento) dos humanos.


     Quadro3. Sistemas cerebrais que influenciam os padrões de estímulo e respotas relacionados ao temperamento.
Sistema cerebral (dimensão da personalidade relacionada)
Principais neuromoduladores
Estímulo
Resposta comportamental
   Ativação    comportamental    (exploratório)
   Dopamina
   Novidades; SC de    recompensa SC ou NSC    de alívio de monotonia    ou    punição
   Atividade    exploratória;    aproximação;    evitaçãoativa;    esquiva
   Inibição    comportamental    esquiva
   GABA, serotonina    (rafe dorsal)
   Aversão condicionada    (SC-   NSC) pareados  sinal    condicionado para  punição,    novidade e    frustação (por    não-   recompensa)
   Formação de sinais    condicionados    aversivos, evitação    passiva, extinção
   Vinculação social    (dependência por    recompensa)
   Norepinefrina    serotonina (rafe    medial)
   Recompensa condiciona    (SC-NSC pareados)
   Formação de sinais    condicionados    apetitivos
   Reforço parcial    (persistência)
   Glutamato;    serotonina (rafe    dorsal)
   Reforço intermitente
   Resistência à    extinção


      Esquiva (evitar danos)
      A esquiva, conforme define Cloninger e col.,envolve uma tendência herdada para a inibição do comportamento em resposta a sinais de punição e frustração (pela ausência de recompensa). O mesmo autor descreve que elevados índices de esquiva são observados como medo de incertezas, inibição social, timidez com estranhos, rápida fatigabilidade e preocupações pessimistas na antecipação dos problemas (mesmo em situação que não preocupam outras pessoas). As vantagens adaptativas seriam a cautela e o planejamento cuidadoso quando os prejuízos são possíveis de ocorrer. As desvantagens ocorrem quando a possibilidade de danos e prejuízos é improvável mas torna-se antecipada levando uma inibição não adaptativa e ansiedade.
      Pessoas com níveis baixos desta dimensão de temperamento são zelosas, corajosas, enérgicas, sociáveis e otimistas, mesmo em situações que preocupam a maioria das pessoas. A vantagem destas características é uma confiança frente a perigos e incertezas, levando e esforços otimistas e enérgicos com pouco ou nenhum estresse. As desvantagens estão relacionadas à falta de resposta ao perigo ou um otimismo desmedido com conseqüências potencialmente severas quando os prejuízos são prováveis de acontecerem.
      A psicobiologia do temperamento de esquiva é complexa. Em estudos animais, projeções serotoninérgicas ascendentes do núcleo dorsal da rafe até a substância negra inibem neurônios dopaminérgicos nigroestriatais e são essenciais para a inibição condicionada da atividade após sinais de punição e frustração. Os benzodiazepínicos desinibem a evitação passiva condicionada pela inibição GABAergica de neurônios serotoninérgicos originados no núcleo dorsal da rafe. As células serotoninérgicas anteriores do núcleo dorsal da rafe se misturam com a células dopaminérgicas da área tegmental ventral e ambos os grupos inervam as mesmas estruturas (gânglios da base, núcleo accumbens e amígdala), promovendo influências dopaminérgicas e serotoninérgicas contrárias (opositoras) sobre a modulação dos comportamentos de aproximação e aversão. Exemplificando, indivíduos com altos índices de esquiva e de comportamento exploratório tendem a apresentar conflitos de aproximação e aversão, conforme pode ser observado nos ciclos de compulsão alimentar e purgação em pacientes com bulimia. Em geral, altos índices de esquiva predispõem os indivíduos para ansiedade, depressão e baixa auto-estima. Um tratamento antidepressivo eficiente diminui os escores de esquiva, entretanto indivíduos com escores elevados deste temperamento são preditivos de pouca resposta aos antidepressivos, incluindo drogas tricíclicas e inibidores seletivos da recaptura de serotonina.

      Nelson e col.29, descreveram uma correlação inversa entre os escores da dimensão do temperamento esquiva e receptores plaquetários do tipo 5-hidroxitriptamina 2a (5-HT ).
      Estudos com Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) no National Institute of Mental Health (NIMH) com 18F-deoxiglicose (FDG), realizados em 31 adultos voluntários (saudáveis) durante a aplicação de tarefas simples, contínuas e de performance, mostraram que a esquiva estava associada com aumento da atividade no circuito anterior paralímbico, especificamente na amígdala direita e ínsula, no córtex orbitofrontal direito e no córtex préfrontal medial esquerdo. Este padrão de ativação corresponde bem às projeções terminais serotoninérgicas da rafe dorsal.
      Exploratório (busca de novidades)

      O temperamento exploratório reflete uma tendência herdada para a iniciação ou ativação de um desejo de aproximação em resposta a novos estímulos, aproximação para estímulos de recompensa, evitação ativa de estímulos condicionados de punição e habilidade para esquiva de punição não-condicionada. Todos estes quatro comportamentos, hipoteticamente, fazem parte de apenas um sistema herdado de aprendizado. Podem ser observados como uma atividade exploratória frente a novos estímulos'9, impulsividade, extravagância frente a pistas de recompensa e evitação ativa de frustrações. Indivíduos com níveis elevados de temperamento exploratório são ativos, curiosos, tornam-se facilmente entediados, impulsivos, extravagantes e desordenados. As vantagens neste caso seriam a exploração entusiástica de estímulos novos e pouco familiares, com potencial para a originalidade, descobertas e recompensas. As desvantagens seriam um aborrecimento fácil e freqüente, impulsividade excessiva, explosões de ira e com relacionamentos volúveis. Pessoas com baixos níveis de temperamento exploratório são reservadas, deliberadas, parcimoniosas, estóicas, reflexivas e com tolerância para a monotonia.
      As projeções dopaminérgicas mesolímbicas e mesofrontais têm um papel crucial para a ativação de cada aspecto do comportamento de exploração em animais3. Por exemplo, lesões de depleção dopaminérgica no núcleo accumbens ou do tegumentum ventral levam à negligência de novos estímulos ambientais e reduzem os comportamentos espontâneo e investigatório3. Estudos com humanos mostram que indivíduos com risco para desenvolver a Doença de Parkinson apresentam baixos escores pré-mórbidos para a dimensão exploratória, mas não para as outras dimensões da personalidade, salientando a importância da dopamina na ativação do comportamento prazeroso. O início e a manutenção da hiperatividade, comer compulsivo, hedonismo sexual, dependência ao álcool, tabagismo e outros abusos de substâncias estão associados com escores elevados na dimensão exploratória. Indivíduos com altos escores também apresentam aumento da atividade metabólica (durante a aplicação de teste de performance contínua) no PET em regiões do córtex do cíngulo e caudado anterior. Também está associado à diminuição da atividade no córtex préfrontal esquerdo, incluindo a região préfrontal medial associada a um aumento da atividade em indivíduos com escores elevados na dimensão de esquiva. Estes dados sugerem que o córtex préfrontal medial pode ser um importante sítio no processamento de conflitos de aproximação-evitação.
      Pessoas com altos escores nesta dimensão também apresentam maior sensibilidade a sedativos e estimulantes. Tornam-se facilmente sedadas com os benzodiazepínicos e excessivamente estimuladas com anfetaminas, levando a uma deterioração no processamento das informações. A associação do aumento da atividade estriatal com o temperamento exploratório está especificamente relacionada com as altas densidades do transportador dopaminérgico, sugerindo portanto que esta dimensão de temperamento envolve um aumento da recaptura de dopamina nos terminais pré-sinápticos, conseqüentemente necessitando de freqüentes estímulos para manter os níveis de ativação dopaminérgicos pós-sinápticos.
      Segundo Bardo e col.30, a monoaminooxidase tipo B (MÃO B) está envolvida no metabolismo de vários neurotransmissores, incluindo a dopamina. Há uma tendência desta dimensão de temperamento a vários comportamentos pela busca de estímulos prazerosos, incluindo o tabagismo, o que poderia explicar a freqüente observação de baixa atividade plaquetária da MÃO B. O tabagismo tem o efeito de inibir a atividade da MÃO B nas plaquetas e cérebro.
      Juckel e col.19, estudando e dependência de intensidade de potenciais evocados (através do processamento cortical de diferentes intensidades de estímulos) e traços de personalidade, observou uma correlação positiva deste parâmetro com a dimensão exploratória do temperamento. Entretanto, propõem que uma forte dependência de intensidade (do componente auditivo evocado - N1/P2) estaria relacionada a uma baixa neurotransmissão serotoninérgica central.
      Dependência por recompensa (dependente)
      A dependência por recompensa reflete uma tendência herdada para a manutenção de um comportamento em resposta a estímulos de recompensa social. Pode ser observado como sentimentalidade, sensibilidade social, aproximação e dependência da aprovação de outros. Indivíduos com escores elevados nesta dimensão de temperamento são tenros (delicados), sensíveis, socialmente dependentes e sociáveis. Uma das maiores vantagens adaptativas para este caso é a sensibilidade frente a estímulos sociais que facilitam os relacionamentos afetivos bem como uma capacidade de cuidado genuíno para com os outros. A desvantagem está relacionada a uma susceptibilidade e perda de objetividade freqüentemente encontradas em pessoas socialmente dependentes.
      As projeções noradrenérgicas, provenientes do locus ceruleus, e serotoninérgicas, da rafe medial, estão relacionadas ao condicionamento por recompensa. O locus ceruleus e a rafe medial estão no mesmo nível posterior do tronco cerebral, e ambos os grupos de células monoaminérgicas inervam estruturas importantes na formação de associações pareadas, como o tálamo, o neocórtex e o hipocampo. Estudos neuropsicológicos mostram que o lobo temporal anterior decodifica "sinais sociais", como por exemplo imagens faciais e gestos sociais. Níveis elevados de dependência por recompensa estão associados com um aumento da atividade no tálamo, o que é consistente com as propostas sobre a importância das projeções serotoninérgicas para o tálamo, provenientes da rafe medial, na modulação da comunicação social. Também há uma associação de hipercortisolemia em pacientes com escores elevados deste traço de temperamento e melancolia (depressão), o que não se observa em indivíduos não deprimidos desta dimensão de temperamento.
      Persistência
      Reflete uma tendência herdada para a manutenção de um comportamento apesar da presença de frustração, fadiga e reforço intermitente. Pode ser observada como diligência, determinação, ambição e perfeccionismo. Pessoas altamente persistentes são trabalhadoras, perseverantes e com uma forte ambição para atingir objetivos com tendência para intensificar seus esforços frente a uma recompensa antecipada e perceberem a fadiga e a frustração como um desafio pessoal.

      Altos escores para esta dimensão do temperamento são adaptativos quando as recompensas são intermitentes mas as contingências permanecem estáveis. Quando as contingências mudam rapidamente, a perseveração se torna mal adaptiva. Indivíduos com escores baixos são indolentes, inativos, instáveis e erráticos; eles tendem a desistir facilmente quando confrontados com a frustração, raramente se empenham para realizações maiores e manifestam pouca perseverança mesmo em resposta a recompensas de aparecimento intermitente.
      A persistência pode ser medida objetivamente pelo efeito de extinção de um reforço intermitente (PREE). Este efeito significa a persistência ou o aumento da resistência à extinção do comportamento após um reforço (estímulo) intermitente. Trabalhos recentes realizados em roedores mostraram que a integridade do PREE depende de projeções hipocampais até o núcleo accumbens. Esta projeção glutaminérgica pode ser considerada um "curto circuito" do sistema de inibição para o sistema de ativação comportamental, ou seja, converte um sinal condicionado de punição em um sinal de recompensa antecipada. Esta conexão provavelmente é comprometida em humanos após lesões do córtex orbitomedial, as quais devem ter um "efeito anti-persistência" específico com benefícios terapêuticos para alguns pacientes obsessivos-compulsivos severos. A cingulotomia bilateral, que reduz somente a dimensão relacionada à esquiva, é menos efetiva na redução de comportamentos compulsivos e persistentes do que a cingulotomia combinada com lesões orbitofrontais. Blair descreve a "sociopatia adquirida" após lesões do córtex orbitofrontal, como conseqüência do comprometimento dos sistemas executivos emocionais que permitem um controle sobre os sistemas cerebrais que respondem à ameaça.
      Motivação

      Sobrevivência e reprodução são os principais instintos para todas as espécies animais, em humanos podem ser expressas através de seus derivados vivenciais, as emoções. Em contraste ao limitado espectro motivacional dos instintos básicos, as emoções apresentam um poder motivacional independente que as fazem não somente o principal sistema volitivo para os seres humanos, mas também os processos da personalidade que dão significado à existência humana4.
      Os quatro traços de temperamento: esquiva, exploratório, dependente e persistente, com as suas respectivas emoções primárias: medo, raiva, aproximação e ambição, podem ser observadas precocemente durante o desenvolvimento. Segundo Cloninger e col.4, as pesquisas com crianças tem mostrado que durante os primeiros meses de vida o medo e a raiva se diferenciam da disposição para o distress (uma tendência a se tornarem facilmente perturbados e excitados autonomicamente). Neste período, caracterizado por mudanças ativas na organização dos circuitos neuronais e na densidade das sinapses, especialmente nas áreas corticais frontal, temporal e límbica, há o aparecimento de várias outras funções complexas e sociais do comportamento humano. Talvez estas novas funções estejam arranjadas juntamente a uma organização precoce das disposições comportamentais e emocionais duradouras descritas neste trabalho como traços de temperamento.
      O temperamento envolve uma disposição relativamente pequena de emoções associadas às necessidades básicas do indivíduo (por exemplo segurança), assim chamadas motivações primárias. Medo e raiva excessivos, associados ao temperamento, monopolizam a motivação e tomam a personalidade alterando sua percepção, aprendizado e comportamento de uma forma tendenciosa. Entretanto, sob condições normais, assim que as necessidades de sobrevivência são alcançadas, os objetivos de uma personalidade com um desenvolvimento normal mudam para incluir não somente a integridade do self físico, mas também do self mental (por exemplo a auto-estima) e de várias emoções e metas sociais (por exemplo vergonha, orgulho e empatia). Estas são chamadas de motivações secundárias, sociais ou de crescimento. Estas emoções secundárias estão intimamente e etiologicamente relacionadas ao desenvolvimento do caráter. Especificamente, as emoções básicas como o medo, raiva, repulsão e excitação são transformadas em emoções secundárias, mais complexas e predominantemente positivas, como o amor, empatia, compaixão e disposição. Esta transformação ocorre através da interação de conceitos internalizados associados ao caráter com as emoções básicas associadas ao temperamento. Apesar de alguns componentes básicos do caráter se desenvolverem precocemente na vida, como a confiança e a confidência, a completa diferenciação self-objeto ("eu" versus o "não-eu"), aproximadamente entre 18 meses e 3 anos, estabelece o estágio para o total desenvolvimento dos traços de caráter e das emoções secundárias.
      Uma motivação anormal (desviante e imatura) deriva de duas ou três necessidades (excessivas e monopolizadoras) emocionais elementares associadas a ameaças à sobrevivência e integridade física. Em contraste, uma motivação amadurecida se desenvolve assim que as necessidades básicas são alcançadas e o indivíduo se encontra livre para vivenciar numerosas motivações secundárias que levam ao crescimento. Isto explica a pobreza e inflexibilidade motivacional de um transtorno de personalidade e contribui para a rica diversidade motivacional e flexibilidade daqueles com uma personalidade amadurecida.
      Caráter
      Em contraste ao temperamento, que é principalmente herdado, o caráter é "menos herdado" e é moderadamente influenciado pelo aprendizado social, pela cultura e eventos casuais da vida únicos ao indivíduo.
      Psicobiologia
      O caráter (ou o núcleo conceptual da personalidade) abrange funções cognitivas maiores reguladas pelo hipocampo e neocórtex (ou seja, abstração e interpretação simbólica, lógica analítica e indutiva). Estas funções (também chamadas de memória proposicional) são criticas para o processamento cognitivo das percepções sensoriais e dos afetos regulados pelo temperamento, levando ao desenvolvimento de conceitos sobre o self e o mundo externo. Três traços principais de caráter foram distinguidos: auto-direcionamento, cooperatividade e auto-transcendência. Quando completamente desenvolvidos, estes traços definem uma personalidade madurab.
      Auto-direcionamento quantifica a intensidade com a qual o indivíduo é responsável, confiável, disponível, objetivo e auto-confidente. A característica mais vantajosa destes indivíduos é que eles são realistas e efetivos, ou seja, eles são capazes de adaptarem seu comportamento de acordo com seus objetivos, escolhidos individualmente, baseados em uma avaliação realista dos fatos. Indivíduos com baixos escores deste traço são culposos, impotentes, irresponsáveis, pouco confiáveis, reativos e incapazes de definir e programar objetivos e metas internamente, o que é freqüentemente desvantajoso para a pessoa.
      A importância do auto-direcionamento para a prática clínica seria que, baixos escores para esta dimensão do caráter, corresponderia à característica comum de todas as categorias dos transtornos de personalidade.

       A cooperatividade quantifica a intensidade com a qual os indivíduos se consideram partes integrantes da sociedade humana. Pessoas altamente cooperativas são descritas como empáticas, tolerantes, com compaixão, protetoras e cheias de princípios. Estas características são vantajosas em grupos de trabalho e sociais mas não para indivíduos que preferem viver de uma maneira isolada. Baixa cooperatividade abrange pessoas egocêntricas, intolerantes, críticas, pouco prestadoras (inúteis), vingativas e com comportamento oportunista, com tendência a olhar apenas para si próprios e insensíveis aos direitos e sentimentos alheios. Baixos escores de cooperatividade contribuem substancialmente para o diagnóstico de um transtorno de personalidade, principalmente quando associado a baixos escores de auto-direcionamento.
      A auto-transcendência quantifica a intensidade com a qual as pessoas se consideram partes integrais do universo como um todo. Estes indivíduos são espirituosos, despretensiosos, humildes e realizados (satisfeitos). Estes traços são adaptativamente vantajosos quando as pessoas são confrontadas com o sofrimento, doenças ou morte, que são inevitáveis com o avançar da idade. São desvantajosos na maioria das sociedades modernas, onde o idealismo, a modéstia e a procura por significados através da meditação poderiam interferir com a aquisição de riquezas e poderes. Pessoas com baixos escores são descritas como práticas, conscientes de si próprios, materialistas e controladoras. Tais pessoas são vistas como mais adaptadas às sociedades ocidentais devido à sua objetividade racional e sucesso materialista. Entretanto, apresentam dificuldade em aceitar o sofrimento, a perda do controle, perdas pessoais e materiais e a morte, o que leva a problemas de ajustamento, principalmente com o avançar da idade. Baixos escores desta dimensão do caráter foram associados a pacientes com vários sintomas de transtorno de personalidade esquizóide, o que poderia ser útil para diferenciá-lo do transtorno de personalidade esquizotípico, nos quais há uma tendência para idéias e questões sobre "percepção extra-sensorial" e outros aspectos da auto-transcendência.
      O caráter amadurece em etapas progressivas, com saltos de incrementos desde a infância até o final da fase adulta. O tempo e a taxa de transição entre os níveis de maturidade são funções não-lineares relacionadas às configurações prévias do temperamento, tendências culturais sistemáticas e eventos aleatórios da vida. O desenvolvimento dos traços de caráter otimizam a adaptação do temperamento ao ambiente reduzindo a discrepância entre as necessidades emocionais do indivíduo e as pressões sociais. No Quadro 4 resumem-se as três principais dimensões do caráter.
      No Quadro 1, o caráter corresponde aos processos de lógica, construção, avaliação e invenção de símbolos abstratos, os quais são baseados na representação conceptual da informação e são bem desenvolvidos somente em alguns humanos amadurecidos. Pacientes com Doença de Parkinson diferem de outros no temperamento (possuem baixos escores pré-mórbidos de traço exploratório) mas não no caráter. Estas observações clínicas e empíricas associam o caráter a funções corticais superiores do sistema nervoso central. No Quadro 5, elaborado por Cloninger e col., podemos observar as principais diferenças entre temperamento e caráter.


     Quadro 4. Descrição dos indivíduos com altos e baixos escores nas três dimensões do caráter
Dimensão do Caráter
Altas escores
Baixos escores
   Auto-direcionamento
   Responsável
   Disponível
   Engenhoso
   Disciplinado
   Com auto aceitação
   Culposo
   Sem objetivos
   Passivo
   Indisciplinado
   Desejoso
   Cooperatividade
   Tolerante
   Empático
   Protetor
   Compassivo
   Com princípios
   Intolerante
   Insensível
   Egoísta
   Vingativo
   Oportunista
   Auto-transcendência
   Imaginativo
   Intuitivo
   Consentido
   Espitituoso
   Idealista
   Convencional
    Lógico
   Desconfiado
   Materialista
   Relativista

     Quadro 5. Principais diferenças entre Temperamento (Aprendizado associativo ou procedural) e Caráter (Aprentizado conceptual ou proposicional).
Propriedades Variáveis
Temperamento
Caráter
   Nível de percepção
   Automático
   Intencional
   Forma de memória
   Perceptual
   Conceptual
   Procedural
   Proposicional
   Forma de aprendizado
   Associativo
   Conceptual
   Condicionado
   Insight
   Papel do indivíduo sobre a    atividade mental
   Passivo
   Ativo
   Reprodutivo
   Construtivo
   Sistema cerebral
   Sistema límbico
   Córtex temporal
   Striatum
   Hipocampo
   Forma de representação mental
   Seqüências de    estímulo-   resposta variando    com    a intensidade
   Redes interativas    (esquema conceptual)    variando qualitativamente    na configuração
Componentes etiológicos
      Hereditariedade
40 - 60 %
15 - 40 %
      Ambiente familiar
0 %
30 - 35 %
      Ambiente (aleatório)
40 - 60 %
25 - 55 %
      Neurotransmissores
      Os neurotransmissores certamente apresentam um papel na modulação dos traços de algumas dimensões em indivíduos com transtornos de personalidade. A serotonina, por exemplo, tem um importante papel na agressão ou impulsividade (apesar de não ser exclusivo da serotonina) em pacientes com transtorno de personalidade que desenvolvem estes comportamentos. A dopamina seria importante nos sintomas positivos esquizotípicos relacionados às distorções cognitivas e perceptuais e pode também contribuir para a origem do comportamento agressivo. A noradrenalina e a vasopressina podem também estar envolvidas na agressão e a acetilcolina pode influenciar uma sensibilidade ou labilidade afetiva subjacente.
      Certamente, todas as associações descritas acima são apenas simplificações dos resultados de uma variedade de estudos, estes se utilizaram de diversas metodologias e de grupos heterogêneos de indivíduos.

      Serotonina
      Este é o neurotransmissor mais estudado quando se fala da personalidade e de seus transtornos: serotonina (5-hidroxitriptamina [5-HT]). Nos últimos 20 anos as pesquisas vem sugerindo um importante papel para a 5-HT na agressão e impulsividade, inicialmente com Asberg e col.36, estudando pacientes com tentativas letais e violentas de suicídio, depois com Brown e col.37, estes estudos repetidamente revelaram que os níveis de serotonina estão inversamente relacionados à agressão e/ou impulsividade. Portanto, quanto menor a concentração de serotonina, maior a propensão para a agressão ou impulsividade. Um dos principais aspectos da literatura é a consistência geral dos achados através das diferentes amostras dos estudos e utilizando variados métodos para a obtenção da função serotoninérgica.
      Hollander e col.41, estudaram pacientes com transtorno de personalidade borderline (TPB) após a administração de m-clorofenilpiperazina (m-CPP), um agonista serotoninérgico parcial. Observaram que a administração de m-CPP resultou em efeitos positivos significativos sobre os sintomas clínicos dos pacientes, sugerindo, segundo os autores, uma disfunção serotoninérgica no TPB. Gardner e col.42, não observaram uma ralação entre a concentração do ácido 5-hidróxiindolacético no líquor e uma história de agressão em mulheres com TPB.
      Dopamina e Noradrenalina
      O estudo da dopamina e noradrenalina nos transtornos da personalidade não recebeu a mesma atenção que a serotonina. Apesar dos índices destes três neurotransmissores serem freqüentemente investigados simultaneamente, geralmente os achados de relevância, especialmente na população com transtornos de personalidade, concentram-se sobre a serotonina39.
      Alguns dados clínicos sugerem uma relação positiva e direta entre a noradrenalina e agressividade. A primeira evidência, segundo Coccaro39, estaria na descrição dos efeitos "anti-agressividade" dos beta bloqueadores; a segunda estaria relacionada à observação clínica de que o aumento da função noradrenérgica central está associada com agitação e irritabilidade, particularmente em indivíduos com transtorno de personalidade borderline; a terceira seria a correlação positiva entre 3-metoxi-4hidroxifenilglicol (MHPG) no líquor e uma história de agressividade em recrutas navais. Este mesmo autor cita dois estudos que demonstraram uma redução do MHPG liquórico em indivíduos violentos, comparados a voluntários saudáveis, e uma correlação inversa entre o MHPG plasmático e uma história de agressão em um grupo de indivíduos com transtorno de personalidade.
      Baseados na hipótese de que os indivíduos com transtornos de personalidade borderline e esquizotípico podem desenvolver diferentes respostas afetivas, cognitivas e perceptuais a estimulantes dopaminérgicos e noradrenérgicos, Schulz e col.43, administraram doses de anfetamina para uma série de pacientes com transtornos de personalidade e posteriormente descreveram suas respostas durante algumas horas. Relataram que oito pacientes com transtorno de personalidade borderline apresentaram uma maior sensibilidade comportamental a anfetamina pois demonstraram um aumento do bem estar bem como um aumento global nos escores psicopatológicos. Observaram também que metade dos indivíduos, comparados com nenhum dos voluntários normais, foram rotulados como psicóticos (transientes) durante o uso da anfetamina. Em um estudo de replicação envolvendo 16 indivíduos, Schulz e col.44, observaram que a piora global após a administração de anfetaminas era típica de pacientes com uma comorbidade de transtorno de personalidade borderline e esquizotípica. A melhora global era típica de sujeitos diagnosticados apenas como borderlines sem a comorbidade do transtorno esquizotípico, o que explicaria a inerente contradição na qual eles eram taxados como tendo um aumento no bem estar bem como nos escores psicopatológicos. Estes dados sugerem que existem importantes diferenças biológicas entre indivíduos com transtorno de personalidade borderline como uma função da comorbidade com o transtorno esquizotípico.
      Siever e col.34, 45, observaram que as concentrações plasmáticas e liquóricas de ácido homovanílico (HVA) podem ser maiores em pacientes com transtorno de personalidade esquizotípico do que em indivíduos saudáveis e outros pacientes com transtornos de personalidade diferentes respectivamente, sugerindo uma disfunção dopaminérgica central.

      Contribuições da psicanálise e da etologia
      Como um típico sistema complexo, o temperamento pode ser considerado hierárquico e com a possibilidade de ser decomposto em subsistemas estáveis que evoluíram seqüencialmente. Estudos etológicos também sugerem que a filogênese do temperamento se inicia com o sistema de inibição do comportamento (esquiva ou evitar danos) em todos os animais, depois acrescenta-se o sistema de ativação (exploratório ou busca de novidade) em animais mais complexos e, posteriormente, subsistemas para a manutenção do comportamento (dependência por recompensa) em répteis e filós subsequentes22.
      Os estudos em etologia também sugerem que o aprendizado conceitual ou através do insight evoluiu após o aprendizado pré-conceitual envolvido no temperamento. A partir destas observações podemos ampliar a teoria da personalidade para o desenvolvimento de traços de caráter através de concepções acerca do aprendizado conceitual.
      Para Zimerman, é fácil perceber que o padrão de atividade do recém-nascido revela acentuadas diferenças individuais entre os bebês, o que pode ser observado, é evidente, quando são irmãos. Assim, um mesmo estímulo exterior mal pode tirar um bebê de sua "fleuma", enquanto um outro bebê pode reagir de uma maneira extremamente agitada; igualmente, são significativamente muito variáveis as formas e duração das mamadas, o funcionamento do aparelho digestivo, o ritmo do sono ou despertar, a maneira de chorar, etc. A fome e a dor são as sensações corporais que mais freqüentemente provocam o pranto do bebê, o qual se constitui em um sinal para que a mãe ocupe-se dele.
      Não obstante isso, complementa o autor acima, "os modernos estudos genéticos rejeitam como não sendo científicas as hipóteses de que haja uma transmissão hereditária de características adquiridas de gerações anteriores, como Lamark postulava e Freud tendia a acreditar, assim como também descartam a noção de que para um determinado gene corresponderia uma característica comportamental especificamente definida. Por outro lado, o mesmo rigor científico dessas investigações tem demonstrado que existe, de fato, uma "predisposição constitucional inata", porém a mesma é passível de mudanças pelas influências ambientais. Dizendo com outras palavras: a dimensão da potencialidade da criança não é totalmente preestabelecida geneticamente; antes, trata-se de uma dimensão potencial, ou seja, os potenciais da criança a serem desenvolvidos, dependerão, em grande parte, da responsividade da mãe e do ambiente" 46.
      Alguns estudos etológicos (estudo dos comportamentos espontâneos dos animais, preferentemente em seu habitat natural) descritos por Zimerman46, servem para mostrar a influência recíproca e complementar entre os fatores genéticos e os ambientais. O fenômeno do imprinting (uma melhor tradução para o português seria "moldagem") é um deles: com este nome, em 1935, o etólogo austríaco K. Lorenz, por meio de estudos com aves, observou que, na ausência da mãe, as patas nascidas em chocadeiras apegam-se e ficam fixadas ao primeiro objeto móvel que encontram, e que isso se dá durante um período particularmente sensível que dura cerca de 36 horas. Uma vez instalada, fica irreversível. Este fenômeno repete-se de forma variável para cada espécie, porém conserva a constância de que, fora do período sensível, o imprinting não mais acontece. Scott em 1962, citado por Paiva e col.47, dá especial importância ao período crítico como aquele mais propício à aprendizagem, sendo que podemos observar nos peixes, insetos, pássaros e mamíferos.
      Zimerman46 especula que este fenômeno de imprinting encontre uma equivalência nas primeiras sensações corporais que acompanham a vida intra-uterina do feto em gestação. Segundo o autor, não são poucos os autores, psicanalistas ou não, atuais ou antigos, que ao longo do tempo têm postulado teorias que expressam a convicção de que as reais condições uterinas da mãe, notadamente a repercussão de seus estados emocionais e físicos, encontram uma direta repercussão no feto.
      Bion, citado por Zimcrman4'', "mesmo sem contar com os sofisticados recursos da moderna tecnologia, vinha insistindo, principalmente na década de 70, na sua conjetura especulativa quanto à existência de uma intensa vida psíquica fetal e, indo mais longe, ele a estendia à influência quanto à moldagem já nas células embrionárias, dos fatores uterinos, através de uma ressonância das flutuações dos estados físicos da mãe. Bion afirmava, repetida e enfaticamente que essas primitivas sensações corporais e, de certa forma, experiências emocionais, ficavam impressas e representadas no incipiente psiquismo do feto, com ulteriores manifestações no adulto, sob forma de enigmáticas e protéicas psicossomatizações".
      O bebê nasce num estado de neotenia, isto é, nasce prematuramente, no sentido de que apresenta, em relação a qualquer espécie do reino animal, uma prolongada deficiência de maturação neurológica, motora, que o deixa em um estado de absoluta dependência e desamparo. Em contraste com a lentidão da maturação motora, o desenvolvimento dos órgãos dos sentidos na criança é relativamente precoce e rápido: ela começa a sentir calor e frio desde o nascimento, a ouvir a partir das primeiras semanas e a olhar por volta do primeiro mês.
      Igualmente se impõe o registro dos estudos de Piaget, epistemólogo suíço que estudou em profundidade o fato de que a evolução das capacidades sensoriais, motoras e intelectuais de uma criança podem variar no ritmo e qualidade, porém inevitavelmente obedecem a uma pré-determinada seqüência neurofisiológica. Stubbe também descreve a teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget, o qual estabeleceu os estágios de desenvolvimento dos processos cognitivos em quatro etapas: 1) Estágio sensório-motor, do nascimento aos 2 anos; 2) Estágio pré-operacional, de 2 a 6 anos; 3) Operações concretas, de 6 anos até a adolescência e 4) Operações formais ou abstratas, da adolescência até a idade adulta.
      "O desenvolvimento atual da neurociência está comprovando que os fatores orgânicos relativos às sinapses neuronais e hemisférios cerebrais, exercem uma clara e definida influência no psiquismo, tal como pode ser observado, com alguns evidentes resultados positivos, com o uso adequado de neurolépticos e antidepressivos da moderna psicofarmacologia. Da mesma forma, algumas pesquisas recentes sobre os hemisférios cerebrais comprovam que algumas pessoas têm uma tendência inata para o talento verbal, enquanto outras podem ter falta dessa capacidade e serem aptas a habilidades manuais, criatividade artística, ou são mais propensos para descargas afetivas, etc". Zimerman afirma que podemos incluir uma especial capacidade inata da criança que é aquela que consiste em uma "intuitiva" condição de "ler" as modulações afetivas expressadas na face e na voz da mãe.
      Zimerman46 conclui que "ninguém discorda do fato de que o bebê está a mercê de estímulos de toda ordem - físicos e psíquicos; sensoriais e cinestésicos, prazerosos e desprazerosos - sendo que ele não tem condições neurofisiológicas, e muito menos egóicas, para distinguir se essas sensações corporais provém de dentro ou fora dele, se deste ou daquele órgão. Assim, a criança, nesse transitório estado de caos, não consegue descarregar para o mundo externo, através da motricidade e da ação, este aumento e tensão que acontece no seu mundo interno. Ela o faz por meio da linguagem corporal primitiva (choro, ricto doloroso, diarréia, vômito, esperneio, etc.), de modo a mobilizar as pessoas que estão à sua volta para cumprirem essa função de aliviar e processar as necessidades e o estado de tensão insuportável".
      Nemeroff, consagrado pesquisador no campo das ciências comportamentais e da psiquiatria, afirma que "a distinção artificial entre o psicodinâmico e o neurobiológico está sendo visivelmente demolida pela crescente evidência de que o cérebro afeta o comportamento e o comportamento afeta o cérebro. Na verdade, a psicanálise e a neurobiologia molecular simplesmente não são mutuamente exclusivas, como também estão inexoravelmente ligadas".
      Discussão

      Cloninger, em seu livro "Teorias da Personalidade" pergunta: "Até que ponto a personalidade é influenciada por fatores biológicos, tais como a hereditariedade? Até que ponto a personalidade pode ser modificada pela aprendizagem? Em que medida a infância é um período crítico para o desenvolvimento da personalidade, e quanta mudança pode ocorrer na idade adulta?". A autora descreve as principais questões tratadas pelas teorias da personalidade, as questões descritivas (das diferenças individuais), dinâmicas (de adaptação e ajustamento, processos cognitivos e sociedade) e do desenvolvimento (na criança, no adulto e as influências biológicas).
      Quanto à importância das influências biológicas para a personalidade, a autora acima afirma que seria sensato sugerir que sérios desvios do aparelho biológico normal podem, às vezes, causar tamanho dano à personalidade que passam a ser o fator preponderante para se compreender uma determinada pessoa. Entre esses fatores estariam as "desordens médicas com implicações psicológicas (por exemplo, tumores cerebrais ou desequilíbrios hormonais)". Propõe uma solução cartesiana afirmando que uma "teoria da personalidade abrangente deveria discutir a questão de quantos comportamentos desajustados são causados por fatores biológicos e quantos se devem apenas a um desenvolvimento psicológico aberrante".
      Tem havido um considerável grau de confirmação das predições teóricas originalmente descritas em 1986 com os achados empíricos sobre a neuroanatomia, neuropsicologia, neuroquímica e com a neurogenética. A ênfase original na importância da neuromodulação dopaminérgica no comportamento exploratório, a neuromodulação serotoninérgica da rafe dorsal na esquiva e as influências noradrenérgicas na dependência por recompensa também tem sido reforçadas pêlos estudos. Também, a psicobiologia de cada sistema envolve interações entre múltiplos genes e múltiplos sistemas de neurotransmissores.
      Herbst e col.52, por outro lado, contestam inclusive a validade do modelo teórico dos sete fatores e suas correlações propostas para a genética do temperamento (principalmente quanto aos sistemas serotoninérgico e dopaminérgico). Em seu trabalho não encontraram nenhuma associação significativa entre o polimorfismo do gene do receptor dopaminérgico tipo 4 (D4) e o temperamento exploratório, bem como do sistema serotoninérgico (região promotora do transporte de 5-hidroxitriptamina) com a esquiva.
      A história da genética sobre a personalidade é um evento recente em comparação aos estudos e descobertas em outros campos da medicina. Os trabalhos atualmente disponíveis não permitem um entendimento completo das influências genéticas no desenvolvimento do psiquismo humano. Sem dúvida, do que se observou até os dias de hoje com gêmeos monozigóticos e dizigóticos podemos concluir que estamos no caminho certo. Siever e col.54, em seu trabalho sobre perspectivas psicobiológicas nos transtornos de personalidade, cita, além da importância dos estudos com gêmeos, a relação familiar dos traços de personalidade e seus transtornos. Seria no amplo espectro de influências culturais, biológicas e sociais55, e nas dificuldades para separarmos a personalidade em diversas estruturas e componentes interrelacionados, que estariam os obstáculos e limites para o desenvolvimento de um modelo completo. Os modelos dimensionais, conforme o dos sete fatores descrito neste trabalho, tentam fornecer contribuições para o sistema de categorias de classificação (como o DSM-IV), mas, conforme descrito anteriormente, continuam sendo um desafio empírico e conceitual.
      Svrakic e col., citados por Cloninger e col.4, formularam um modelo quantitativo do desenvolvimento normal e patológico das personalidades como um sistema dinâmico e complexo que se auto organiza e é parcialmente moldado por influências familiares e socioculturais. O modelo permite interações não-lineares entre componentes etiologicamente distintos da personalidade. A personalidade, como um sistema dinâmico multidimensional. abrange componentes operacionais elementares (traços) organizados de forma interdependente que é crítica para a realização de uma função particular. Tal sistema é caracterizado por regras particulares de operação (por exemplo, os princípios de aprendizado associativo no temperamento e aprendizado proposicional nas funções do caráter). Satisfeitos os critérios acima, resulta então uma dinâmica não-linear que é característica de todos os sistemas envolvendo o crescimento e o desenvolvimento na biologia, neurociência, psicologia e sociologia. Tais sistemas dinâmicos multidimensionais são geralmente chamados de sistemas adaptativos complexos. As correlações observadas entre os múltiplos traços de personalidade podem ser usadas, por exemplo, para explicar a organização espontânea dos tipos de personalidades; estes tipos se desenvolvem de forma gradual, com sucessivos períodos de estabilidade prolongada e interrompidas por rápidas transições.
      Para os autores acima, o desenvolvimento da personalidade é apresentado como uma caminhada numa paisagem adaptativa, com duas ou mais montanhas (representando altos valores adaptativos) separadas por vales (representando baixos valores adaptativos). A aptidão é definida como a capacidade de produzir mudanças na personalidade. Em geral, um sistema complexo submetido a restrições responde a estas pela otimização da capacidade de adaptação (ou aptidão), ou seja, por mudanças adaptativas na personalidade. Conforme a mudança da personalidade é motivada pela otimização da adaptação, os indivíduos tendem a se mover com maior probabilidade e rapidez para o lado de maior valor adaptativo (ou seja, a montanha mais próxima). Uma vez que tenham alcançado o pico, eles permanecem lá por período relativamente longo pois primeiramente teriam que decrescer seu nível de adaptação (descer para o vale entre as colinas) para encontrar uma com o pico mais elevado (de melhor adaptação). Este desenvolvimento adaptativo é descrito como moldado em "U".
      Bouchard escreve que as pessoas ajudam a criar seus próprios ambientes, escolhendo e selecionando uma ampla gama de estímulos e eventos conforme o seu genótipo. Esta visão coloca o ser humano como um organismo criativo para o qual a oportunidade de aprender e experimentar novos ambientes amplifica os efeitos do genótipo sobre o fenótipo.
      Para o próprio Cloninger, o modelo dos sete fatores da personalidade fornece uma estrutura útil para o total entendimento da psicobiologia das múltiplas dimensões da personalidade humana. Pode também contribuir para as categorias diagnosticas em termos de perfis multidimensionais que são relativamente estáveis no seu desenvolvimento, assim como fornecer medidas quantitativas para o uso tanto em pesquisas psicobiológicas quanto na prática clínica. De grande significado clínico são as recentes replicações do achado de que este modelo da personalidade prediz as diferenças individuais na resposta aos antidepressivos. Este achado leva a um entendimento da personalidade para guiar a prática clínica, informando-nos sobre a escolha de diferentes drogas e associações juntamente com a psicoterapia.

       Referências Bibliográficas
      01. Rutter M. Temperament, Personality and Personality Disorder. Br J Psychiatry 1987; 150: 443-58.

       02. Hall CS, Lindzey G, Campbell JB. Teorias da Personalidade. 4a ed. Porto Alegre: Editora Artes Médicas; 2000.

       03. Cloninger CR. Um Método Sistemático para Descrição Clínica e Classificação de Variantes da Personalidade. In: Valladares Neto DC, organizador. As Várias Faces da Personalidade. Belo Horizonte: Editora Libru; 1991. 426 p.

       04. Cloninger CR, Svrakic DM. Personality Disorders. In: Sadock BJ, Sadock VA, editors. Kaplan & Sadock's Comprehensive Textbook of Psychiatry. 7th ed. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2000. p. 1723-64.

       05. Melo ALN. Psiquiatria - Volume I - Psicologia Geral e Psicopatologia. São Paulo: Atheneu Editora São Paulo; 1970.

       06. Schneider K. Psicopatologia Clínica. São Paulo: Editora Mestre Jou; 1968.

       07. Wang YP, Motta T, Louzã Neto MR. Transtornos de Personalidade. In: Louzã Neto MR. Motta T, Wang YP, Elkis H. Psiquiatria Básica. Porto Alegre: Editora Artes Médicas; 1995. p. 247-72.

      08. Gunderson JG, Phillips KA. Transtornos da Personalidade. In: Kaplan Hl, Sadock BJ. Tratado de Psiquiatria. 6ª ed. Porto Alegre: Editora Artes Médicas; 1999. p. 1542-82.

      09. Millon T. Teorias da Psicopatologia e Personalidade - Ensaios e Críticas. Rio de Janeiro: Editora Interamericana; 1979.

      10. Kendell RE. The distinction between personality disorder and mental illness. Br J Psychiatry 2002; 180: 110-5.

      11. Sonenreich C, Estevão G, Silva Filho LMA. Psiquiatria: Propostas, Notas, Comentários. São Paulo: Lemos-Editorial; 1999.

       12. Colp R. História da Psiquiatria. In: Kaplan Hl, Sadock BJ. Tratado de Psiquiatria. 6" ed. Porto Alegre: Editora Artes Médicas; 1999. p. 3000-24.

       13. Dalgalarrondo P. Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais. Porto Alegre: Editora Artes Médicas; 2000.

       14. Weiner MF, Mohl PC. Teorias da Personalidade e Psicopatologia: Outras Escola Psicodinâmicas. In: Kaplan Hl, Sadock BJ. Tratado de Psiquiatria. 6ª ed. Porto Alegre: Editora Artes Médicas; 1999. p. 535-56.

       15. Sonenreich C. Como faço psicoterapia. TEMAS - Teoria e Prática do Psiquiatra 1993; 23: 69-86.

       16. Trull TJ. Dimensional models of personality disorder. Curr Op Psychiatry 2000; 13:179-84.

       17. Joffe RT, Bagby RM, Levitt AJ, Regan JJ, Parker JDA. The Tridimensional Personality Questionnaire in Major Depression. Am J Psychiatry 1993; 150: 959-60.

       18. Goldman RG, Skodol AE, McGrath PJ, Oldham JM. Relationship Between the Tridimensional Personality Questionnaire and DSM-III-R Personality Traits. Am J Psychiatry 1994; 151: 274-6.

       19. Juckel G, Schmidt LG, Rommeispacher H. Hegeri U. The Tridimensional Questionnaire and the Intensity Dependence of Auditory Evoked Dipole Source Activity. Biol Psychiatry 1995:37: 311-7.

       20. Stailings MC, Hewitt JK, Cloninger CR, Heath AC, Eaves U. Genetic and Environmental Structure of the Tridimensional Personality Questionnaire: Three or FourTernperament Dimensions? J Pers Soc Psychol 1996; 70: 127-40.

       21. Stone MH. A Cura da Mente - A História da Psiquiatria da Antiguidade até o Presente. Porto Alegre: Editora Artes Médicas; 1999.

       22. Cloninger CR, Svrakic DM. Przybeck TR. A Psychobiological Model of Temperament and Character. Arch Gen Psychiatry 1993; 50: 975-90.

       23. Fuentes D, Tavares H, Camargo CHP. Gorenstein C. Inventário de Temperamento e de Caráter de Cloninger - Validação da Versão em Português. In: Gorenstein C, Andrade LHSG, Zuardi AW, editores. Escalas de Avaliação Clínica em Psiquiatria e Psicofarmacologia. São Paulo: Lemos-Editorial; 2000. p. 363-76.

       24. Stubbe DE. Teorias Psicológicas do Desenvolvimento e do Comportamento Humano. In: Kay J, Tasman A, Lieberman JA. Psiquiatria - Ciência Comportamental e Fundamentos Clínicos. São Paulo: Editora Manole; 2002. p. 39-73.

       25. Cloninger CR, Svrakic DM. Integrative Psychobiological Approach to Psychiatric Assessment and Treatment. Psychiatry 1997: 60: 120-41.

       26. Cloninger CR. The Genetics and Psychobiology of the Seven-Factor Model of Personality. In: Silk KR, editor. Biology of Personality Disorders (Review of Psychiatry-Volume 17). Washington, DC: American Psychiatric Press: 1998. p. 63-92.

       27. Reiss D. Introduction: Central Questions About Personality: Origins, Differences, and Malleability. Psychiatry 1997: 60: 101-3.

       28. Cowley DS, Roy-Byrne PP, Greenblatt DJ, Hommer DW. Personality and Benzodiazepine Sensitivity in Anxious Patients and Control Subjects. Psychiatry Res 1993; 47:151-62.

       29. Nelson EC. Cloninger CR, Przybeck TR, Csernansky JG. Platelet Serotonergic Markers and Tridimensional Personality Questionnaire Measures in a Clinicai Sample. Biol Psychiatry 1996; 40: 271-8.

       30. Bardo MT, Donohew RL, Harrington NG. Psychobiology of novelty seeking anddrug seekins behavior. Behav Brain Rés 1996; 77:23-43.

       31. Fowler JS, Volkow ND, Wang GJ, Pappas N, Logan J, MacGregor R, Alexoff D, Shea C, Schlyer D, Wolf AP, Warner D, Zezulkova I, Cilento R. Inhibition of monoamine oxidase B in the brains of smokers. Nature 1996: 379:733-6.

       32. Blair RJR. Neurocognitive models of aggression, the antisocial personality disorders, and psychopathy. J Neurol Neurosurgery Psychiatry 2001; 71: 727-31.

       33. Svrakic DM. Whitehead C, Przybeck TR, Cloninger CR. Differential Diagnosis of Personality Disorders by the Seven-Factor Model of Temperament and Character. Arch Gen Psychiatry 1993; 50: 991-9.

       34. Siever LJ, Amin F, Coccaro EF, Bernstein D, Kavoussi RJ, Kaius O, Horvath TB, Wame P, Davidson M, Davis K. Plasma Homovanillic Acid in Schizotypal Personality Disorder. Am J Psychiatry 1991; 148: 1246-8.

       35. Coccaro EF. Neurotransmitter Function in Personality Disorders. In: Silk KR, editor. Biology of Personality Disorders (Review of Psychiatry - Volume 17). Washington, DC: American Psychiatric Press; 1998. p. 1-25.

       36. Asberg M, Traskman L, Thorén P. 5-HIAA in the Cerebrospinal Fluid. A Biochemical Suicide Predictor? Arch Gen Psychiatry 1976; 33: 1193-7.

       37. Brown GL, Ebert MH, Goyer PF, Jimerson DC, Klein WJ, Bunney WE, Goodwin FK. Agression, Suicide, and Serotonin: Relationships to CSF Amine Metabolites. Am J Psychiatry 1982; 139: 741-6.

      38. Doudet D, Hommer D, Higley JD, Adreason PJ, Moneman R, Suomi SJ, Linnoila M. Cerebral Glucose Metabolism, CSF 5-H1AA Leveis, and Aggressive Behavior in Rhesus Monkeys. Am J Psychiatry 1995; 152: 1782-7.

       39. Coccaro EF. Neurotransmitter Correlates of Impulsive Agression in Humans. Ann N Y Acad Sci 1996; 794: 82-9.

       40. Coccaro EF, Kavoussi RJ, Cooper TB, Hauger RL. Central Serotonin Activity and Agression: Inverse Relationship with Prolactin Response to d-Fenfluramine, but not CSF 5-H1AA Concentration, in Human Subjects. Am J Psychiatry 1997; 154: 1430-5.

       41. Hollander E, Stein DJ, DeCaria CM, Cohen L, Saoud JB, Skodol AE, Kellman D, Rosnick L. Oldham JM. Serotonergic Sensitivity in Borderline Personality Disorder: Preliminary Findings. Am J Psychiatry 1994; 151: 277-80.

       42. Gardner DL, Lucas PB, Cowdry RW. CSF Metabolites in Borderline Personality Disorder Compared with Normal Controls. Biol Psychiatry 1990; 28: 247-54.

       43. Schulz SC, Schulz PM, Dommisse C, Hamer RM, Blackard WG. Narasimhachari N, Friedel RO. Amphetamine Response in Borderline Patients. Psychiatry Rés 1985; 15: 97-108.

       44. Schulz SC, Cornelius J, Schulz PM, Soloff PH. The Amphetamine Challenge Test in Patients With Borderline Disorder. Am J Psychiatry 1988; 145: 809-14.

       45. Siever LJ, Amin F, Coccaro EF, Trestman R, Silverman J, Horvath TB, Mahon TR, Knott P, Altstiel L, Davidson M, Davis KL. CSF Homovanillic Acid in Schizotypal Personality Disorder. Am J Psychiatry 1993; 150: 149-51.

       46. Zimerman DE. Fundamentos Psicanalíticos - Teoria, técnica e clínica. Uma abordagem didática. Porto Alegre: Editora Artes Médicas; 1999. p. 89-101.

       47. Paiva LM. Silva AMAPN. Medicina Psicossomática (Psicopatologia e Terapêutica). São Paulo: Livraria Editora Artes Médicas; 1994.

       48. Nemeroff C. Introdução. In: Kay J, Tasman A. Lieberman JA. Psiquiatria - Ciência Comportamental e Fundamentos Clínicos. São Paulo: Editora Manole; 2002. p. 97.

       49. Cloninger SC. Teorias da Personalidade. São Paulo: Martins Fontes Editora; 1999.

       50. Ekelund J, Lichtermann D, Jarvelin MR, Peltonen L. Association Between Novelty Seeking and the Type 4 Dopamine Receptor Gene in a Large Finnish Cohort Sample. Am J Psychiatry 1999: 156:1453-5.

       51. Ebstein RP, Benjamin J, Belmaker RH. Genetics of personality dimensions. Curr Op Psychiatry 2000; 13:617-22.

       52. Herbst JH, Zonderman AB, McCrae RR, Costa PT. Do the Dimensions of the Temperament and Character Inventory Map a Simple Genetic Architecture? Evidence From Molecular Genetics and Factor Analysis. Am J Psychiatry 2000; 157:1285-90.

       53. Bouchard TJJ. Genes, Environment, and Personality. Science 1994; 264:1700-1.

       54. Siever LJ, Davis KL. A Psychobiological Perspective on the Personality Disorders. Am J Psychiatry 1991; 148:1647-58.

       55. Triandis HC, Suh EM. Cultural Influences on Personality. Ann Rev Psychol 2002; 53: 133-60.
 
 site psiquiatria geral.com.br