quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O significado da bioética e biodireito

Autora: Maria Aglaé Tedesco Vilardo - fev.2005 

                        O prêmio Nobel de Química de 1966, Robert Curl, afirmou que se as ciências dominantes do Século XX foram a química e física, o terceiro milênio ficaria conhecido como a “era da biologia”. O progresso das pesquisas biológicas é célere e um ano representa décadas de avanço. Dos avanços científicos derivam diversos questionamentos acerca das conseqüências e das limitações a serem impostas aos pesquisadores e à utilização do resultado das pesquisas.
Norberto Bobbio ao tratar do tema direitos do homem dissertou que aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica com manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo, se apresentam novas exigências que são chamadas de direitos de quarta geração. Os direitos não nascem todos de uma vez, nascem quando devem ou podem nascer, quando ocorre o aumento do poder do homem sobre o homem, ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências. O direito aparece para impedir os malefícios ou obter os benefícios oriundos dos atos dos homens.
Os direitos de primeira geração são correlatos aos direitos fundamentais dos homens; os de segunda geração  abrangem os direitos econômicos e sociais; os de terceira geração dizem respeito a um ambiente saudável em todos os sentidos.  Cada um surgindo de acordo com as condições sociais de sua época e desenvolvimento técnico-científico.
Todo  desenvolvimento implica em um custo. Há que se fixar limites para que este custo não seja alto e irreversível. Os valores éticos e morais, que são moldados social e culturalmente, não são definitivos, absolutos, em razão da dinâmica da natureza, portanto os parâmetros são modificáveis.
Segundo Norberto Bobbio, identificar os direitos do ser humano não é tarefa das mais difíceis, mas torná-los exeqüíveis demanda grande empreendimento. O problema fundamental em relação aos direitos dos homens, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político. Destaca a necessidade de buscar-se  os “vários fundamentos possíveis”, em cada caso concreto, juntamente com o estudo das condições, dos meios e das situações nas quais o direito possa ser realizado, através de estudos dos problemas históricos, sociais, econômicos, psicológicos, além do filosófico. Bobbio afirmou que não se pode propor a busca do fundamento absoluto dos direitos do homem, pois, inclusive, historicamente obstacularizaram a introdução de novos direitos. Todavia, acreditou na viabilidade da humanidade partilhar de alguns valores comuns, considerando tal a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem, valores subjetivamente acolhidos pela humanidade.
Diante de novas e instigantes descobertas científicas apresentou-se um novo estudo que foi denominado de bioética. Criado pelo oncologista americano Van Rensselaer Potter, o termo foi conceituado como “o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais” pela Encyclopaedia of Bioethics, em 1978.
Conforme salientado pela prof ª HELOISA HELENA BARBOZA em seu artigo “Princípios do Biodireito” o grande mérito da bioética foi sistematizar o tratamento de questões diversas, que devem guardar entre si, necessariamente princípios e fins comuns. Destacou que em colóquio da UNESCO, em 1975, concluiu-se que as ciências sociais não progrediram no mesmo ritmo das ciências biológicas, daí resultam as ameaças sobre a vida e a espécie humana, onde a evolução científica e tecnológica criou armas para a destruição completa da humanidade, sem criar dispositivos institucionais limitadores desta força destruidora.
Apresentaram-se diversos modelos na busca de um paradigma bioético. O clássico modelo principialista é muito difundido
Foram estabelecidos princípios de bioética divulgados pelo denominado Relatório Belmont, em 1978: princípios da autonomia; da beneficência e da justiça. Seguem seus conceitos:
1.     princípio da beneficência =  os tratamentos realizados devem atender aos interesses do paciente ou pessoa submetida à pesquisa evitando-se danos ou tratamentos não reconhecidamente úteis e necessários
2.     princípio da autonomia ou do respeito às pessoas = respeito à vontade e à intimidade de cada pessoa com base nas suas crenças e valores morais, regendo sua própria vida, dentro de limites;
3.     princípio da justiça = exige eqüidade na distribuição de bens e benefícios, no exercício da medicina e nos resultados das pesquisas científicas.

                        Ressalta a prof ª HELOISA HELENA BARBOZA que, a esses princípios, foi acrescentado o princípio da não-maleficência, por Tom Beauchamp e James Chidress, pelo qual não se deve causar mal a outrem, mas não se diferencia significativamente do princípio da beneficência que envolve ações do tipo positivo. Os princípios não constituem regras hierarquizadas, mas há consenso sobre os mesmos.
                       A prof ª RENATA BRAGA DA SILVA PEREIRA ressaltou, em seu artigo DNA: Análise Biojurídica da Identidade Humana, que outros princípios foram consagrados em razão das dúvidas suscitadas quanto à suficiência destes princípios. Destacou os que seguem: as pessoas não são meios mas, sim fins; não enganar; não inflingir danos ou riscos de danos; promover o bem-estar e prevenir o dano; tratar as pessoas imparcialmente e de maneira igual; respeitar a auto-determinação.
                      Com a dinâmica realidade e a carência de regulamentação legal, devem ser criados parâmetros para a vinculação dessas novas relações jurídicas. Princípios básicos devem ser trazidos para iluminar esses direitos. Surge, assim o biodireito  para regular a conduta humana em relação aos avanços científicos e tecnológicos.
                     A prof ª HELOISA refere-se a RAMÓN MARTÍN MATEO que afirma não bastar a invocação da consciência pessoal, mas há que se estabelecer valores relevantes e merecedores de proteção, superando as convicções pessoais.
Não se pode esquecer que a ciência, a par da criação de novas leis, continuará evoluindo, portanto a nova legislação deverá ter a flexibilização suficiente para acompanhar a evolução provável.
Toda legislação vem dotada de valores e estes  são oriundos do contexto social e cultural em que as pessoas vivem.
                       Nossa legislação codificada vem dotada de notória conotação patrimonialista em suas relações jurídicas, porém com a evolução das relações e na constante tentativa do direito em alcançar a dinâmica da vida, tal conotação cedeu espaço à proteção imediata da pessoa humana.
                      Sem dúvida, ao jurista cabe a interpretação adequada das normas já existentes no tocante aos fatos novos surgidos. O legislador não pode ditar normas específicas e adaptáveis a cada caso como mero instrumento da evolução científica; os valores de uma sociedade estão contidos na norma apresentada.
Como salientado pela prof ª HELOISA a questão de fundo do Biodireito assenta, necessariamente, nos valores eleitos pelo sistema jurídico vigente, nos princípios gerais que traçam sua base estrutural”.
                       O art.4 º da Lei de Introdução ao Código civil está assim disposto:
“quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.
                       Não se confundem com os princípios constitucionais.
                       Segundo o Dicionário Jurídico – academia brasileira de letras jurídicas, 2ª ed.,  forense os princípios gerais do direito são:
“Grandes preceitos abstratos que são chamados a integrar o direito positivo em caso de lacuna, ou seja, quando para o caso concreto não há reg   ra ou norma estabelecida. Locução criada no meio do séc.XIX pelos juspositivistas, em proscrição do direito natural, com o qual guarda perfeita sinonímia. LICC ar. 4 CPC, 126, CLT , 8 CTN 108, 109. Obs: são numerosos os princípios gerais de direito, podendo-se catalogar, em critério meramente elucidativo: liberdade, justiça, segurança, isonomia, solidariedade humana, responsabilidade dos governantes e, muitos já passaram a constituir direito positivo”.
                        Conforme SAN TIAGO DANTAS afirmou, os princípios gerais de Direito não constituem uma fonte de direito independente da lei ou do costume. Ressaltou ser a própria norma, costumeira ou legal, aplicada pelo juiz detectando os princípios nela inserto. Então haveria esta categoria, bem como uma categoria de princípios constitucionais refletindo a ideologia constitucional.
                        Representam fonte original, mas também subsidiária.
                        PAULO BONAVIDES destaca três fases dos princípios gerais do direito. Surgiram numa esfera abstrata com normatividade nula, a fase jusnaturalista. Na fase seguinte, positivista, os princípios são inseridos nos códigos como fonte normativa subsidiária à impedir o vazio normativo, valorizados não pela sua relevância , mas por derivarem da lei. É a concepção civilista do século XX. A terceira fase, pós-positivista, converte os princípios na base em que se assentam os novos sistemas constitucionais.
                   Afirma que os princípios são normas e as normas compreendem os princípios e as regras. De acordo com LUÍS ROBERTO BARROSO já se encontra superada a distinção entre norma e princípio. A dogmática moderna compreende que as normas podem ser encontradas como norma-princípio (maior teor de abstração e finalidade mais destacada) e norma-disposição (regras com eficácia restrita às situações específicas às quais se dirigem).
                     Segundo BOBBIO, os princípios gerais são normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais, e são normas como todas as demais.
                      Comportam uma série indefinida de aplicações, por isso são gerais, afirma JEAN BOULANGER.
                      Os princípios exercem funções de extrema importância:
1.     fundamento da ordem jurídica com eficácia derrogatória e diretiva
2.     orientação do trabalho interpretativo
3.     fonte em caso de insuficiência da lei e do costume
4.     função limitativa (acrescentada por Bobbio- intensidade vinculativa máxima no exercício da função integrativa e mínima na função interpretativa)

   Importante ressaltar o que ocorre na hipótese de colisão de princípios  ou conflito de regras, quando aparentemente as duas normas conduzem a resultados incompatíveis. No conflito de regras uma delas será removida ou nula (dimensão da validade). Já na colisão de princípios um deve recuar, sem nulidade ou cláusula de exceção, visto que os princípios têm um peso diferente nos casos concretos, devendo preponderar o de maior peso, o de maior valor (dimensão do valor).
   Deixaram de ser fonte subsidiária de terceiro grau nos códigos para se tornarem fonte primária de normatividade.
  Não se pode resolver conflitos de direito com fundamento único nos princípios da bioética, afirmou a prof ª HELOISA, embora estas orientem as normas jurídicas e possam ser observadas desde que não colidam como os princípios de direito.
  Como a prof ª salientou, os fatos a serem regulamentados pelo biodireito não foram cogitados pelo ordenamento, resultando na necessidade de observância dos valores eleitos pela sociedade, ressaltando-se que o reinado absoluto da lei não mais pode prevalecer.
 Os princípios constitucionais constituem os princípios do Biodireito, face a constituição recepcionar  os valores fundamentais: vida, dignidade humana, liberdade e solidariedade, tornando-os pedras angulares da Bioética moderna. Não só as normas constitucionais relativas à saúde, ao meio ambiente e à tecnologia são relacionadas ao Biodireito, ma também todas as disposições constitucionais relativas à vida humana, sua preservação e qualidade são pertinentes ao Biodireito, como lembrou a prof ª HELOISA. Destacou as normas compreendidas nos princípios fundamentais (dignidade humana); entre os Direitos e Garantias Fundamentais (vida, igualdade, saúde); na Ordem Social (na seção saúde; meio ambiente e família, criança e idoso).
    O profº LUIZ ROLDAO DE FREITAS GOMES  ao suscitar questões sobre os direitos da personalidade em artigo publicado na Revista da EMERJ, vol.5, nº19, traz o conceito de PONTES DE MIRANDA onde afirma que “são efeitos de fatos jurídicos que se produziram, nos sistemas jurídicos, quando, a certo grau de evolução, a pressão política fez os sistemas jurídicos  darem entrada a suportes fáticos que antes ficavam de fora, na dimensão moral ou na dimensão religiosa”. Trazendo o conceito de FERRARA conceituou como “direitos privados destinados a assegurar ao individuo o gozo do próprio ser, físico e espiritual”. 
    Conclui-se que embora tais direitos sejam sempre havidos como irrenunciáveis, intransmissíveis e extrapatrimoniais, apresentam nítidas e irrefutáveis conotações patrimoniais. O grande problema não ‘’e sua previsão, mas quais os meios judiciais postos ``a disposição de seu titular para torna-los efetivos. Os direitos da personalidade se erigem  na principal barreira contra os ímpetos das pesquisas cientificas, que põem em xeque a identidade físico-espiritual do ser humano.

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