quarta-feira, 2 de junho de 2010

Poder Público deve custear medicamentos e tratamentos de alto custo a portadores de doenças graves, decide o Plenário do STF

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/STA175.pdf  (leia voto na íntegra)

O Plenário do Supremo Tribunal Federal indeferiu nove recursos interpostos pelo Poder Público contra decisões judiciais que determinaram ao Sistema Único de Saúde (SUS) o fornecimento de remédios de alto custo ou tratamentos não oferecidos pelo sistema a pacientes de doenças graves que recorreram à Justiça. Com esse resultado, essas pessoas ganharam o direito de receber os medicamentos ou tratamentos pedidos pela via judicial.
O ministro Gilmar Mendes foi o relator das Suspensões de Tutela (STA) 175, 211 e 278; das Suspensões de Segurança 3724, 2944, 2361, 3345 e 3355; e da Suspensão de Liminar (SL) 47. No seu voto , ele disse que se tem constatado a crescente controvérsia jurídica sobre a possibilidade de decisões judiciais determinarem ao Poder Público o fornecimento de medicamentos e tratamentos – decisões nas quais se discute, inclusive, os critérios para o fornecimento.
Gilmar Mendes afirmou que no âmbito do Supremo é recorrente a tentativa do Poder Público de suspender decisões judiciais nesse sentido. “Na Presidência do Tribunal existem diversos pedidos de suspensão de segurança, de suspensão de tutela antecipada e de suspensão de liminar com vistas a suspender a execução de medidas cautelares que condenam a Fazenda Pública ao fornecimento das mais variadas prestações de saúde – como fornecimento de medicamentos, suplementos alimentares, órteses e próteses, criação de vagas de UTIs e de leitos hospitalares, contratação de servidores da Saúde, realização de cirurgias e exames, custeio de tratamento fora do domicílio e inclusive no exterior, entre outros”, exemplificou.
O ministro contou que ouviu diversos segmentos ligados ao tema na audiência pública sobre a saúde, ocorrida em abril de 2009. “Após ouvir os depoimentos prestados por representantes dos diversos setores envolvidos, ficou constatada a necessidade de se redimensionar a questão da judicialização do direito à saúde no Brasil, isso porque na maioria dos casos a intervenção judicial não ocorre em razão de uma omissão absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à produção do direito à saúde, mas tendo em vista uma necessária determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas”, sublinhou.
Cautela
Apesar de julgar favoravelmente aos pacientes que precisam de medicamentos e tratamentos de alto custo, o ministro Gilmar Mendes foi cauteloso para que cada caso seja avaliado sob critérios de necessidade. Ele disse que obrigar a rede pública a financiar toda e qualquer ação e prestação de saúde existente geraria grave lesão à ordem administrativa e levaria ao comprometimento do SUS, de modo a prejudicar ainda mais o atendimento médico da parcela da população mais necessitada.
Mendes diferenciou, por exemplo, tratamentos puramente experimentais daqueles já reconhecidos, mas não testados pelo sistema de saúde brasileiro. No caso daqueles, ele foi enfático em dizer que o Estado não pode ser condenado a fornecê-los.
“Quanto aos novos tratamentos ainda não incorporados pelo SUS, é preciso que se tenha cuidado redobrado na apreciação da matéria. Como frisado pelos especialistas ouvidos na audiência pública, o conhecimento médico não é estanque, sua evolução é muito rápida e dificilmente acompanhável pela burocracia administrativa”, citou, lembrando que a aprovação de novas indicações terapêuticas pode ser muito lenta e, como resultado disso, pacientes do SUS podem ser excluídos de tratamentos já oferecidos há tempos pela iniciativa privada.
“Há necessidade de revisão periódica dos protocolos existentes e de elaboração de novos protocolos. Assim não se pode afirmar que os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas dos SUS são inquestionáveis, o que permite sua contestação judicial”, completou.
Outros votos
O ministro foi acompanhado, em seu voto, por todos os demais presentes à sessão. O ministro Ricardo Lewandowski entendeu que os agravantes (União e estados) não demonstraram a potencialidade danosa à saúde, à economia e à ordem pública do fornecimento dos medicamentos ou tratamentos referentes às nove ações.
Já o ministro Celso de Mello julgou que a Justiça precisa agir quando o poder público deixa de formular políticas públicas ou deixa de adimpli-las, especialmente quando emanam da Constituição. “O direito à saúde representa um pressuposto de quase todos os demais direitos, e é essencial que se preserve esse estado de bem-estar físico e psíquico em favor da população, que é titular desse direito público subjetivo de estatura constitucional, que é o direito à saúde e à prestação de serviços de saúde”, completou.

retirado do site do STF

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Cientistas montam célula controlada por genoma fabricado em laboratório

Estudo abriria caminho para produção de bactérias artificiais sob medida.
Grupo é liderado pelo polêmico J. Craig Venter, o ‘pai do genoma’.


Etapas do experimento foram detalhadas em artigo publicado pela 'Science'Cientistas do Instituto J. Craig Venter anunciaram nesta quinta-feira (20) o desenvolvimento da primeira célula controlada por um genoma sintético. Agora, esperam usar o método para compreender melhor o mecanismo básico que guia todas as formas de vida e para desenvolver bactérias sob medida que, por exemplo, produzam biocombustível ou ajudem a limpar vazamentos de petróleo. O instituto entrou com pedidos de patente para salvaguardar direitos de propriedade intelectual sobre algumas das técnicas desenvolvidas.

Entenda o que é genoma e como ele guarda 'receita' para construir um ser vivo

O grupo já havia sintetizado quimicamente um genoma de bactéria, e também já havia transplantado o genoma de uma bactéria para outra. Agora, o cientista Daniel Gibson e seus colegas (todos empregados no instituto criado pelo empresário-biólogo Craig Venter) juntaram os dois métodos para criar o que batizaram de “célula sintética” – ainda que apenas o genoma da célula seja sintético. "Nós chamamos de sintético porque a célula é totalmente derivada de um cromossomo fabricado em um sintetizador químico, com base em informações em um computador”, explicou Venter.

É uma ferramenta muito poderosa para tentar projetar o que desejamos que a biologia faça. Temos uma ampla gama de aplicações em mente"
Craig Venter
O genoma sintético é uma cópia de genoma da bactéria Mycoplasma mycoides. Só que à cópia foram adicionadas sequências de DNA montadas em laboratório que serviram como marcas d’água para distingui-la de um genoma natural. O resultado, transplantado na bactéria Mycoplasma capricolum, deu “reboot” nas células receptoras. Na hora do transplante, 14 genes foram deletados ou rompidos, mas mesmo assim as M. mycoides se comportaram como M. mycoides normais, e só produziram proteínas próprias de M. mycoides.

“Se os métodos que descrevemos no artigo puderem ser generalizados, projeto, síntese, montagem e transplante de cromossomos sintéticos não serão mais uma barreira para o progresso da biologia sintética”, escrevem os pesquisadores. “É uma ferramenta muito poderosa para tentar projetar o que desejamos que a biologia faça. Temos uma ampla gama de aplicações em mente”, avisa Venter.

Uma das propostas de Venter (que ele vem propagandeando não é de hoje) é fazer sua "vida 2.0" produzir etanol (álcool) ou hidrogênio, como forma barata de obtenção desses combustíveis limpos. O cientista-empresário já foi acusado de estar criando a "Micróbiosoft" (em referência à Microsoft de Bill Gates), impedindo o uso livre da chamada biologia sintética e mesmo monopolizando a tecnologia.

Outros cientistas defendem a chamada "biologia sintética open-source" (de fonte aberta), na qual as informações para a construção de novos organismos ficariam disponíveis para uso gratuito de toda a comunidade científica.

Biólogo brasileiro comenta criação
de célula com genoma artificial

Eficiência do processo ainda é bem baixa e o custo é bem alto.
Mas potencial da tecnologia é enorme, assim como seus riscos.

Havia dito que viria em 2009, mas errei por pouco. Mas mesmo com alguns meses de atraso, o genoma sintético, criado pelo polêmico Craig Venter, ganhou as manchetes mundiais nesta quinta-feira (20).

O trabalho, publicado na concorrida revista científica "Science", traz uma narrativa interessante dos desafios enfrentados pelo grupo de Venter para gerar vida artificial. O manuscrito - cheio de nuances, reviravoltas, dilemas éticos, frustrações e um final feliz - mais parece um romance.

A saga de Venter começou com a síntese química do DNA de um micro-organismo, no caso um tipo de micoplasma (genitalium G37), com 582.970 pares de base, contendo 482 genes, um dos menores genomas até agora. A sequência do micoplasma já havia sido decifrada anteriormente.

Análises microscópicas e moleculares mostraram pouca diferença entre os micro-organismos naturais e os artificiais. A julgar pelas imagens, pode-se dizer que Venter conseguiu
Por meio de reações químicas, o grupo refez a sequência das bases nitrogenadas do DNA, uma por uma, até atingir a cópia perfeita do genoma biológico encontrado na natureza. O obstáculo tecnológico da síntese de grandes sequências de DNA havia sido relatado anteriormente, num avanço tecnológico descrito em 2007. A montagem do genoma inteiro foi feita por partes, aproveitando-se do maquinário de recombinação das leveduras. Tudo foi sequenciado novamente, para ter certeza de que o genoma estava livre de erros. Também foram adicionadas “marcas d’água” no genoma sintético, diferenciando o micoplasma sintético do natural. Também foram adicionados genes que conferem resistência a certos antibióticos, para seleção em laboratório.

Com receio de armas biológicas,a CIA já está acompanhando de perto esses avanços, e tem uma lista dos centros capazes de sequenciar e montar pequenos genomas.
O outro desafio foi o de transplantar esse genoma para dentro de um citoplasma de uma célula receptiva. O genoma dos micro-organismos possuem "marcas" químicas no DNA, conhecidas como metilação. A célula lê o padrão de metilação do genoma e não o destrói, pois reconhece como pertencente a si mesma. Quando a bactéria é invadida por um vírus ou outro agente infeccioso, ela não reconhece o mesmo padrão e degrada o DNA exógeno, evitando a colonização do DNA pelo invasor.

O grupo de Venter usou duas estratégias para garantir que o genoma sintético não fosse destruído pelo mecanismo de defesa do micoplasma receptor. Primeiro, eles manipularam a bactéria hospedeira, removendo os genes responsáveis pela "restrição" de DNA exógeno (genes que lêem o perfil de metilação do DNA). Além disso, o grupo recriou o padrão de metilação do genoma sintético in vitro. Com essas duas estratégias, eles conseguiram manter os dois genomas dentro da mesma célula, mesmo que temporariamente. A pressão seletiva com antibióticos garantiu a sobrevivência dos micoplasmas que só tivessem o genoma sintético resistente.

O truque não funcionou de primeira. Descobriu-se uma mutação no sequência sintética, num gene essencial. Corrigiu-se a mutação e tentou-se de novo. Dessa vez pegou. Ao re-sequenciar novamente o genoma, descobriu-se que alguns genes não estavam funcionais por causa de deleções que aconteceram pelo caminho. Tudo bem, não eram genes muito importantes e seguiu-se assim mesmo.

Assim, o genoma sintético passou a codificar utilizando-se o maquinário protéico que já estava presente no citoplasma, produzindo todas as proteínas necessárias para a replicação da célula. Ao longo de diversas passagens, as proteínas celulares foram sendo substituídas por proteínas codificadas pelo genoma sintético. Estimou-se que em 30 gerações, os micoplasmas das culturas eram completamente oriundos de um genoma artificial. Análises microscópicas e moleculares mostraram pouca diferença entre os micro-organismos naturais e os artificiais. A julgar pelas imagens, pode-se dizer que Venter conseguiu.

A eficiência do processo é bem baixa e o custo bem alto. Ainda não é uma tecnologia que qualquer laboratório de biologia molecular será capaz de fazer nos próximos anos. Mesmo assim, o potencial da tecnologia é enorme. Pode-se, por exemplo, criar versões seguras de bactérias que “digerem” vazamentos de óleo, ou que produzam bicombustível de forma limpa. Poderá ser usada tanto para o bem (aplicações na área de saúde) quanto para o mal (armas biológicas). Talvez por isso mesmo a CIA já esteja acompanhando de perto esses avanços e tem uma lista dos centros capazes de sequenciar e montar pequenos genomas.

Interessante notar que o trabalho de Venter cutuca valores morais e éticos da sociedade atual. Até que ponto os cientistas teriam liberdade para criar novos seres recombinantes? Quais seriam as regulações e restrições para esse tipo de pesquisa? Mais importante, na minha opinião, são as possibilidades de se criar um genoma minimalista. Replicantes artificiais não são mais ficção científica e podem fornecer importantes detalhes sobre a origem da vida ou como manipular a evolução das espécies. Fascinante e adorável perspectiva.

* Alysson Muotri é colunista do G1 e pesquisador na Universidade da Califórnia , campus de San Diego

Fonte:http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2010/05/cientistas-montam-celula-controlada-por-genoma-fabricado-em-laboratorio.html

terça-feira, 27 de abril de 2010

Estado do Rio dá a religiosos direito de recusar transfusão

Procuradoria endossa testemunhas de Jeová, que negam prática com base em dogmas

Determinação contraria parecer do Conselho Federal de Medicina, que deve ter sua constitucionalidade discutida pelo STF

MATHEUS LEITÃO
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O Estado do Rio vai reconhecer o direito dos fiéis da igreja Testemunhas de Jeová de recusar transfusão de sangue por motivos religiosos.
A decisão se refere ao caso de uma praticante de 21 anos que foi internada com doença pulmonar grave e se negou a receber o tratamento -o que gerou uma consulta do hospital envolvido à Procuradoria Geral do Estado. O caso ficou em estudo por quatro meses.
Nesta semana, a procuradora-geral, Lucia Lea Guimarães Tavares, responderá que trata-se de "exercício de liberdade religiosa". Segundo o parecer ao qual a Folha teve acesso, esse é "um direito fundamental, emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais".
"A minha convicção é que a pessoa tem direito a escolher, desde que seja maior e esteja consciente. Não é um tema muito simples: manter a vida de um paciente, mas desrespeitando aquilo em que ele mais acredita", disse a procuradora. A Folhaapurou que o governador Sérgio Cabral acatará o parecer, transformando-o numa norma estadual no Rio, com poder de decreto.
A determinação contraria parecer do Conselho Federal de Medicina, que diz: "Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue independente do consentimento do paciente ou de seus responsáveis".
A procuradora do Rio vai entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF (Supremo Tribunal Federal) para discutir a constitucionalidade do parecer dos médicos.
Se o precedente aberto no Rio for acatado pelo STF, os cristãos da Testemunhas de Jeová terão amparo legal para a manutenção do que consideram seus direitos.

Divergências
O assunto é tão polêmico que houve, inicialmente, divergência dentro da Procuradoria do Estado do Rio. Diante disso, a procuradora-geral, Lucia Lea, pediu um estudo sobre o tema ao constitucionalista Luis Roberto Barroso.
"A liberdade religiosa é um direito fundamental. Pode o Estado proteger um indivíduo em face de si próprio, para impedir que o exercício de liberdade religiosa lhe cause dano irreversível ou fatal? A indagação não comporta resposta juridicamente simples nem moralmente barata", diz Barroso no estudo.
No fim das 42 páginas, o texto conclui pelo reconhecimento do direito das testemunhas de Jeová, com a seguinte cautela: "A gravidade da recusa de tratamento, sobretudo quando presente o risco de morte ou de grave lesão, exige que o consentimento seja genuíno, o que significa dizer: válido, inequívoco, livre, informado".

Macacos podem ter consciência da morte

Observações em cativeiro mostram cuidados com o moribundo, "velório" e aparente período de luto entre chimpanzés

Para cientistas, capacidade de empatia da espécie está por trás do fenômeno; ainda é preciso estudar melhor tais casos, diz pesquisadora

repórter REINALDO JOSÉ LOPES


Rosie passou a noite em claro, sem arredar pé de onde estava o cadáver da mãe. Seus amigos Chippy e Blossom dormiram um sono inquieto naquela madrugada. Ficaram silenciosos na semana seguinte, comendo pouco, sem tocar nos pertences da morta. Para os cientistas que registraram tais cenas, são indícios de que os chimpanzés, tal como os humanos, entendem o que é morrer.
Até agora, a espécie humana parecia ser a única dotada do "privilégio" dúbio da consciência sobre a morte. James Anderson e seus colegas da Universidade de Stirling (Reino Unido) lançam dúvida sobre essa ideia ao relatar detalhadamente suas observações sobre a morte de Pansy, fêmea de mais de 50 anos, na edição de hoje da revista científica "Current Biology". Para eles, a consciência que os parentes mais próximos do homem têm de seu fim foi "subestimada".
Pansy vivia com sua filha Rosie, outra fêmea idosa, Blossom, e o filho desta última, Chippy, num parque zoológico. Foi tratada pelos veterinários do local por vários dias, até que o tratador, ao perceber que ela estava respirando com dificuldade, decidiu permitir que ela morresse "em família", sem intervenção humana. Os pesquisadores contavam com um sistema de câmeras, que permitiu acompanhar cada movimento do grupo durante as últimas horas da vida de Pansy, bem como nas semanas seguintes (veja detalhes no quadro acima).
"O interessante é que eles tinham dados sobre como era o comportamento normal dos animais antes da morte, e isso permitiu fazer a comparação", aponta Patrícia Izar, especialista em comportamento de primatas do Instituto de Psicologia da USP, que comentou o estudo à pedido da Folha.
Os cientistas britânicos comparam a longa vigília de Rosie ao lado do corpo com um velório; consideram que o ataque de Chippy ao corpo da morta pode ter sido motivado pela raiva ligada à perda; e traçam paralelos entre a falta de apetite e quietude do trio sobrevivente e o luto humano. Os chimpanzés chegaram mesmo a se recusar a dormir onde Pansy havia expirado.
"Não questiono a alteração de comportamento em relação à morte. O sono alterado é natural, porque eles passaram por uma emoção profunda. Mas é ousado afirmar que isso é luto pela morte", afirma Izar. Um teste mais preciso da ideia, diz ela, seria ver se a reação diante da simples remoção de um membro do grupo, sem que os demais o vissem partir, seria parecida. "De qualquer modo, o conjunto das observações mostra o que já vemos em outros comportamentos: que pode, sim, haver uma continuidade entre humanos e chimpanzés."

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Judicialização da saúde coloca ao STJ o desafio de ponderar demandas individuais e coletivas

Não é de hoje que a Justiça se tornou refúgio dos que necessitam de medicamentos ou de algum procedimento não oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A premissa inaugurada na Constituição de 1988 de que a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado arrombou as portas dos tribunais para a chamada judicialização da saúde.

No Superior Tribunal de Justiça (STJ), a discussão sobre o tema reflete a dicotomia que cerca a questão: privilegiar o individual ou o coletivo? De um lado, a participação do Judiciário significa a fiscalização de eventuais violações por parte do Estado na atenção à saúde. Mas, de outro, o excesso de ordens judiciais pode inviabilizar a universalidade da saúde, um dos fundamentos do SUS.

Os órgãos da Seção de Direito Público (Primeira Seção – Primeira e Segunda Turmas) são encarregados de analisar as ações e os recursos que chegam ao Tribunal a respeito do tema. Para o presidente da Primeira Seção, ministro Teori Albino Zavascki, não existe um direito subjetivo constitucional de acesso universal, gratuito, incondicional e a qualquer custo a todo e qualquer meio de proteção à saúde.

O ministro Teori Zavascki esclarece que o direito à saúde não deve ser entendido “como direito a estar sempre saudável”, mas, sim, como o direito “a um sistema de proteção à saúde que dá oportunidades iguais para as pessoas alcançarem os mais altos níveis de saúde possíveis”.

No entanto, o ministro pondera que isso não significa que a garantia constitucional não tenha eficácia. “Há certos deveres estatais básicos que devem ser cumpridos”, explica. “Assim, a atuação judicial ganha espaço quando inexistem políticas públicas ou quando elas são insuficientes para atender minimamente”, conclui o ministro.

O senador Tião Viana (PT/AC) milita contra a judicialização da saúde. Segundo dados divulgados pelo senador, haveria no Brasil um movimento financeiro da ordem de R$ 680 milhões em compras de medicamentos decididas por ordens judiciais. Ele chama de “temerosa” a tendência de se substituir um pensamento técnico e político de gestão da saúde pela decisão de um juiz.

Nova droga

Em julgamento de um recurso na Primeira Turma (RMS 28.962), o ministro Benedito Gonçalves advertiu que as ações ajuizadas contra os entes públicos, para obrigá-los indiscriminadamente a fornecer medicamento de alto custo, devem ser analisadas com muita prudência.

Naquele caso, um paciente de Minas Gerais havia ingressado na Justiça para garantir o recebimento de uma droga nova para o tratamento de psoríase, prescrita por um médico conveniado ao SUS. O pedido foi negado porque se entendeu não haver direito líquido e certo do paciente, já que o SUS oferecia outros medicamentos para o tratamento, e, ainda, não haveria comprovação de melhores resultados com o novo remédio.

O ministro Benedito Gonçalves observou que, ao ingressar na esfera de alçada da Administração Pública, o Judiciário cria problemas de toda a ordem, como o desequilíbrio de contas públicas, o comprometimento de serviços públicos, entre outros.
Para ele a ideia de que o poder público tem condição de satisfazer todas as necessidades da coletividade ilimitadamente, seja na saúde ou em qualquer outro segmento, é utópica. “O aparelhamento do Estado, ainda que satisfatório aos anseios da coletividade, não será capaz de suprir as infindáveis necessidades de todos os cidadãos”, avaliou.

O ministro entende que as demandas ao Estado devem ser logicamente razoáveis. “Acima de tudo, é necessário que existam condições financeiras para o cumprimento de obrigação. De nada adianta uma ordem judicial que não pode ser cumprida pela Administração por falta de recursos”, resumiu.

Medicamentos

Mas, a depender do caso, o entendimento pode pender para garantir tratamento ao indivíduo. O STJ tem reconhecido aos portadores de doenças graves, sem disponibilidade financeira para custear o seu tratamento, o direito de receber gratuitamente do Estado os medicamentos de comprovada necessidade. Foi o que ocorreu na análise de um recurso especial na Primeira Turma (Resp 1.028.835).

O relator, ministro Luiz Fux, entende que, sendo comprovado que o indivíduo sofre de determinada doença, necessitando de determinado medicamento para tratá-la, o remédio deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna. No entanto, é preciso investigar a condição do doente.

Na análise de um recurso especial (Resp 944.105), o ministro Fux constatou que o paciente, que reivindicava o fornecimento de medicamentos para asma brônquica severa, não comprovou impossibilidade de arcar com o custo. No caso, apesar de alegar uma renda no valor de R$ 350, ele tinha conta de telefone de mais de R$ 100.

Em outro caso analisado pela Segunda Turma, os ministros definiram que o direito à saúde não alcança a possibilidade de o paciente escolher o medicamento que mais se encaixe no seu tratamento. A relatora foi a ministra Eliana Calmon (RMS 28.338). Ela observou que, na hipótese, o SUS oferecia uma segunda opção de medicamento substitutivo, mas que, mesmo assim, o paciente pleiteou o fornecimento de medicamento de que o SUS não dispunha, sem provar que aquele não era adequado para seu tratamento.

Bloqueio

Ao analisar um recurso especial do Estado do Rio Grande do Sul (REsp 901.289), a Primeira Turma entendeu ser legítima a atuação do Ministério Público na defesa do direito à saúde de um adolescente. A ação buscava o pagamento de despesas referentes a hospedagem e alimentação de menor e seu acompanhante, por ocasião de transplante medular ósseo e respectivo tratamento médico.

O relator, ministro Teori Zavascki, considerou legítimo o bloqueio de verbas da Fazenda Pública como meio para efetivação do custeio do tratamento. O ministro explicou que, em situações de conflito entre o direito fundamental à saúde e o da impenhorabilidade dos recursos da Fazenda, prevalece o primeiro.

“Sendo urgente e impostergável a realização de transplante medular ósseo, sob pena de grave comprometimento da saúde da demandante, não teria sentido algum submetê-la ao regime jurídico comum, naturalmente lento, da execução por quantia certa contra a Fazenda Pública”, disse.

AIDS

A judicialização da saúde começou a ocorrer com a busca pelos medicamentos antirretrovirais, para combate ao avanço do vírus HIV. Ela se popularizou por meio de liminares que obrigavam o Estado a fornecer gratuitamente remédios de alto custo que não constassem da lista do SUS. A lentidão na inclusão de certos avanços médicos pelos SUS é criticada pelas entidades de defesa dos pacientes.

Em 1996, uma lei tornou obrigatória a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do HIV e doentes de AIDS. A Lei 9313/1996 previu, inclusive, que o Ministério da Saúde revisasse e republicasse anualmente a padronização das terapias, para adequar o tratamento oferecido pelo SUS ao conhecimento científico atualizado e à disponibilidade de novos medicamentos no mercado.

Mas os casos continuaram a chegar ao STJ. A Primeira Turma analisou, em 2005, um recurso (Resp 684.646) em que o paciente portador de HIV pedia a condenação do Estado do Rio Grande do Sul e do Município de Porto Alegre ao fornecimento gratuito de medicamento não registrado no Brasil, mas que constava de receituário médico, necessário ao tratamento.

O relator, ministro Fux, constatou que se discutia a importação de medicamento em fase experimental, não registrado no Ministério da Saúde. No entanto, o remédio havia sido aprovado recentemente pelo órgão que controla os medicamentos nos Estados Unidos, assim como pela Agência Europeia de Avaliação de Medicamentos.

Para o ministro, comprovado o acometimento do indivíduo por determinada moléstia, necessitando de certo medicamento para debelá-la, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna – e que tem como direito-meio o direito à saúde.

retirado do site do STJ