terça-feira, 15 de julho de 2014

Projeto institui regras para realização de partos no Brasil

 

Pela proposta, médicos e demais profissionais de saúde deverão dar prioridade à assistência humanizada no nascimento. Índice de cesarianas não poderá exceder a 15% dos partos.
TV CÂMARA
Deputado Jean Wyllys (Psol-RJ)
Jean Wyllys quer que, desde a descoberta da gravidez, mulher tenha direito a plano individual de parto.
O Brasil pode passar a contar com uma lei federal para instituir o parto humanizado e combater a violência obstétrica. Em análise na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 7633/14, do deputado Jean Wyllys (Psol-RJ), traz os direitos da mulher durante a gestação e o parto – inclusive nos casos de aborto – e as obrigações dos profissionais de saúde. Trata também dos direitos do feto e do recém-nascido.
As regras previstas aplicam-se, conforme o texto, às instituições do Sistema Único de Saúde (SUS), privadas de saúde suplementar e filantrópicas. Profissionais e estabelecimentos que não cumprirem as normas poderão ser punidos civil, penal e administrativamente, de acordo com a proposta.
Direito de escolha
Pelo projeto, toda gestante tem direito à informação e à escolha. Desde a descoberta da gravidez, a mulher fará jus à elaboração de um plano individual de parto. Nesse documento, ficarão registradas todas as suas opções, como as equipes de acompanhamento, sempre que possível, o tipo de parto que prefere e o local onde quer que ocorra. Qualquer alteração no plano deverá ser anotada no prontuário pelo médico responsável com a justificativa clínica da mudança.
A grávida também poderá contar com um acompanhante durante todo o processo. Terá ainda o direito de contratar profissional auxiliar de parto que será autorizado a executar ações suplementares às equipes da unidade de saúde.
Assistência humanizada
Médicos e demais profissionais de saúde deverão dar prioridade à assistência humanizada no nascimento. Dentre esses princípios, o texto enumera procedimentos como interferência mínima da equipe, preferência por métodos não invasivos e utilização de medicamentos e cirurgias somente quando estritamente necessário.
Assim que nascer, o bebê deverá ser imediatamente colocado em contato com a mãe. Abre-se exceção apenas para atendimento de emergência, em caso de risco de vida para um dos dois. A mulher também terá direito de permanecer em contato com seu filho, mesmo que ele esteja em unidade de tratamento intensivo.
Para garantir a prerrogativa de escolha da mulher, o projeto prevê que a equipe de saúde deverá fornecer a ela todas as informações sobre gestação, diferentes formas de parto e amamentação.
Dependerá de justificativa clínica a adoção de procedimentos como administração de ocitocina sintética (para acelerar o parto), a tração ou remoção manual da placenta e dieta zero durante o trabalho de parto.
Violência obstétrica
Como violência obstétrica, a proposta de Jean Wyllys define atitudes como “tratamento desumanizado, abuso de medicalização e patologização de processos naturais, que causem a perda de autonomia e da capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade”.
O projeto também elenca uma série de condutas consideradas ofensas verbais ou físicas, como ironizar ou constranger a mulher devido a fatores como religião, cor, nível educacional ou orientação sexual. Preterir e ignorar queixas e solicitações da grávida também fazem parte dessa lista. Realizar cesariana sem indicação clínica real ou submeter a mulher a procedimentos invasivos desnecessários ou humilhantes também constam como formas de ofensas.
Comissões
Previstas no texto para serem instituídas por meio de portarias, as comissões de monitoramento dos índices de cesarianas e de boas práticas obstétricas (CMICBPO) terão a função de controlar a violência obstétrica no País.
Gustavo Spud / Flickr
Parto
Número de cesarianas será monitorado por comissões a serem instituídas nos estados e municípios.
As comissões serão formadas nas esferas estadual e municipal e nas instituições de saúde. Todas as ocorrências deverão ser comunicadas ao órgão, que notificará os conselhos regionais de medicina e enfermagem.
Cesarianas
Ainda conforme proposta, essas comissões terão também a função de monitorar o número de cesarianas realizadas e propor medidas para redução desse procedimento. Os índices de cirurgias, pelo texto, não devem ultrapassar a média recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que segundo Jean Wyllys, é de 15% dos partos.
Caberá às comissões elaborar relatórios com os números de cesarianas. Instituições que ultrapassarem a meta serão comunicadas. Caso o índice seja excedido por três vezes consecutivas, a comissão deverá realizar sindicância. No relatório final, devem constar informações como causas das cirurgias e profissionais responsáveis. Devem-se propor também as medidas para reduzir os percentuais.
Caso a situação não seja corrigida em 90 dias, a comissão encaminhará denúncia ao Ministério Público, e a instituição de saúde ficará sujeita às seguintes punições:
- suspensão, por prazo inicial de 30 dias, de financiamento público a instituições pertencentes ao SUS ou a ele vinculadas para a realização de cesarianas;
- proibição temporária de cesarianas, para instituições privadas ou filantrópicas, por igual período.
Tramitação
Em caráter conclusivo, o projeto será analisado pelas comissões de Educação; de Seguridade Social e Família; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Íntegra da proposta:

Reportagem – Maria Neves
Edição – Marcelo Oliveira

A reprodução das notícias é autorizada desde que contenha a assinatura 'Agência Câmara Notícias'

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Aspectos técnicos, éticos e jurídicos relacionados com a criação de bancos de dados criminais de DNA no Brasil

Tese de Doutorado
 
Nome completo: Norma Sueli Bonaccorso
 
Título em português
Aspectos técnicos, éticos e jurídicos relacionados com a criação de bancos de dados criminais de DNA no Brasil
 
Palavras-chave em português: Banco de dados-Exame de DNA-Genética médica-Identificação criminal-Investigação criminal-Perícia (processo penal)
Resumo em português
 
Pesquisa que analisa questões técnicas, éticas e jurídicas relacionadas com o uso informatizado de dados genéticos na persecução criminal que suscitam a elaboração de regulamentações técnicas legais para o desejável equilíbrio entre garantias e direitos individuais e os de interesse coletivo relacionados com segurança pública. A automatização de dados de caráter pessoal tem trazido preocupações aos governantes de diversos países, levando-os a adotar medidas legais sobre o tema. Os avanços da genética e da informática possibilitaram a criação de bancos de dados de DNA voltados à identificação criminal que, por serem eficazes no combate à criminalidade, tornaram-se aspiração para muitos Estados, como é o caso brasileiro. Sem que se olvidem ou que se exaltem as potenciais benesses sociais, na criação de bancos de dados de DNA devem ser valorados outros aspectos que também permeiam a questão e que podem ferir suscetibilidades, direitos e garantias individuais. Dentre estes se destacam os de vieses técnicos e éticos concernentes à possibilidade de uso indevido de informações genômicas contidas na molécula de DNA, além dos aspectos jurídicos relacionados com garantias e direitos individuais e coletivos. A presente investigação estuda elementos técnicos relacionados com a análise de polimorfismos do DNA que autorizam seu uso como método de identificação humana, amplamente empregado na atualidade pela Medicina Legal e pela Criminalística para determinação de parentesco biológico e elucidação de crimes. São analisadas características estruturais e funcionais de bancos de dados genéticos e as principais questões técnicas, éticas e legais relacionadas com a coleta de materiais biológicos, com os cuidados de preservação e garantia de autenticidade, com a qualidade dos serviços laboratoriais usados para obtenção de perfis genéticos e com o valor probante da prova pericial formada. É avaliada a importância dos bancos de dados criminais de DNA para a investigação policial e para a persecução judicial, sopesando-se os interesses da segurança pública e os de preservação da privacidade dos sujeitos afetados. São também comparativamente examinados os principais dos bancos de dados de identificação genética criminal já em funcionamento no mundo e suas características atinentes aos sujeitos e tipos de delitos que neles são incluídos; o tempo de permanência dos dados; seu gerenciamento e o armazenamento de vestígios e de amostras-referência. São ainda apontados os parâmetros técnicos e legais mínimos a serem considerados para a criação e o estabelecimento de um banco de dados desse gênero. É estudada pormenorizadamente a proposta feita pela SENASP/MJ para a implantação de um banco nacional de perfis de DNA criminal no Brasil, aos moldes do consagrado CODIS norte-americano. Os resultados desta pesquisa sugerem que, ao se considerar que os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto frente a interesses públicos legítimos, a criação de um banco de dados criminais de DNA no Brasil é viável através da edição de uma lei estabelecedora dos limites das medidas restritivas das prerrogativas individuais e que regule minuciosamente seu funcionamento.
 
 
Título em inglês
Juridical, ethical and technical aspects related to DNA criminal databases creation in Brazil

Palavras-chave em inglês: Criminal identification-Database-DNA analysis-Forensic proof-Genetic profiles
Resumo em inglês
Research that analyses juridical, ethical and technical questions related to the digital use of genetic data at criminal prosecutions that engender the elaboration of legal and technical regulation to the desirable balance among individual rights and guarantees and those of collective interests related to public security. Personal data automation has brought concerns to several countries governments, leading them to adopt legal measures about the theme. Enhancements at genetics and information technology areas had made possible the creation of DNA databases related to criminal identification that, due to their efficacy at criminal combat, have become an aspiration to many States, such as Brazil. Without neither forgetting nor magnifying its potential social benefits, at DNAs database creation other aspects, that are also involved and that could hurt individual susceptibilities, rights and guarantees, should be valued. Among these, it should be emphasized those of technical and ethical concerns related to the improper use of DNAs genomic information, besides juridical aspects related to individual and collective rights and guarantees. The present investigation studies technical elements related to DNA polymorphisms analysis that allow its use as an Human Identification Method, largely employed nowadays at Criminalistics and Forensic Medicine to determine biological kinships and crime scene elucidations. We analyze genetic databases functional and structural characteristics, and the main legal, ethical and technical questions related to biological samples collection, to their preservation and authenticity guarantee, to the involved laboratories quality, and to the probative value of the formed forensic proof. Its also evaluated DNA criminal databases importance to police investigation and judicial prosecution, considering both the public security interest and the privacy preservation of the affected individuals. The main genetic identification databases already working around the world are also comparatively analyzed, as well as their characteristics, such as: what kinds of individuals and faults are included at database; for how long this data stays at the bank; how it is managed and how the storage of evidences and reference samples is done. We also point the minimum legal and technical parameters that should be considered to the creation and establishment of such a database. Its studied in details the SENASP/MJ proposal to implement a national bank of criminal DNA profiles in Brazil, similar to the American CODIS. The results of our study suggest that, considering that individual rights and guarantees dont have absolute character front legitimate public interests, the creation of a criminal DNA database in Brazil is practicable through the edition of some law that would establish the limits to individual prerogatives and also minutely regulate its operation.
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TESE_ELEMENTOS_PRE_TEXTUAIS.pdf (149.93 Kbytes)

do site da Biblioteca digital da USP

Bancos de Dados Genéticos para fins Criminais: Aspectos Bioéticos e Biopolíticos

Dissertação de Mestrado em Bioética pela UNB
autor: Ricardo Ferreira Nunes

RESUMO


Bancos de dados de perfis genéticos são conjuntos estruturados de resultados de análises de perfis genéticos mantidos,em geral, em uma base de dados informatizada. O presente trabalho versa sobre o desenvolvimento da genética com a aplicação na tecnologia de obtenção de perfis genéticos e sua catalogação em base de dados para fins criminais. Através de um estudo analítico e interpretativo das informações coletadas, o trabalho identifica os principais conflitos existentes na catalogação da informação genética nessa base de dados e, propõe uma discussão com referenciais bioéticos sobre a legitimidade dessa catalogação. Os referenciais bioéticos utilizados foram: os princípios de respeito à autonomia, privacidade, confidencialidade, equidade e justiça. Contextualizado com a bioética,fez-se um estudo comos principais tratados internacionais de proteção à informação genética e concepções bioéticas e as normas nacionais de autorização da implantação do banco de dados genéticos no Brasil. O trabalho também propôs uma discussão, sob o enfoque da biopolítica e biopoder, sobre a regulamentação estatal das amostras de perfis genéticos e a soberania da gestão disciplinar do biológico da população. Esse trabalho também propõe a inclusão de interpretações da bioética no contexto discursivo da biopolítica, interpretando os fenômenos de ordem biopolíticos sob os vieses contemporâneos da bioética.Conclui-se, assim, que as vantagens oferecidas por esse tipo de bancos de dados para a investigação policial são inúmeras, funcionando como uma ferramenta de grande eficácia para a elucidação de crimes. Portanto, em relação aos princípios da bioética, a catalogação dos dados genéticos em bases de dados informatizadas para elucidação de crimes não fere o respeito à autonomia, pois há uma previsão legal nessa ordem, como também não interfere na privacidade e confidencialidade do indivíduo, pois dão condições técnicas e operacionais claras da não interferência humana à informação individual. E, de fato, preserva a justiça do ato, ao estabelecer limites na conduta humana, pois tem o propósito de apenar o indivíduo condenado a ter sua inclusão no banco de dados genéticos. Em relação à biopolítica, verifica-se que esses instrumentos analíticos de biopoder não pretendem desqualificar a importância do princípio da dignidade da pessoa humana e a garantia de sua autonomia, pois há, por parte do Estado, as garantias primárias da não interferência e sigilo na informação genética catalogada.
 
Palavras-Chave:Bancos de dados genéticos. Bioética.Biopolítica. Biopoder.

Leia a dissertação na íntegra

Breves comentários à lei 12654/12 – A identificação criminal e genética

 

Emanuel Motta da Rosa
Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela FMU(2010). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Direito Processual Penal. Professor em curso preparatório para concursos públicos nas áreas de Direito Constitucional, Penal, Processo Penal e Administrativo.

 

O presente trabalho pretende realizar uma análise da inovação legislativa introduzida à Lei de Identificação Criminal e as alterações na Lei de Execução Penal, bem como os reflexos na sistemática jurídico-penal a partir de um ponto de vista Constitucional e as repercussões do diploma em face dos direitos e garantias individuais.

Aspectos gerais sobre a identificação
Quando tratamos da questão da identificação criminal, temos em nosso ordenamento jurídico o mandamento constante do artigo 6o do Código de Processo Penal, determinando que na instrução do Inquérito Policial o Delegado de Polícia deveria, dentre outras providências ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes.
Em decorrência do dispositivo, durante longo período, a identificação criminal foi entendido como procedimento legítimo no caso de todos os autores de infrações penais, sendo editada inclusive Súmula 568 do Supremo Tribunal Federal, determinando que a identificação criminal do indiciado pelo procedimento datiloscópico não constituiria qualquer constrangimento, enquanto expediente investigativo regulado pelo Código de Processo Penal, ainda que o indivíduo já fosse civilmente identificado (ACQUAVIVA, 1993pág. 649)
Tal panorama foi alterado em 1988 com a promulgação da Constituição Federal que em seu artigo 5o, ao tratado dos direitos e garantias individuais, determinou em seu inciso LVIII a excepcionalidade da identificação criminal, de modo que aqueles que fossem civilmente identificados não seriam submetidos à identificação criminal, salvo nos casos previstos em lei.
Necessário, pois, determinar um conceito de identificação criminal a fim de estabelecer sua finalidade e fundamento dentro do panorama jurídico, bem como sua função em face do mandamento constitucional.
O processo de identificação individual sempre se mostrou uma preocupação humana desde os primórdios das civilizações organizadas, havendo registros da prática desde a antiguidade, seja pelos registros das gerações, vinculando os indivíduos a sua família, ou mesmo por intermédio de recenseamentos realizados pelo Poder central. Por lógica, os processo de identificação experimentaram evolução conforme desenvolveram-se os meios de registro e manutenção das informações.
O identificação oficial tem por finalidade emprestar credibilidade e confiança acerca da pessoa com quem se está tratando, de modo que a identificação civil representa uma fonte estatal, por consequência com uma presunção de legitimidade e segurança, sobre a identidade de cada indivíduo.
Já para o Estado representa uma fonte confiável de dados a respeito das pessoas que integram um determinado grupo social. Além da identificação dos cidadãos, dentre estes, identificar e manter registro daqueles que foram autores de ilícitos sempre foi uma preocupação do Estado, havendo registro da prática de mutilações para tornar possível à todos saber que o indivíduo era autor de delitos.
Outrossim, tratando da investigação criminal, a existência de um banco de dados com informações confiáveis sobre autores de delitos bem como seus modos de atuação sempre se mostrou um instrumento de grande valia para a elucidação de crimes e a identificação de seus autores.
Assim, como fim de realizar uma identificação confiável e a manutenção de um banco de dados oficial que fosse eficaz, diversos métodos foram adotados, incluindo a fotografação, métodos antropométricos até finalmente se consolidar a utilização dos registros de impressões digitais como um método eficaz, simples e econômico de realizar a identificação dos indivíduos, sendo método empregado para fins civis e criminais.
Desde então a prática da identificação criminal e a formação de banco de dados de registro criminal tem se tornado uma prática difundida como método de formação de uma base de dado a respeito dos autores de ilícitos penais, de maneira a auxiliar em futuras providências investigativas.
Nesse ponto é necessário realizar uma distinção conceitual entre indiciamento e a identificação criminal.
Indiciamento é o ato privativo do Delegado de Polícia no curso da investigação criminal formalizada no Inquérito Policial, no qual são indicados os fundamentos de fato e de direito que autorizam imputar ao investigado a provável autoria delitiva. Constitui, pois, uma construção de raciocínio lógico-jurídico baseado nos elementos de convicção produzidos no transcorrer da investigação que relacionam fática e juridicamente o indiciado ao fato criminoso apurado. É ato jurídico que estabelece, dentro da investigação criminal, relação entre o indiciado e o fato.
Dentre as providências do indiciamento o diploma processual penal previa de uma forma ampla a identificação criminal, consistente no ato de formalmente criar uma identidade criminal, paralela a eventual identidade civil preexistente, com coleta do material datiloscópico do indiciado, formando assim uma base de dados com os registros dos autores de delitos, permitindo assim futuras pesquisas para auxiliar em outras investigações.
Em que pese não existir um conceito legal da identificação criminal em nosso ordenamento, podemos então recorrer ao Direito comparado, com definição emprestada pelo órgão de identificação do Ministério da Justiça de Portugal:
O registo criminal contém os antecedentes criminais dos cidadãos de forma a permitir o respetivo conhecimento, nos termos legais, ou a atestar a ausência de antecedentes criminais[1]
A fonte de informação lusitana ainda indica as finalidades para as quais a identificação criminal se destina, designando os órgão públicos que poderão ter acesso às informações, dentre as quais: “Os órgãos de polícia criminal, para a prática de atos de inquérito ou de instrução;”[2]
Na identificação criminal era previsto a realização da coleta de material datiloscópico que serviria à individualização dos caracteres pessoais do autor do delito.
Assim, enquanto o indiciamento é o ato administrativo de cunho jurídico que cria o liame entre o provável autor do crime e o fato, a identificação criminal é ato administrativo voltado a individualização dos autores de delitos, formando uma base de dados disponível aos órgãos de segurança do Estado para auxiliar em medidas de investigação criminal. Dentro dos diversos métodos de individualização pessoal utilizados na investigação criminal a lei 12.037/2009 determina a realização da datiloscopia e da fotografação, que integrarão o procedimento de Polícia Judiciária no qual se formalizar a investigação.
Atendendo o comando constitucional que excepciona a identificação criminal, a lei 12.037/2009 a autoriza nas seguintes hipóteses:
Art. 3º Embora apresentado documento de identificação, poderá ocorrer identificação criminal quando:
I – o documento apresentar rasura ou tiver indício de falsificação;
II – o documento apresentado for insuficiente para identificar cabalmente o indiciado;
III – o indiciado portar documentos de identidade distintos, com informações conflitantes entre si;
IV – a identificação criminal for essencial às investigações policiais, segundo despacho da autoridade judiciária competente, que decidirá de ofício ou mediante representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa;
V – constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações;
VI – o estado de conservação ou a distância temporal ou da localidade da expedição do documento apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres essenciais.
Podemos, pois, dividir as hipóteses nas quais a identificação criminal está autorizada de acordo com o motivo preponderante:
  1. No caso do investigado não apresentar um documento de identificação civil hábil, dentre aqueles descriminados no texto legal;
  2. No caso do documento apresentado não se prestar como fonte segura para comprovar de forma hábil a identificação civil do investigado;
  3. No caso da existência de registros pretéritos da utilização de documentos falsos;
  4. No interesse da investigação criminal levada à cabo pelo Delegado de Polícia, quando for esta imprescindível para a formação de elemento de convicção na investigação.
Nos casos dos incisos I, II, III e VI, o fundamento da realização da identificação criminal reside na necessidade de comprovar inequivocamente a identidade do investigado em face da insubsistência do documento apresentado, que não fornece elementos mínimos para comprovar de forma hábil e inequívoca a identidade civil.
Já no caso do inciso V a existência de registros pretéritos envolvendo o implicado na utilização de documentos falsos faz cair por terra a presunção de veracidade e legitimidade dos dados constantes de qualquer documento apresentado, de modo a tornar necessária a identificação criminal como meio de confrontar a veracidade das informações apresentadas por qualquer documento de identificação civil apresentado.
Tanto numa quanto noutro hipótese, a identificação criminal recam sobre o sujeito, sobre o requisito da autoria, como medida necessária a comprovar materialmente nos autos a identidade da pessoa sobre quem recai a atuação da persecução criminal, seja em fase investigativa, seja em fase processual, de modo que se torne certo que a pessoa investigada ou processada é de fato aquela que afirma ser. Podemos mesmo funda tal necessidade no preceito disposto no art. 5º, XLV, da Constituição Federal: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado [...]”.
Como vimos, as hipóteses acima elencadas tem relação à pessoa do investigado ou processado, e não com o fato ou a materialidade delitiva.
Por seu turno, resta a análise da hipótese de identificação criminal prevista no inciso IV da lei de identificação criminal, sobre a qual recai também o objeto de inovação legislativa objeto do presente trabalho.
Vemo-nos aqui diante de uma hipótese típica de identificação criminal relacionada à investigação e à apuração do fato criminoso, havendo relação com a instrução probatória na persecução penal. Conforme a leitura do inciso, havendo necessidade no Inquérito Policial da obtenção de dados pessoais do investigado, o juiz pode de ofício, ou mediante representação do Delegado de Polícia, do promotor público, ou mesmo do defensor do investigado, autorizar a realização da identificação criminal, independente da existência e regularidade da identificação civil e dos documentos que a comprovem.
É certo, neste caso, que a identificação criminal, desconsiderando a identificação civil preexistente, deve ter uma finalidade a ser demonstrada, um fim útil na investigação criminal, não constituindo mera liberalidade ou conveniência da instrução criminal, devendo, ao contrário, ter sua necessidade e razões de fato e de direito demonstradas de forma lógica e coordenada, indicando os motivos pelos quais se justificam, podendo então afastar a garantia constitucional do direito a intimidade.
Sob tal ótica, ganha novamente sentido o texto da súmula do STF, uma vez que, autorizada identificação criminal por ordem judicial em face da necessidade indicada pela investigação, não constitui o ato violação de direito ou constrangimento ilegal, ainda que seja o indivíduo civilmente identificado.
A identificação criminal e os princípios constitucionais
Como verificamos, diferem conceitualmente o indiciamento e a identificação criminal. Indiciamento é o ato realizado nas investigações que indica de maneira formal o suspeito, relacionando sua conduta ao delito investigado, criando assim um vínculo jurídico na relação processual penal. Já a identificação criminal é ato realizado no ato de indiciamento, colhendo informações que constarão de uma base de dados relacionando os autores de ilícitos.
Dentro da identificação criminal a legislação autoriza, de forma excepcional, a identificação dactiloscópica, com a coleta de impressões digitais que constarão da ficha de identificação criminal.
O indiciamento tem repercussões jurídicas na persecução penal. A identificação criminal se presta a colher dados do autor do crime e alimentar uma base de dados acerca dos autores de ilícitos penais.
Questionando-nos, então, acerca da identificação criminal, em face do mandamento constitucional de estabelece sua excepcionalidade no ordenamento jurídico pátrio, vedando a identificação criminal daqueles que são civilmente identificados, necessário se faz a busca dos princípios constitucionais incidentes sobre a matéria.
Certo é que as atividades de investigação criminal, assim compreendidas em sua forma mais ampla, com todos os atos que lhe constituem, visam atender uma finalidade preconizada pelo Estado. Dentre as atribuições que cabem ao Estado Democrático de Direito na realização de sua finalidade – o bem comum – cabe a atuação de forma ativa na prevenção e repressão das condutas lesivas aos bens jurídicos individuais e coletivos. Cabe, pois, o exercício da jurisdição penal que se volta contra aqueles que praticam ilícitos penais, visando assim coibir a prática de tais condutas e repreender os seus autores.
Assim, com a ocorrência de um delito, inicia-se o poder-dever do Estado de atuar com vistas a repressão daquela conduta por meio da persecução penal, que se desenvolver em duas fases: uma pré-processual, onde atividades investigativas são realizadas com vistas a estabelecer elementos indicativos da materialidade e da provável autoria, emprestando fundamento à ação penal, e a processual, que se desenvolve no processo criminal.
Pensando especificamente nas atividades de investigação, a existência de um banco de dados que dispusesse de todos os dados dos autores de delitos, incluindo suas características físicas, sinais particulares, identidade dactiloscópica e o máximo de informações dos autores de delitos seriam sempre de grande valia para as atividades investigativas. Contudo, poderíamos nos questionar: pode o Estado, de forma indiscriminada, realizar um banco de dados, selecionando e catalogando pessoas, simplesmente para atender um fim pretendido?
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, insculpido no artigo 1º da Constituição Federal eleva a fundamento do Estado Brasileiro o respeito à individualidade do ser humano e a obrigação do Estado de não reduzir o indivíduo à condição de mero objeto ou meio na execução de um fim almejado.
Aprofundando tal noção, temos que:
temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET: 2007, pág. 62)
Nesta linha de raciocínio, é licito afirmar que o Estado não poderia, com vistas ao fundamento da dignidade da pessoa humana, estabelecer de forma indiscriminada a obrigatoriedade da identificação criminal de todas as pessoas, especialmente já existindo um banco de dados com as informações civis.
Seria lícito então, o constrangimento e o estigma de constar de um banco de dados criminal, indefinidamente, apenas para servir a um fim do Estado de investigação e preservação da ordem pública?
Todavia, há que se ter em mente, da mesma forma, o interesse social que a investigação criminal atende, visando a apuração de ilícitos e a identificação de seus autores, visando coibir as práticas delitivas, punir os autores de crimes e evitar a ocorrência de outros ilícitos. Assim, é possível admitir que o fundamento da dignidade da pessoa humana não pode ser considerado como absoluto ao ponto de afastar toda a sistemática jurídico-constitucional, na qual ela encontra o seu reconhecimento e sua garantia.
Havendo, pois, uma finalidade específica, um fim a ser atendido, não pode a dignidade da pessoa humana ser utilizada com escudo absoluta, não a fim de afastar abusos do Estado, mas para resguardar toda e qualquer conduta ilícita que o indivíduo pratique. Assim, pode a Constituição excepcionar a realização da identificação criminal, inclusive pelo método dactiloscópico, autorizando-as naqueles casos em que sua necessidade justifique a medida.
Outro princípio a ser levado e consideração é o da Presunção de inocência. Antes da condenação criminal transitada em julgado, ninguém pode ser considerado culpado do delito pelo qual é investigado, tampouco sofrer ou ser submetido a qualquer medida que pudesse implicar em sua incriminação antes do julgamento definitivo do mérito. Essa é a linha adotada pela legislação no que diz respeito as hipóteses em que se admite a identificação criminal na fase pré-processual apenas em situações excepcionais justificadas pela necessidade da investigação, como meio de confirmar a suspeita sobre a real identidade do investigado.
Por outro lado, o princípio constitucional da Vedação à auto incriminação implica no reconhecimento de que o investigado não pode de forma alguma ser obrigado a agir de modo a fornecer elementos de convicção que impliquem na sua incriminação. O investigado não pode ser compelido a auxiliar nas atividades que implicarão em sua condenação.
Identificação genética
O texto da lei 12.654 de 28 de maio de 2012 introduziu, dentre os métodos de identificação pessoal possíveis de serem utilizadas na identificação criminal a coleta de material genético dos investigados com vistas à utilização dos dados para compor um perfil genético utilizável em investigações criminais.
A lei prevê duas oportunidades em que pode o material genético ser colhido para integrar a identificação criminal:
  • No transcorrer das investigações, quando esse material se mostrar imprescindível na persecução, mediante autorização judicial, ou
  • Em decorrência de condenação criminal transitada em julgado por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, bem como nos crimes arrolados no art. 1º da lei de crimes hediondos.
A primeira questão é: qual a extensão, ou, quais dados do código genético poderiam ser utilizados para a realização do perfil do identificado, de modo que não pudesse ser utilizado para outro fim que não a identificação criminal ou para que não fosse utilizado como meio classificatório ou discriminatório de qualquer natureza.
O diploma legal, tratando da coleta dos dados genéticos, estabelece que o perfil genético determina que os dados colhidos não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética de gênero, vale dizer, o perfil genético apenas poderá indicar pontos de comparação para efeitos de confronto e identificação, não podendo servir para indicar características físicas ou mesmo traços comportamentais passíveis de verificação por análise genética. Apenas o sexo do identificado poderá constar do perfil genético, como meio de classificação no procedimento de identificação.
A preocupação se justifica. Os avanços das ciências biológicas, especialmente dos estudos da genética permitiram o total mapeamento do genoma humano, possibilitando traçar de forma completa a estrutura do DNA, possibilitando muito mais do que a mera identificação, completo estudo de características físicas e comportamentais que tenham fundo genético. Ademais, os contínuos estudos no campo da genética avançam no sentido de determinar padrões comportamentais de fundo genético, bem como a predisposição para determinadas condutas. Pensar de uma maneira nefasta em tal sentido poderia facilmente conduzir a um pensamento que pretendesse a separação dos indivíduos por conta do que são, e não por aquilo que fazem, criando um rumo para um direito penal do autor, em detrimento de um direito penal do fato.
Facilmente disso se poderia passar a pensar num direito profilático, atuando sobre aqueles que tem uma tendência ou uma predisposição genética à realização de determinadas condutas tidas como indesejadas. Mais do que isso, estaríamos tratando de um direito penal que estabelece pré-conceitos, partindo do autor para os fatos, e não do fato criminoso para o autor. Passaríamos a pensar num Direito voltado a se adequar não ao que o indivíduo faz mas ao que o indivíduo é, afrontando ao fundamento da dignidade da pessoa humana, ao princípio da presunção de inocência, bem como todos os preceitos do garantismo penal.
Assim, o perfil genético estabelecido pela legislação somente pode determinar para fins de identificação pelo processo de comparação o sexo do indivíduo e os pontos de identificação que permitam por um processo de comparação indicar com certa segurança a correspondências entre o padrão de comparação e o material incriminado[3].
Um segundo questionamento que deve ser trazido a lume é o método utilizado para a coleta do material. Do avanço das pesquisas genéticas os meios que tem mostrado maior eficiência no fornecimento de material genético para fins de abastecimento de banco de dados são os que se baseiam em fluídos corpóreos (sangue, esperma), o bulbo dos fios de cabelo, e a raspagem das mucosas bucais para coleta de células. A legislação demonstra preocupação com o tema, não exaurindo, todavia, o assunto, uma vez que prescreve que no artigo 9º que o método a sem empregado para a coleta do material deva ser eficaz para coleta suficiente para elaboração do perfil genético deva ser adequado e indolor.
A identificação genética para fins de investigação.
Quando tratamos de investigação criminal estamos nos referindo à atividade oficial do Estado de realizar a persecução criminal, mister que se inicia com a prática do delito, cindindo-se em uma fase pré-processual, a investigação criminal e uma fase processual, a ação penal.
Na investigação criminal se tem por objetivo obter elementos indicativos da materialidade delitiva e indícios suficientes de sua autoria de modo a emprestar subsídios e fornecer elementos que autorizem o titular da ação penal o exercício do direito de ação.
É certo que a investigação criminal deve, enquanto atividade oficial do Estado, se curvar aos princípios constitucionais que regem o Estado Democrático de Direito, não se justificando de forma alguma o afastamento de qualquer direito ou garantia sob o pretexto de atingir o fim almejado pelo Estado na investigação.
Por óbvio, tratando da investigação criminal, onde se parte de um fato para, por meios técnicos e legais obter elementos de convicção que autorizem por um raciocínio lógico-jurídico indicar a possível autoria delitiva, que surjam em determinados delitos indícios de ordem genética que poderiam ser utilizados na investigação. A título exemplificativo, num crime de homicídio onde a vítima tenha entrado em combate corporal com o autor do fato, é possível a coleta de material genético à partir de resíduos de pele eventualmente colhidos sob as unhas da vítima, caso esta tenha chegado a arranhar o autor do delito.
Existindo um banco de dados anterior ao fato é possível por meios periciais realizar o exame pertinente para o confronto do material incriminado com os dados constantes do banco de dados a fim de indicar por meio comparativo o provável autor do delito. Em tal situação hipotética a solução é clara e não apresenta qualquer problema de ordem jurídica num primeiro momento. Vale dizer, equivaleria a comparação entre um vestígio de impressão digital deixado no local do crime com o banco de informações dactiloscópico preexistente.
Contudo, a situação ganha outros contornos se pensarmos na necessidade da identificação genética como meio de produção de prova técnico-pericial partindo da premissa na inexistência do banco de dados ou de material genético pré-existente do investigado.
Nesta hipótese a lei autoriza, mediante ordem judicial, a realização do processo de identificação genética. Ocorre que, diversamente do que se dá com a coleta de material dactiloscópico, todos os métodos de obtenção do material genético demandam além da participação ativa do investigado, a adoção de método invasivo, com maior ou menor gravidade, que poderá resultar na produção de prova desfavorável ao investigado.
Sob tal aspecto, guardadas as devidas proporções, encaramos situação semelhante à obrigatoriedade da prestação de informações quando da realização do interrogatório, o fornecimento de material gráfico para realização de perícia grafotécnica, a submissão de exame de alcoolemia pelo método do “bafômetro”, ou mesmo a participação em reprodução simulada dos fatos, todas hipóteses já afastadas em sua obrigatoriedade em face do investigado, tanto pela jurisprudência quanto pela doutrina, por afrontarem ao princípio da presunção de inocência e a vedação da obrigação do investigado de produzir prova em seu desfavor.
Por lógica, será que obrigar o investigado à ativamente fornecer material genético por qualquer dos meios disponíveis não teria o mesmo efeito de força-lo a uma confissão, imaginando, ainda hipoteticamente, a existência de uma eficaz “máquina da verdade”?. Obrigar o investigado a fornecer material genético para servir de meios na investigação não seria o mesmo que obrigar a autoincriminação?
Diferente dos dados dactiloscópicos, cuja obtenção não implica na adoção de métodos invasivos, além de ser uma obrigação a todos imposta na realização da identidade civil, a coleta de material genético e a formação de um banco de dados com os perfis, além de utilizar de métodos invasivos de coleta, tem a finalidade especifica de formar prova visando a investigação criminal.
Já a outra hipótese de realização da identificação genética causa ainda mais espécie é a decorrente de condenação criminal, da qual trataremos em seguida.
A identificação criminal decorrente de condenação criminal
Conforme prescreve o texto legal, todos os condenados pro crime doloso praticados com violência grave contra a pessoa e aqueles condenados pela prática dos crimes hediondos, relacionados no artigo 1º da lei 8072/1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA.
A primeira questão que surge quando pensamos de forma crítica a respeito de um mandamento normativo em matéria criminal ou processual penal é a necessidade da medida e sua pertinências sob o ponto de vista funcional em face dos preceitos e fundamentos constitucionais.
À guisa de exemplo, podemos mencionar o registro de antecedentes criminais com os fins de caracterização de reincidência. É justificável ao pensarmos num critério de justiça até mesmo para realização do juízo de culpabilidade a manutenção por um tempo razoável de um banco de dados com informações a respeito dos autores de delitos como modo de embasar o agravamento da reprimenda penal daquele que insiste na prática delitiva, pois, certamente, sua culpabilidade deve ser, no mínimo, analisada de forma diferenciada daquele que comete um delito pela primeira vez.
É funcionalmente pertinente sob o ponto de vista, até mesmo, da individualização da pena. Mesmo porque, estende-se a todos os autores de todos os delitos, e não a esse ou aquele, e possui reflexos do ponto de vista penal e processual[4].
Busquemos, pois, a funcionalidade, ou a justificativa com base constitucional na extensão da excepcionalidade prevista no texto constitucional. Ora, a alteração legislativa, na contramão do dispositivo constitucional estabelece que todos os condenados por crimes dolosos graves contra a pessoa e os crimes hediondos deverão obrigatoriamente ser submetidos à identificação genética, passando seus dados a compor um banco de dados de identificação genética.
Pensemos, pois, na funcionalidade de um banco de dados criminal de tal natureza. O indivíduo autor de um homicídio múltiplo seria submetido a identificação genética. Qual a funcionalidade e a probabilidade dessa informação genética servir de base numa futura investigação se o modo de atuação do criminoso não deixar elementos materiais que permitissem nem no qual ele foi condenado uma identificação genética? E mais: por que motivo um crime contra a pessoa poderia resultar na excepcionalidade da identificação genética decorrente da condenação, ou a conduta de falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais possa receber esse tratamento e um crime de roubo não mereceria tal tratamento.
Estamos diante não de uma medida de identificação criminal funcional, que possa se prestar de forma clara a investigação criminal ou a função de exercício racional do Direito Penal, mas tão somente de uma medida de caráter executório, um efeito acessório da condenação penal, arbitrariamente atribuída a determinados delitos sem que isso possa representar qualquer função dentro do ordenamento, senão a criação de um banco de dados genéticos de autores de delitos, não se tratando de uma medida visando incidir sobre fato criminoso mas sobre os autores de determinados delitos.
A inovação legislativa, em dissonância ao preceito constitucional, que estabelece de forma ampla a excepcionalidade da identificação criminal, que em sua forma ordinária se dá pelo processo dactiloscópico, adota a possibilidade de mediante autorização judicial, quando demonstrada imprescindível na investigação, a possibilidade da identificação genética, acaba por generalizar o processo como efeito secundário da condenação apenas em alguns delitos, mas sem que fique estabelecida a funcionalidade dessa identificação decorrente da condenação penal transitada em julgado.
Mais espécie causa ainda de uma detida leitura da lei, uma vez que a identificação genética decorrente da investigação, tratada na lei de identificação criminal permanecerá armazena em banco de dados produzido com base em atividades investigativas (Lei 12037/09, Art. 7o – B), sendo que esses perfis serão excluídos com a prescrição do delito investigado do qual a identificação foi decorrente[5].
Todavia, estabelece a identificação genética não com base no fato, mas com base na condenação criminal, em banco de dados diverso daquele primeiro, acessível mediante requisição ao Poder Judiciário pelos órgãos incumbidos da atividade de Polícia Judiciária (Polícia Federal e Polícias Civis), sem que haja possibilidade de exclusão desses dados de perfil genético, estabelecendo ai uma excepcionalidade à própria exceção da identificação criminal, inserida na Lei de Execução Penal.
Referência Bibliográfica
BRASIL. Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2012.
BRASIL. Código Penal. São Paulo: Saraiva, 2012.
BRASIL. Código de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2012.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. Questões fundamentais. A doutrina geral do crime. 1a edição brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa – Básico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988
GOMES, Luis Flávio; MOLINA, António Garcia-Páblos de. Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
Grande Dicionário Houaiss. Versão online. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/gramatica.jhtm. Acessado em: o8 de julho de 2012
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal, 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14a edição. São Paulo: Saraiva, 2010;
MEDRADO, Vitor Amaral. O conceito de autonomia da vontade na teoria moral e jurídica de Kant. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id= 11391 . Acesso em 17 de julho de 2012
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado: referencias doutrinarias, indicações legais, resenha jurisprudencial: atualizado até julho de 1995. 5a edição. São Paulo: Atlas, 1997.
ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2a edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007..
Sobre identificação genética e métodos de estabelecimento de perfil genético:


[1] PORTUGAL, Ministério da Justiça. Disponível em: http://www.dgaj.mj.pt/sections/files/identificacao-criminal/identificacao-criminal//sections/files/identificacao-criminal/identificacao-criminal/1-registo-criminal/downloadFile/file/1-registo%20criminal%20pessoas%20singulares.pdf?nocache= 1335176741.32. Acesso em 24 de julho de 2012.
[2] Idem
[3] Aqui a expressão “material incriminado” refere-se ao material que se pretende expor a comparação com os dados já constantes de um banco de dados pré-existente.
[4] CP. Art. 61, I; Lei. 9099/96, Art. 76, I, II;
[5] Na verdade, aqui foi a leitura que se entendeu possível do dispositivo legal. Afinal, considerando a lei de forma sistemática, é estabelecido que excepcionalmente o juízo pode, no decorrer da investigação autorizar a identificação genética do investigado, que passará a compor um banco de dados de perfis genéticos de investigados. Noutro ponto, determina que tais perfis sejam excluídos com o termo do prazo decadencial in abstrato do delito investigado. Ora, o termo inicial desse prazo fica indefinido pela lei. Seria a data do fato investigado? A data da investigação criminal? Faz parecer que o mais razoável é se admitir que o prazo a que a lei se refere deva seguir a prescrição do delito à partir da data do fato. Contudo, qual a justificativa da manutenção do perfil genético no caso da constatação de incompatibilidade entre o identificado e o objeto da identificação, ou ainda, da manutenção do perfil no caso de uma sentença absolutória, já que a lei não aborda tal possibilidade.
 
site Terra

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Protocolo para a justiça de gênero

Texto de CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos. Tradução de Iara Paiva. Publicado originalmente no site do CLAM em 20/03/2014.
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O termo femicídio (ou feminicídio) foi cunhado nos anos 70 pela socióloga, feminista e escritora Diana Russell para discutir o “assassinato misógino das mulheres cometidos por homens”. O termo tornou-se mais comum, no entanto, após a morte inexplicável de mais de 500 mulheres em Ciudad Juarez, no México. Declinação do termo “neutro” homicídio, o neologismo foca a violência letal contra as mulheres e como ela é influenciada pela diferença de gênero. Ciudad Juarez tornou-se emblemática dessa forma extrema de violência, que é uma constante em toda a América Latina e Caribe.
Geralmente, esses crimes permanecem impunes perante a ausência de instrumentos legais e políticas de segurança que respondam às suas características estruturais. Não só esta forma de violência letal está ausente nos códigos, como a falta de consciência e competência dos agentes de justiça e da polícia a torna invisível na prática dos tribunais. A fim de erradicar esta impunidade, desde 2007 diferentes países têm promovido reformas legais que tipificam o femicídio ou feminicídio. No entanto, muitos estados não o especificam em seus códigos penais. Este processo de reforma tem sido realizado utilizando dois métodos: países como El Salvador, Guatemala, Colômbia, Nicarágua, Panamá e Bolívia incluíram tipificações em leis especiais para a prevenção, tratamento e punição da violência contra as mulheres; enquanto Costa Rica, Chile, Peru, Argentina, Honduras e México reformaram leis penais existentes.
Como uma forma de apoiar estes países na implementação de marcos processuais para efetivação prática dessas leis, depois de mais de dois anos de trabalho, consultas e validações, será publicado o Protocolo Modelo Latinoamericano de Investigação das Mortes Violentas de Mulheres por Motivos de Gênero (femicídio/feminicídio). Os responsáveis pelo documento são o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR) e a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), no âmbito da Campanha Secretário-Geral das Nações Unidas “Una-se para acabar com a violência contra as mulheres”, que culmina em 2015.
Para essas organizações, o femicídio/feminicídio geralmente se refere à “morte violenta de mulheres, com base no gênero, se ela ocorre dentro da família, da unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, na comunidade, por parte de qualquer pessoa, ou que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado e seus agentes, por ação ou omissão”. É esta a definição estabelecida na Declaração sobre Femicídio do Comité de Especialistas do Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
A peruana Carmen Rosa Villa, Representante Regional para América Central OHCHR, explica que o “protocolo é um instrumento técnico e prático para fornecer aos sistemas judiciais da América Latina as diretrizes para investigação criminal eficaz sobre as mortes violentas de mulheres por motivo de gênero, de acordo com as obrigações internacionais assumidas pelos Estados.” A idéia de criar este Protocolo, lembrou a especialista, começou há dois anos, em El Salvador, país que registra a taxa de homicídio de mulheres mais alta do mundo. Lá realizou-se uma compilação de recomendações sobre a violência de gênero. Durante este trabalho, o Comitê CEDAW, o Comitê contra a Tortura e o Comitê de Direitos da Criança, mostraram “um padrão” dos relatores sobre a violência que aludia à “falta de resposta da justiça em casos de violência gênero e sua expressão mais extrema: o feminicídio”, chamando a atenção para as deficiências e dificuldades que ainda persistem na investigação de mortes violentas de mulheres. No México, a ONU Mulheres desenvolvia um protocolo para o femicídio, este documento foi adaptado para que fosse aplicado pelo Ministério Público de El Salvador, e hoje é uma política de promotoria do país.
O protocolo do México, junto com outros 17 protocolos de investigação, serviu como antecedente para um rascunho do Protocolo Modelo que incluiu também a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará de 1994, e as sentenças do Tribunal Interamericano de Direitos Humanos (CIDH). Entre elas, destaca-se o caso de Maria da Penha (Brasil) e o julgamento sobre o Campo de Algodão (México). Ambos enfatizaram que “o inquérito judicial é especialmente relevante no contexto da violência sofrida pelas mulheres, e que o dever de diligência é influenciado por atitudes de discriminação de gênero”.
O caso da brasileira Maria da Penha Fernandes é emblemático. Em maio de 1983, durante seu sono, o marido atirou contra ela. Maria da Penha não morreu, mas ficou paraplégica. Duas semanas depois de deixar o hospital, o marido tentou eletrocutá-la. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos julgou procedente a denúncia contra o Estado Brasileiro por não tomar medidas eficazes para prevenir e punir a violência e pelo “padrão de impunidade que reflete a resposta do judiciário contra esses ataques”. O Tribunal estabeleceu a existência de um padrão geral de tolerância estatal e ineficiência judicial e aplicou, pela primeira vez desde a sua entrada em vigor, a Convenção de Belém do Pará.
Aline Yamamoto, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência do Brasil, lembra que este caso levou à promulgação em 2006 da Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha. Ela estabelece sanções penais para atos de violência doméstica e familiar e iniciativas de prevenção. No entanto, não há lei específica que penalize o feminicídio, apesar das 5.000 mortes anuais por esta motivação. Yamamoto explica que embora o número seja muito expressivo e represente 10% do total, está “escondido ” entre os 50.000 homicídios registrados no Brasil. Diz que o debate sobre o feminicídio é recente. O problema, diz a profissional, ocorre quando nesses casos de morte a aplicação da justiça é feita por tribunais diferentes daqueles que foram criados pela lei Maria da Penha. “Tanto a acusação quanto a defesa estão mais preocupadas em investigar a vida emocional das pessoas envolvidas do que em entender a violência de gênero em um contexto cultural machista e sexista”, observa. Explica que muitos juízes não sabem o que é gênero, usam vários estereótipos e culpabilizam as mulheres por suas roupas ou seu comportamento. Neste contexto, o Protocolo Modelo será vital, afima.
Existem dados sobre mortes violentas de mulheres devido ao gênero na América Latina, mas a comparação dos valores entre os países é muito complexa, pois o conceito de femicídio ou feminicídio varia de país para país e descreve realidades distintas. Em alguns países, apenas se considera feminicídio quando a morte violenta de mulheres ocorre em um relacionamento, em outros países, a definição abrange também as mortes que ocorrem em outros contextos. No geral, de acordo com um relatório do Observatório de Igualdade de Gênero da América Latina e Caribe da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), em 2011 foram registrados 1.139 homicídios de mulheres pelo fato de serem mulheres em oito países da região. Em 29,4 % dos casos, a morte foi causada por namorados, ex-namorados, cônjuges, ex-cônjuges ou ex-conviventes, ou seja, aqueles que mantiveram uma relação com as vítimas. O relatório de 2012 da organização Small Arms Survey concluiu que mais de metade dos 25 países com maior incidência de feminicídio estão na América Latina e no Caribe.
Manifestação contra a violência as mulheres. Foto de Sergio (cosmopolita1) no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Manifestação contra a violência as mulheres. Foto de Sergio (cosmopolita1) no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
A perspectiva de gênero e a insegurança cidadã
Na investigação para elaboração do Protocolo foram identificadas deficiências imperdoáveis, como as relatadas pelo Representante Regional para a América Central OHCHR: relatórios de autópsia deficientes, negligência e irregularidades na coleta e análise de provas, identificação das vítimas e dos agressores. Somando-se aos “estereótipos reproduzidos por aqueles que administram a justiça”, revela, ao invés de esclarecer os fatos, os procedimentos transferem o ônus da prova para a vítima. “É como se a vítima provocasse o acontecido e que tudo, em última análise, fosse resultado de seu mau comportamento”, enfatiza Villa.
Além da permanência de preconceitos e estereótipos na prática de operadores da justiça, o desenvolvimento do Protocolo Modelo notou evidências de atraso no início das investigações, lentidão ou inatividade de registros, condução de investigações por parte das autoridades sem imparcialidade e competência nesta área; pouca credibilidade conferida às reivindicações das vítimas e suas famílias, tratamento inadequado das vítimas e suas famílias quando procuram colaborar na investigação dos fatos, perda de informações, bem como uma participação insuficiente dos representantes das vítimas no processo.
Para muitos investigadores, na América Latina e no Caribe, há uma grande diferença entre o que é institucional, a legalidade e a transferência cultural. Neste contexto, indica Villa, o Protocolo Modelo é uma ferramenta útil para que o investigador compreenda o fenômeno social do feminicídio e assegure uma punição. Quando se consegue isso, gera-se um processo de transformação cultural . Em resumo, o Protocolo Modelo não será para determinar “única e exclusivamente um protocolo para análise forense, ou como médicos, policiais e juízes devem atuar, mas será um elemento substancial que incluirá a perspectiva de gênero a todos os que participem das fases de investigação”, disse o representante do ACNUDH.
Soraya Hoyos, encarregada interina da campanha Una-se para acabar com a violência contra as mulheres, explica que esta ferramenta será útil para os encarregados da investigação de mortes violentas, uma vez que o texto implica a compreensão do feminicídio como “uma consequência da discriminação e desigualdade que ainda existe entre homem e mulher”, e que houve um debate social e cultural sobre qual sociedade se quer construir no século XXI, um período em que “as mulheres são muito mais presentes no vida pública”, disse ela.
Representando a Convenção de Belém do Pará, Patricia Mejía reflete sobre a contribuição do Protocolo Modelo. Na sua opinião, o documento vai ajudar a mudar a “dinâmica de compreensão” dos praticantes de justiça. Explica que, quando o Protocolo Modelo diz que “a morte violenta de mulheres pelo fato de ser mulher”, haverá uma maior compreensão sobre o “componente de ódio” de um crime desta natureza, que é incorporado em um “sistema de valores desiguais e patriarcal”.
Quando um evento assim não é investigado, os especialistas indicam que se transmite para a sociedade que estes comportamentos são permitidos e tolerados. O compromisso com o Modelo Protocolo investe na realização de investigações eficientes, esperando resultados tangíveis, impondo punições e compensando as vítimas. “Queremos instalar um mecanismo para não estimular e incentivar a repetição destes atos e gerar o que se chama no direito penal de prevenção geral”, diz Villa. A especialista destacou que a mensagem é clara: estes comportamentos não são tolerados porque a justiça intervém a tempo e alcança sentenças eficazes para os infratores.
Assim como foram criadas estruturas especializadas para combater crimes graves como terrorismo, lavagem de dinheiro e tráfico de drogas, o Protocolo Modelo quer ser uma contribuição para a criação de instituições na região, um sistema de leis, políticas públicas de controle e proteção dos direitos das mulheres. “Estes eventos estão contribuindo para a insegurança de uma maneira muito forte”, diz Villa. Ela afirma que esta crise na sociedade não se reflete apenas o ladrão, ou crimes econômicos, de propriedade ou lavagem de dinheiro, mas “também implica o crime que prejudica o pleno exercício dos direitos humanos das mulheres” , disse a representante da OHCHR.
Entre as recomendações que podem ser feitas para os Estados na prevenção, investigação, julgamento, punição e reparação das mortes violentas de mulheres devido ao gênero, aparecem: “identificar comportamentos dos agressores”, “verificar presença ou ausência de motivações de gênero”, definir o “grau de responsabilidade dos autores do crime” e “promover a participação das vítimas indiretas ou de suas famílias”. Em particular, se pretende incorporar estruturas políticas abrangentes para prevenir e combater a violência contra as mulheres, criminalizar a morte violenta de mulheres devido ao gênero, alocação de recursos técnicos e financeiros, acesso à serviços voltados às mulheres sobreviventes e suas famílias e a promoção de intervenções preventivas. Também estão incluídos entre os objetivos a formação e a capacitação de funcionárias e funcionários públicos, a coordenação interinstitucional, o monitoramento constante das políticas de prevenção e punição, e o planejamento de sistemas de informação e políticas públicas.
Além disso, o Protocolo Modelo pretende ser uma ferramenta completa para que a partir da legislação nacional se possa também estabelecer um direito comparado, com a legislação de outros países sobre o assunto. Portanto, é um documento “flexível” e adaptável ao contexto nacional, sujeito às instituições, leis e cultura de cada país. Nessa lógica, o texto inclui os procedimentos para o “projeto de investigação”, a ação judicial, “a construção do caso” para a imposição de vítimas diretas e indiretas e “recomendações para a apropriação do protocolo.”
Campanha/estratégia de comunicação
O Protocolo Modelo é um dos resultados mais importantes da campanha “Una-se para acabar com a violência contra as mulheres”, diz Soraya Hoyos, responsável interina da campanha, que o qualifica como uma ferramenta real e uma possibilidade concreta de traduzir os compromissos dos Estados de proteger os direitos das mulheres contra a violência, e levar essa prática a proteção, a vida real das pessoas. Para seus gestores, é uma estratégia para a eliminação da violência contra as mulheres, que visa mobilizar diversos setores envolvidos com a questão. “Conseguiu-se plantar a ideia de que a violência não é um problema das mulheres, é uma questão de homens e mulheres, é uma questão de sociedade e do Estado”, afirma.
Trabalhou-se também com roteiristas e diretores de telenovelas, conta a profissional, para começar a “discutir culturalmente” qual é a ideia da mulher e do homem vendida e transmitida através da mídia e de produtos culturais de massa como são as novelas. “Uma coisa é trabalhar com o Judiciário e o Ministério Público, e a outra é conquistar novos espaços”, diz a encarregada da campanha. Seguindo este raciocínio, na Argentina estão trabalhando com uma rede de salões de beleza e cabeleireiros, e em associação com a MTV América Latina desenvolveu-se uma iniciativa destinada especificamente aos jovens chamada “O corajoso não é violento” que pretende questionar a masculinidade associada à violência.
A revisão do rascunho do Protocolo Modelo incluiu várias categorias de operadores jurídicos, funcionários do Ministério Público, assim como representantes de organizações de direitos humanos e grupos ativos na defesa dos direitos das mulheres. Segundo Soraya Hoyos, o processo deve ser coletivo, como uma “onda expansiva que realmente mude nossa mentalidade” porque os homens também se sentem “presos” em um padrão de masculinidade que não lhes permitem explorar sua individualidade e sua postura coletiva de maneira verdadeira. Você tem que “quebrar as barreiras”, segundo Hoyos, para fazer desta questão uma verdadeira preocupação em todo o mundo e não apenas entre especialistas e pessoas afetadas diretamente por ela. “Assim como o racismo deixou de ser um problema que a sociedade aceita como normal, apesar de vestígios remanescentes, devemos eliminar esta tolerância social para a violência, o Protocolo Modelo e a campanha caminham neste sentido”, afirmou.
O fato é que, com o Protocolo Modelo os problemas de desigualdade de gênero e violência contra as mulheres não serão totalmente resolvidos, nem os agentes de justiça entregarão respostas 100% eficazes. A campanha “Una-se” também não resolverá essa questão. De acordo com Villa, é necessário gerar uma maior consciência e compreensão dos direitos das mulheres; para isso as ONGs deveriam empoderá-las e criar-lhes condições para lutar e denunciar a violência que sofrem. Por outro lado, é necessária a formação de policiais e instituições de acordo com a realidade de cada país, e a aposta é a inclusão da iniciativa privada. “Incluir o setor privado para incentivar e promover oportunidades para a participação de mulheres que sofreram violência, é um desejo ainda pendente”, concluiu Villa.

do site blogueiras feministas