Poderosa demais
Por ser bela, rica e famosa, Luana Piovani não seria ‘oprimida e subjugada’ o bastante para ter direito à proteção da Lei Maria da Penha, entendeu juiz
Débora Diniz
Carlos Zambrotti e Philippe Lima/AgNews
Piovani. Emancipada, é ela que pode denunciar a persistência da violência masculina
Não sei bem o que seria uma mulher de verdade, mas me esforçarei por interpretar os rastros deixados pela sentença. A discussão não é a anatomia de Luana, mas suas performances de gênero, como diriam algumas feministas. A ação penal de 2008 acusa Dolabella de tê-la agredido em uma boate; entre os dois haveria ainda Esmeralda de Souza, a camareira também agredida por ter se lançado para proteger Luana. Há imagens da cena, o que retira da discussão a pergunta sobre a verdade da violência. O que resta é saber como qualificar Luana: uma vítima sem gênero para o direito penal ou uma mulher de verdade para efeitos da Lei
Maria da Penha? A decisão do desembargador, com uma verve de especialista em desigualdade de gênero, foi clara: “O campo de atuação da respectiva lei está traçado pelo binômio hipossuficiência e vulnerabilidade”. O sentido dicionarizado da palavra “binômio” deixa a classificação de mulher de verdade ainda mais curiosa: “Nome científico composto por dois nomes; um substantivo que designa o gênero e um adjetivo que designa a espécie”.
Maria da Penha? A decisão do desembargador, com uma verve de especialista em desigualdade de gênero, foi clara: “O campo de atuação da respectiva lei está traçado pelo binômio hipossuficiência e vulnerabilidade”. O sentido dicionarizado da palavra “binômio” deixa a classificação de mulher de verdade ainda mais curiosa: “Nome científico composto por dois nomes; um substantivo que designa o gênero e um adjetivo que designa a espécie”.
Sob o risco de me equivocar na ordem criativa do desembargador, imagino que o substantivo seja “hipossuficiência”, e o adjetivo, “vulnerável”. As mulheres como gênero humano teriam que ser pobres e dependentes dos homens. Luana provoca essa descrição do feminino, pois é rica e poderosa. Como espécie desse gênero, teria ainda que ser vulnerável. Vulnerável é daqueles adjetivos multiuso: descrevem tudo e todas, ao mesmo tempo que são escorregadios. No campo dos estudos de gênero, vulnerabilidade é a condição do feminino em sociedades com tramas diversas de patriarcado. Luana pode ser rica, mas seu corpo é vulnerável à dominação masculina. Não é à toa que sofreu agressões. Sua independência não foi capaz de blindar o seu corpo a quem crê poder discipliná-la pela violência. Parece-me ser esse o ponto esquecido pela equivocada sociologia de gênero da sentença: Luana subverteu o status de subalternidade do feminino, mas não emudeceu a ordem política que a reduz a um ser da espécie vulnerável.
Mas o conteúdo da decisão judicial prossegue na enviesada sociologia de gênero que fundamentaria a interpretação da Lei Maria da Penha. Seria preciso ainda que o ato violento tivesse ocorrido em âmbito doméstico e por alguém em relação de afetividade estável. A agressão se deu em uma boate, um espaço ambíguo para a moral que persegue as mulheres de verdade; além disso, Luana e Dolabella não viviam
uma relação estável, mas de afetividade ocasional. Ora, a lei não exige nem casamento nem tampouco
casa como condicionantes para sua aplicação. Essa perturbação interpretativa provocada pela figura de Luana não deve ser entendida como um curto-circuito isolado, mas como um indicador do perfil de quais seriam as mulheres enquadradas no qualificador de vítimas: somente aquelas pobres, dependentes e subjugadas à casa.
uma relação estável, mas de afetividade ocasional. Ora, a lei não exige nem casamento nem tampouco
casa como condicionantes para sua aplicação. Essa perturbação interpretativa provocada pela figura de Luana não deve ser entendida como um curto-circuito isolado, mas como um indicador do perfil de quais seriam as mulheres enquadradas no qualificador de vítimas: somente aquelas pobres, dependentes e subjugadas à casa.
As mulheres são diferentes entre si. Muitas delas são representantes do gênero hipossuficiente, mas todas são da espécie vulnerável. Luana é rica, bonita e famosa, mas nem por isso conseguiu escapar da perversidade da violência de gênero. Ela foi agredida por um homem de suas relações de intimidade e afeto – duas variáveis esquecidas pelo desembargador, que anuncia que o uso universal da Lei Maria da Penha inviabilizaria os Juizados de Violência Doméstica e Familiar. Não sei como proteger Luana causaria tamanha catástrofe, pois é exatamente pelo rosto famoso e de mulher emancipada que é possível escandalizar a persistência da violência de homens contra mulheres. Ao contrário do que imagina o desembargador, precisamos de mulheres ricas e famosas que denunciem quanto a
vulnerabilidade do feminino não depende apenas da classe social, mas da espécie que representamos.
vulnerabilidade do feminino não depende apenas da classe social, mas da espécie que representamos.
*DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO
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