segunda-feira, 14 de julho de 2014

Breves comentários à lei 12654/12 – A identificação criminal e genética

 

Emanuel Motta da Rosa
Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela FMU(2010). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Direito Processual Penal. Professor em curso preparatório para concursos públicos nas áreas de Direito Constitucional, Penal, Processo Penal e Administrativo.

 

O presente trabalho pretende realizar uma análise da inovação legislativa introduzida à Lei de Identificação Criminal e as alterações na Lei de Execução Penal, bem como os reflexos na sistemática jurídico-penal a partir de um ponto de vista Constitucional e as repercussões do diploma em face dos direitos e garantias individuais.

Aspectos gerais sobre a identificação
Quando tratamos da questão da identificação criminal, temos em nosso ordenamento jurídico o mandamento constante do artigo 6o do Código de Processo Penal, determinando que na instrução do Inquérito Policial o Delegado de Polícia deveria, dentre outras providências ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes.
Em decorrência do dispositivo, durante longo período, a identificação criminal foi entendido como procedimento legítimo no caso de todos os autores de infrações penais, sendo editada inclusive Súmula 568 do Supremo Tribunal Federal, determinando que a identificação criminal do indiciado pelo procedimento datiloscópico não constituiria qualquer constrangimento, enquanto expediente investigativo regulado pelo Código de Processo Penal, ainda que o indivíduo já fosse civilmente identificado (ACQUAVIVA, 1993pág. 649)
Tal panorama foi alterado em 1988 com a promulgação da Constituição Federal que em seu artigo 5o, ao tratado dos direitos e garantias individuais, determinou em seu inciso LVIII a excepcionalidade da identificação criminal, de modo que aqueles que fossem civilmente identificados não seriam submetidos à identificação criminal, salvo nos casos previstos em lei.
Necessário, pois, determinar um conceito de identificação criminal a fim de estabelecer sua finalidade e fundamento dentro do panorama jurídico, bem como sua função em face do mandamento constitucional.
O processo de identificação individual sempre se mostrou uma preocupação humana desde os primórdios das civilizações organizadas, havendo registros da prática desde a antiguidade, seja pelos registros das gerações, vinculando os indivíduos a sua família, ou mesmo por intermédio de recenseamentos realizados pelo Poder central. Por lógica, os processo de identificação experimentaram evolução conforme desenvolveram-se os meios de registro e manutenção das informações.
O identificação oficial tem por finalidade emprestar credibilidade e confiança acerca da pessoa com quem se está tratando, de modo que a identificação civil representa uma fonte estatal, por consequência com uma presunção de legitimidade e segurança, sobre a identidade de cada indivíduo.
Já para o Estado representa uma fonte confiável de dados a respeito das pessoas que integram um determinado grupo social. Além da identificação dos cidadãos, dentre estes, identificar e manter registro daqueles que foram autores de ilícitos sempre foi uma preocupação do Estado, havendo registro da prática de mutilações para tornar possível à todos saber que o indivíduo era autor de delitos.
Outrossim, tratando da investigação criminal, a existência de um banco de dados com informações confiáveis sobre autores de delitos bem como seus modos de atuação sempre se mostrou um instrumento de grande valia para a elucidação de crimes e a identificação de seus autores.
Assim, como fim de realizar uma identificação confiável e a manutenção de um banco de dados oficial que fosse eficaz, diversos métodos foram adotados, incluindo a fotografação, métodos antropométricos até finalmente se consolidar a utilização dos registros de impressões digitais como um método eficaz, simples e econômico de realizar a identificação dos indivíduos, sendo método empregado para fins civis e criminais.
Desde então a prática da identificação criminal e a formação de banco de dados de registro criminal tem se tornado uma prática difundida como método de formação de uma base de dado a respeito dos autores de ilícitos penais, de maneira a auxiliar em futuras providências investigativas.
Nesse ponto é necessário realizar uma distinção conceitual entre indiciamento e a identificação criminal.
Indiciamento é o ato privativo do Delegado de Polícia no curso da investigação criminal formalizada no Inquérito Policial, no qual são indicados os fundamentos de fato e de direito que autorizam imputar ao investigado a provável autoria delitiva. Constitui, pois, uma construção de raciocínio lógico-jurídico baseado nos elementos de convicção produzidos no transcorrer da investigação que relacionam fática e juridicamente o indiciado ao fato criminoso apurado. É ato jurídico que estabelece, dentro da investigação criminal, relação entre o indiciado e o fato.
Dentre as providências do indiciamento o diploma processual penal previa de uma forma ampla a identificação criminal, consistente no ato de formalmente criar uma identidade criminal, paralela a eventual identidade civil preexistente, com coleta do material datiloscópico do indiciado, formando assim uma base de dados com os registros dos autores de delitos, permitindo assim futuras pesquisas para auxiliar em outras investigações.
Em que pese não existir um conceito legal da identificação criminal em nosso ordenamento, podemos então recorrer ao Direito comparado, com definição emprestada pelo órgão de identificação do Ministério da Justiça de Portugal:
O registo criminal contém os antecedentes criminais dos cidadãos de forma a permitir o respetivo conhecimento, nos termos legais, ou a atestar a ausência de antecedentes criminais[1]
A fonte de informação lusitana ainda indica as finalidades para as quais a identificação criminal se destina, designando os órgão públicos que poderão ter acesso às informações, dentre as quais: “Os órgãos de polícia criminal, para a prática de atos de inquérito ou de instrução;”[2]
Na identificação criminal era previsto a realização da coleta de material datiloscópico que serviria à individualização dos caracteres pessoais do autor do delito.
Assim, enquanto o indiciamento é o ato administrativo de cunho jurídico que cria o liame entre o provável autor do crime e o fato, a identificação criminal é ato administrativo voltado a individualização dos autores de delitos, formando uma base de dados disponível aos órgãos de segurança do Estado para auxiliar em medidas de investigação criminal. Dentro dos diversos métodos de individualização pessoal utilizados na investigação criminal a lei 12.037/2009 determina a realização da datiloscopia e da fotografação, que integrarão o procedimento de Polícia Judiciária no qual se formalizar a investigação.
Atendendo o comando constitucional que excepciona a identificação criminal, a lei 12.037/2009 a autoriza nas seguintes hipóteses:
Art. 3º Embora apresentado documento de identificação, poderá ocorrer identificação criminal quando:
I – o documento apresentar rasura ou tiver indício de falsificação;
II – o documento apresentado for insuficiente para identificar cabalmente o indiciado;
III – o indiciado portar documentos de identidade distintos, com informações conflitantes entre si;
IV – a identificação criminal for essencial às investigações policiais, segundo despacho da autoridade judiciária competente, que decidirá de ofício ou mediante representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa;
V – constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações;
VI – o estado de conservação ou a distância temporal ou da localidade da expedição do documento apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres essenciais.
Podemos, pois, dividir as hipóteses nas quais a identificação criminal está autorizada de acordo com o motivo preponderante:
  1. No caso do investigado não apresentar um documento de identificação civil hábil, dentre aqueles descriminados no texto legal;
  2. No caso do documento apresentado não se prestar como fonte segura para comprovar de forma hábil a identificação civil do investigado;
  3. No caso da existência de registros pretéritos da utilização de documentos falsos;
  4. No interesse da investigação criminal levada à cabo pelo Delegado de Polícia, quando for esta imprescindível para a formação de elemento de convicção na investigação.
Nos casos dos incisos I, II, III e VI, o fundamento da realização da identificação criminal reside na necessidade de comprovar inequivocamente a identidade do investigado em face da insubsistência do documento apresentado, que não fornece elementos mínimos para comprovar de forma hábil e inequívoca a identidade civil.
Já no caso do inciso V a existência de registros pretéritos envolvendo o implicado na utilização de documentos falsos faz cair por terra a presunção de veracidade e legitimidade dos dados constantes de qualquer documento apresentado, de modo a tornar necessária a identificação criminal como meio de confrontar a veracidade das informações apresentadas por qualquer documento de identificação civil apresentado.
Tanto numa quanto noutro hipótese, a identificação criminal recam sobre o sujeito, sobre o requisito da autoria, como medida necessária a comprovar materialmente nos autos a identidade da pessoa sobre quem recai a atuação da persecução criminal, seja em fase investigativa, seja em fase processual, de modo que se torne certo que a pessoa investigada ou processada é de fato aquela que afirma ser. Podemos mesmo funda tal necessidade no preceito disposto no art. 5º, XLV, da Constituição Federal: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado [...]”.
Como vimos, as hipóteses acima elencadas tem relação à pessoa do investigado ou processado, e não com o fato ou a materialidade delitiva.
Por seu turno, resta a análise da hipótese de identificação criminal prevista no inciso IV da lei de identificação criminal, sobre a qual recai também o objeto de inovação legislativa objeto do presente trabalho.
Vemo-nos aqui diante de uma hipótese típica de identificação criminal relacionada à investigação e à apuração do fato criminoso, havendo relação com a instrução probatória na persecução penal. Conforme a leitura do inciso, havendo necessidade no Inquérito Policial da obtenção de dados pessoais do investigado, o juiz pode de ofício, ou mediante representação do Delegado de Polícia, do promotor público, ou mesmo do defensor do investigado, autorizar a realização da identificação criminal, independente da existência e regularidade da identificação civil e dos documentos que a comprovem.
É certo, neste caso, que a identificação criminal, desconsiderando a identificação civil preexistente, deve ter uma finalidade a ser demonstrada, um fim útil na investigação criminal, não constituindo mera liberalidade ou conveniência da instrução criminal, devendo, ao contrário, ter sua necessidade e razões de fato e de direito demonstradas de forma lógica e coordenada, indicando os motivos pelos quais se justificam, podendo então afastar a garantia constitucional do direito a intimidade.
Sob tal ótica, ganha novamente sentido o texto da súmula do STF, uma vez que, autorizada identificação criminal por ordem judicial em face da necessidade indicada pela investigação, não constitui o ato violação de direito ou constrangimento ilegal, ainda que seja o indivíduo civilmente identificado.
A identificação criminal e os princípios constitucionais
Como verificamos, diferem conceitualmente o indiciamento e a identificação criminal. Indiciamento é o ato realizado nas investigações que indica de maneira formal o suspeito, relacionando sua conduta ao delito investigado, criando assim um vínculo jurídico na relação processual penal. Já a identificação criminal é ato realizado no ato de indiciamento, colhendo informações que constarão de uma base de dados relacionando os autores de ilícitos.
Dentro da identificação criminal a legislação autoriza, de forma excepcional, a identificação dactiloscópica, com a coleta de impressões digitais que constarão da ficha de identificação criminal.
O indiciamento tem repercussões jurídicas na persecução penal. A identificação criminal se presta a colher dados do autor do crime e alimentar uma base de dados acerca dos autores de ilícitos penais.
Questionando-nos, então, acerca da identificação criminal, em face do mandamento constitucional de estabelece sua excepcionalidade no ordenamento jurídico pátrio, vedando a identificação criminal daqueles que são civilmente identificados, necessário se faz a busca dos princípios constitucionais incidentes sobre a matéria.
Certo é que as atividades de investigação criminal, assim compreendidas em sua forma mais ampla, com todos os atos que lhe constituem, visam atender uma finalidade preconizada pelo Estado. Dentre as atribuições que cabem ao Estado Democrático de Direito na realização de sua finalidade – o bem comum – cabe a atuação de forma ativa na prevenção e repressão das condutas lesivas aos bens jurídicos individuais e coletivos. Cabe, pois, o exercício da jurisdição penal que se volta contra aqueles que praticam ilícitos penais, visando assim coibir a prática de tais condutas e repreender os seus autores.
Assim, com a ocorrência de um delito, inicia-se o poder-dever do Estado de atuar com vistas a repressão daquela conduta por meio da persecução penal, que se desenvolver em duas fases: uma pré-processual, onde atividades investigativas são realizadas com vistas a estabelecer elementos indicativos da materialidade e da provável autoria, emprestando fundamento à ação penal, e a processual, que se desenvolve no processo criminal.
Pensando especificamente nas atividades de investigação, a existência de um banco de dados que dispusesse de todos os dados dos autores de delitos, incluindo suas características físicas, sinais particulares, identidade dactiloscópica e o máximo de informações dos autores de delitos seriam sempre de grande valia para as atividades investigativas. Contudo, poderíamos nos questionar: pode o Estado, de forma indiscriminada, realizar um banco de dados, selecionando e catalogando pessoas, simplesmente para atender um fim pretendido?
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, insculpido no artigo 1º da Constituição Federal eleva a fundamento do Estado Brasileiro o respeito à individualidade do ser humano e a obrigação do Estado de não reduzir o indivíduo à condição de mero objeto ou meio na execução de um fim almejado.
Aprofundando tal noção, temos que:
temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET: 2007, pág. 62)
Nesta linha de raciocínio, é licito afirmar que o Estado não poderia, com vistas ao fundamento da dignidade da pessoa humana, estabelecer de forma indiscriminada a obrigatoriedade da identificação criminal de todas as pessoas, especialmente já existindo um banco de dados com as informações civis.
Seria lícito então, o constrangimento e o estigma de constar de um banco de dados criminal, indefinidamente, apenas para servir a um fim do Estado de investigação e preservação da ordem pública?
Todavia, há que se ter em mente, da mesma forma, o interesse social que a investigação criminal atende, visando a apuração de ilícitos e a identificação de seus autores, visando coibir as práticas delitivas, punir os autores de crimes e evitar a ocorrência de outros ilícitos. Assim, é possível admitir que o fundamento da dignidade da pessoa humana não pode ser considerado como absoluto ao ponto de afastar toda a sistemática jurídico-constitucional, na qual ela encontra o seu reconhecimento e sua garantia.
Havendo, pois, uma finalidade específica, um fim a ser atendido, não pode a dignidade da pessoa humana ser utilizada com escudo absoluta, não a fim de afastar abusos do Estado, mas para resguardar toda e qualquer conduta ilícita que o indivíduo pratique. Assim, pode a Constituição excepcionar a realização da identificação criminal, inclusive pelo método dactiloscópico, autorizando-as naqueles casos em que sua necessidade justifique a medida.
Outro princípio a ser levado e consideração é o da Presunção de inocência. Antes da condenação criminal transitada em julgado, ninguém pode ser considerado culpado do delito pelo qual é investigado, tampouco sofrer ou ser submetido a qualquer medida que pudesse implicar em sua incriminação antes do julgamento definitivo do mérito. Essa é a linha adotada pela legislação no que diz respeito as hipóteses em que se admite a identificação criminal na fase pré-processual apenas em situações excepcionais justificadas pela necessidade da investigação, como meio de confirmar a suspeita sobre a real identidade do investigado.
Por outro lado, o princípio constitucional da Vedação à auto incriminação implica no reconhecimento de que o investigado não pode de forma alguma ser obrigado a agir de modo a fornecer elementos de convicção que impliquem na sua incriminação. O investigado não pode ser compelido a auxiliar nas atividades que implicarão em sua condenação.
Identificação genética
O texto da lei 12.654 de 28 de maio de 2012 introduziu, dentre os métodos de identificação pessoal possíveis de serem utilizadas na identificação criminal a coleta de material genético dos investigados com vistas à utilização dos dados para compor um perfil genético utilizável em investigações criminais.
A lei prevê duas oportunidades em que pode o material genético ser colhido para integrar a identificação criminal:
  • No transcorrer das investigações, quando esse material se mostrar imprescindível na persecução, mediante autorização judicial, ou
  • Em decorrência de condenação criminal transitada em julgado por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, bem como nos crimes arrolados no art. 1º da lei de crimes hediondos.
A primeira questão é: qual a extensão, ou, quais dados do código genético poderiam ser utilizados para a realização do perfil do identificado, de modo que não pudesse ser utilizado para outro fim que não a identificação criminal ou para que não fosse utilizado como meio classificatório ou discriminatório de qualquer natureza.
O diploma legal, tratando da coleta dos dados genéticos, estabelece que o perfil genético determina que os dados colhidos não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética de gênero, vale dizer, o perfil genético apenas poderá indicar pontos de comparação para efeitos de confronto e identificação, não podendo servir para indicar características físicas ou mesmo traços comportamentais passíveis de verificação por análise genética. Apenas o sexo do identificado poderá constar do perfil genético, como meio de classificação no procedimento de identificação.
A preocupação se justifica. Os avanços das ciências biológicas, especialmente dos estudos da genética permitiram o total mapeamento do genoma humano, possibilitando traçar de forma completa a estrutura do DNA, possibilitando muito mais do que a mera identificação, completo estudo de características físicas e comportamentais que tenham fundo genético. Ademais, os contínuos estudos no campo da genética avançam no sentido de determinar padrões comportamentais de fundo genético, bem como a predisposição para determinadas condutas. Pensar de uma maneira nefasta em tal sentido poderia facilmente conduzir a um pensamento que pretendesse a separação dos indivíduos por conta do que são, e não por aquilo que fazem, criando um rumo para um direito penal do autor, em detrimento de um direito penal do fato.
Facilmente disso se poderia passar a pensar num direito profilático, atuando sobre aqueles que tem uma tendência ou uma predisposição genética à realização de determinadas condutas tidas como indesejadas. Mais do que isso, estaríamos tratando de um direito penal que estabelece pré-conceitos, partindo do autor para os fatos, e não do fato criminoso para o autor. Passaríamos a pensar num Direito voltado a se adequar não ao que o indivíduo faz mas ao que o indivíduo é, afrontando ao fundamento da dignidade da pessoa humana, ao princípio da presunção de inocência, bem como todos os preceitos do garantismo penal.
Assim, o perfil genético estabelecido pela legislação somente pode determinar para fins de identificação pelo processo de comparação o sexo do indivíduo e os pontos de identificação que permitam por um processo de comparação indicar com certa segurança a correspondências entre o padrão de comparação e o material incriminado[3].
Um segundo questionamento que deve ser trazido a lume é o método utilizado para a coleta do material. Do avanço das pesquisas genéticas os meios que tem mostrado maior eficiência no fornecimento de material genético para fins de abastecimento de banco de dados são os que se baseiam em fluídos corpóreos (sangue, esperma), o bulbo dos fios de cabelo, e a raspagem das mucosas bucais para coleta de células. A legislação demonstra preocupação com o tema, não exaurindo, todavia, o assunto, uma vez que prescreve que no artigo 9º que o método a sem empregado para a coleta do material deva ser eficaz para coleta suficiente para elaboração do perfil genético deva ser adequado e indolor.
A identificação genética para fins de investigação.
Quando tratamos de investigação criminal estamos nos referindo à atividade oficial do Estado de realizar a persecução criminal, mister que se inicia com a prática do delito, cindindo-se em uma fase pré-processual, a investigação criminal e uma fase processual, a ação penal.
Na investigação criminal se tem por objetivo obter elementos indicativos da materialidade delitiva e indícios suficientes de sua autoria de modo a emprestar subsídios e fornecer elementos que autorizem o titular da ação penal o exercício do direito de ação.
É certo que a investigação criminal deve, enquanto atividade oficial do Estado, se curvar aos princípios constitucionais que regem o Estado Democrático de Direito, não se justificando de forma alguma o afastamento de qualquer direito ou garantia sob o pretexto de atingir o fim almejado pelo Estado na investigação.
Por óbvio, tratando da investigação criminal, onde se parte de um fato para, por meios técnicos e legais obter elementos de convicção que autorizem por um raciocínio lógico-jurídico indicar a possível autoria delitiva, que surjam em determinados delitos indícios de ordem genética que poderiam ser utilizados na investigação. A título exemplificativo, num crime de homicídio onde a vítima tenha entrado em combate corporal com o autor do fato, é possível a coleta de material genético à partir de resíduos de pele eventualmente colhidos sob as unhas da vítima, caso esta tenha chegado a arranhar o autor do delito.
Existindo um banco de dados anterior ao fato é possível por meios periciais realizar o exame pertinente para o confronto do material incriminado com os dados constantes do banco de dados a fim de indicar por meio comparativo o provável autor do delito. Em tal situação hipotética a solução é clara e não apresenta qualquer problema de ordem jurídica num primeiro momento. Vale dizer, equivaleria a comparação entre um vestígio de impressão digital deixado no local do crime com o banco de informações dactiloscópico preexistente.
Contudo, a situação ganha outros contornos se pensarmos na necessidade da identificação genética como meio de produção de prova técnico-pericial partindo da premissa na inexistência do banco de dados ou de material genético pré-existente do investigado.
Nesta hipótese a lei autoriza, mediante ordem judicial, a realização do processo de identificação genética. Ocorre que, diversamente do que se dá com a coleta de material dactiloscópico, todos os métodos de obtenção do material genético demandam além da participação ativa do investigado, a adoção de método invasivo, com maior ou menor gravidade, que poderá resultar na produção de prova desfavorável ao investigado.
Sob tal aspecto, guardadas as devidas proporções, encaramos situação semelhante à obrigatoriedade da prestação de informações quando da realização do interrogatório, o fornecimento de material gráfico para realização de perícia grafotécnica, a submissão de exame de alcoolemia pelo método do “bafômetro”, ou mesmo a participação em reprodução simulada dos fatos, todas hipóteses já afastadas em sua obrigatoriedade em face do investigado, tanto pela jurisprudência quanto pela doutrina, por afrontarem ao princípio da presunção de inocência e a vedação da obrigação do investigado de produzir prova em seu desfavor.
Por lógica, será que obrigar o investigado à ativamente fornecer material genético por qualquer dos meios disponíveis não teria o mesmo efeito de força-lo a uma confissão, imaginando, ainda hipoteticamente, a existência de uma eficaz “máquina da verdade”?. Obrigar o investigado a fornecer material genético para servir de meios na investigação não seria o mesmo que obrigar a autoincriminação?
Diferente dos dados dactiloscópicos, cuja obtenção não implica na adoção de métodos invasivos, além de ser uma obrigação a todos imposta na realização da identidade civil, a coleta de material genético e a formação de um banco de dados com os perfis, além de utilizar de métodos invasivos de coleta, tem a finalidade especifica de formar prova visando a investigação criminal.
Já a outra hipótese de realização da identificação genética causa ainda mais espécie é a decorrente de condenação criminal, da qual trataremos em seguida.
A identificação criminal decorrente de condenação criminal
Conforme prescreve o texto legal, todos os condenados pro crime doloso praticados com violência grave contra a pessoa e aqueles condenados pela prática dos crimes hediondos, relacionados no artigo 1º da lei 8072/1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA.
A primeira questão que surge quando pensamos de forma crítica a respeito de um mandamento normativo em matéria criminal ou processual penal é a necessidade da medida e sua pertinências sob o ponto de vista funcional em face dos preceitos e fundamentos constitucionais.
À guisa de exemplo, podemos mencionar o registro de antecedentes criminais com os fins de caracterização de reincidência. É justificável ao pensarmos num critério de justiça até mesmo para realização do juízo de culpabilidade a manutenção por um tempo razoável de um banco de dados com informações a respeito dos autores de delitos como modo de embasar o agravamento da reprimenda penal daquele que insiste na prática delitiva, pois, certamente, sua culpabilidade deve ser, no mínimo, analisada de forma diferenciada daquele que comete um delito pela primeira vez.
É funcionalmente pertinente sob o ponto de vista, até mesmo, da individualização da pena. Mesmo porque, estende-se a todos os autores de todos os delitos, e não a esse ou aquele, e possui reflexos do ponto de vista penal e processual[4].
Busquemos, pois, a funcionalidade, ou a justificativa com base constitucional na extensão da excepcionalidade prevista no texto constitucional. Ora, a alteração legislativa, na contramão do dispositivo constitucional estabelece que todos os condenados por crimes dolosos graves contra a pessoa e os crimes hediondos deverão obrigatoriamente ser submetidos à identificação genética, passando seus dados a compor um banco de dados de identificação genética.
Pensemos, pois, na funcionalidade de um banco de dados criminal de tal natureza. O indivíduo autor de um homicídio múltiplo seria submetido a identificação genética. Qual a funcionalidade e a probabilidade dessa informação genética servir de base numa futura investigação se o modo de atuação do criminoso não deixar elementos materiais que permitissem nem no qual ele foi condenado uma identificação genética? E mais: por que motivo um crime contra a pessoa poderia resultar na excepcionalidade da identificação genética decorrente da condenação, ou a conduta de falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais possa receber esse tratamento e um crime de roubo não mereceria tal tratamento.
Estamos diante não de uma medida de identificação criminal funcional, que possa se prestar de forma clara a investigação criminal ou a função de exercício racional do Direito Penal, mas tão somente de uma medida de caráter executório, um efeito acessório da condenação penal, arbitrariamente atribuída a determinados delitos sem que isso possa representar qualquer função dentro do ordenamento, senão a criação de um banco de dados genéticos de autores de delitos, não se tratando de uma medida visando incidir sobre fato criminoso mas sobre os autores de determinados delitos.
A inovação legislativa, em dissonância ao preceito constitucional, que estabelece de forma ampla a excepcionalidade da identificação criminal, que em sua forma ordinária se dá pelo processo dactiloscópico, adota a possibilidade de mediante autorização judicial, quando demonstrada imprescindível na investigação, a possibilidade da identificação genética, acaba por generalizar o processo como efeito secundário da condenação apenas em alguns delitos, mas sem que fique estabelecida a funcionalidade dessa identificação decorrente da condenação penal transitada em julgado.
Mais espécie causa ainda de uma detida leitura da lei, uma vez que a identificação genética decorrente da investigação, tratada na lei de identificação criminal permanecerá armazena em banco de dados produzido com base em atividades investigativas (Lei 12037/09, Art. 7o – B), sendo que esses perfis serão excluídos com a prescrição do delito investigado do qual a identificação foi decorrente[5].
Todavia, estabelece a identificação genética não com base no fato, mas com base na condenação criminal, em banco de dados diverso daquele primeiro, acessível mediante requisição ao Poder Judiciário pelos órgãos incumbidos da atividade de Polícia Judiciária (Polícia Federal e Polícias Civis), sem que haja possibilidade de exclusão desses dados de perfil genético, estabelecendo ai uma excepcionalidade à própria exceção da identificação criminal, inserida na Lei de Execução Penal.
Referência Bibliográfica
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BRASIL. Código Penal. São Paulo: Saraiva, 2012.
BRASIL. Código de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2012.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. Questões fundamentais. A doutrina geral do crime. 1a edição brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa – Básico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988
GOMES, Luis Flávio; MOLINA, António Garcia-Páblos de. Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
Grande Dicionário Houaiss. Versão online. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/gramatica.jhtm. Acessado em: o8 de julho de 2012
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal, 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14a edição. São Paulo: Saraiva, 2010;
MEDRADO, Vitor Amaral. O conceito de autonomia da vontade na teoria moral e jurídica de Kant. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id= 11391 . Acesso em 17 de julho de 2012
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado: referencias doutrinarias, indicações legais, resenha jurisprudencial: atualizado até julho de 1995. 5a edição. São Paulo: Atlas, 1997.
ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2a edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007..
Sobre identificação genética e métodos de estabelecimento de perfil genético:


[1] PORTUGAL, Ministério da Justiça. Disponível em: http://www.dgaj.mj.pt/sections/files/identificacao-criminal/identificacao-criminal//sections/files/identificacao-criminal/identificacao-criminal/1-registo-criminal/downloadFile/file/1-registo%20criminal%20pessoas%20singulares.pdf?nocache= 1335176741.32. Acesso em 24 de julho de 2012.
[2] Idem
[3] Aqui a expressão “material incriminado” refere-se ao material que se pretende expor a comparação com os dados já constantes de um banco de dados pré-existente.
[4] CP. Art. 61, I; Lei. 9099/96, Art. 76, I, II;
[5] Na verdade, aqui foi a leitura que se entendeu possível do dispositivo legal. Afinal, considerando a lei de forma sistemática, é estabelecido que excepcionalmente o juízo pode, no decorrer da investigação autorizar a identificação genética do investigado, que passará a compor um banco de dados de perfis genéticos de investigados. Noutro ponto, determina que tais perfis sejam excluídos com o termo do prazo decadencial in abstrato do delito investigado. Ora, o termo inicial desse prazo fica indefinido pela lei. Seria a data do fato investigado? A data da investigação criminal? Faz parecer que o mais razoável é se admitir que o prazo a que a lei se refere deva seguir a prescrição do delito à partir da data do fato. Contudo, qual a justificativa da manutenção do perfil genético no caso da constatação de incompatibilidade entre o identificado e o objeto da identificação, ou ainda, da manutenção do perfil no caso de uma sentença absolutória, já que a lei não aborda tal possibilidade.
 
site Terra

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