Escrito por Thogo Lemos*
O título acima seria absurdo, caso vivêssemos sob a luz da
razão e da lucidez.
Infelizmente, ameaça-nos a sombra da truculência e da
demonstração do poder;
manda quem é juiz, obedece quem tem juízo. Os jornais
mostram o caos na saúde.
Aos berros, denuncia-se a única coisa a se corrigir
neste paraíso chamado Brasil.
Aos murros e pontapés, o poder maior obriga os
gestores do sistema de saúde a
cometerem desvarios como uma impensável “vaga
zero”, mostrando que o objetivo
é colocar o paciente para dentro do hospital,
limpar a porta dos hospitais, acalmar
a imprensa e satisfazer a opinião
pública.
Colocar mais um paciente num local já abarrotado significa
aumentar o risco não só
para aquele, mas para todos os internados, como também
para os profissionais.
Acredite, ser internado em uma vaga zero pode ser mais
arriscado do que ficar em casa.
Quer mais uma? Institucionalizou-se o
brasileiríssimo fura-fila; quem reclama passa
na frente dos calados, muitas
vezes, os verdadeiros merecedores de prioridade.
Sei que as deficiências
existem e são muitas. A questão é se vale a pena corrigi-las
com aberrações.
Grande parte do problema inicia-se com um delírio. O
conceito de saúde criado
no pós-guerra imediato refletia os impactos da
devastação, bem como uma desmedida,
mas justificada, busca pelo bem-estar.
Pronta e anacronicamente encampada pelos
nossos constituintes num momento de
festa, de alforria, de abolição de tantas escravidões,
só pode soar como
surreal: “um estado de completo bem-estar físico, mental e social,
e não apenas
a ausência de doenças”. E o que deveria servir como referência foi transformado
em obrigação. Ou alguém imagina ser um país capaz de oferecer completo
bem-estar
aos seus habitantes? Vai que meu time não ganhe, vai que minha mulher
deixe de gostar
de mim, vai que a Justiça não funcione! Mais um resquício de
uma constituição geradora
de mendigos, vítimas e incapazes, uma utópica carta
de desejos, absolutamente capenga
na definição de responsabilidades que não as
do Estado.
Se saúde resulta de determinantes genéticos, ambientais e
comportamentais, como acreditar
que a responsabilização exclusiva do Estado,
quando muito capaz de alterar algumas condições
do ambiente, vá nos levar a
esse nirvana constitucional?
Se o assunto é tão importante, como não pensar na
necessidade de unir forças, de compartilhar
soluções, de corresponsabilizar-se?
Como aceitar que, numa clara manifestação de
desequilíbrio entre as forças
responsáveis pela estabilidade democrática, possa alguém
ou alguma categoria
comandar a distância (e que distância!), o que não compreende o
que não
entende, o que não conhece ou tem apenas visão parcial? Precisamos da mão
forte
da Justiça, não da truculência do Judiciário.
Que os senhores juízes não se limitem a representar os
poucos que reclamam e que também
sejam responsabilizados pelas consequências de
seus atos. Que saiam de suas salas e visitem
os hospitais, unidades de saúde,
ambulatórios. Que entendam os motivos reais de haver
tantas filas. Que
presenciem o que é trabalhar numa unidade de emergência.
Que enxerguem que nem
todo médico é vagabundo. E que imaginem, caso algum dia
a Justiça venha a não
funcionar adequadamente, os tribunais tendo sua rotina gerida por
um
engenheiro, político ou médico!
Este não é um manifesto contra pessoas, instituições ou
ideias, mas um pedido por
mais lucidez, humildade, respeito e, principalmente,
responsabilidade. A saúde merece!
* Thogo Lemos é médico infectologista.
do site do CFM
do site do CFM
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