O presente artigo, fruto do estudo da Teoria da Relação
Jurídica, pretende abordar aspectos das situações jurídicas existenciais. Esta
categoria foi introduzida por Pietro Perlingieri, o qual deu grande
contribuição ao estudo dos conhecidos direitos da personalidade;
indiscutivelmente, alvo de promoção de dissensos em uma relação jurídica.
Na lição do renomado civilista italiano, os direitos da
personalidade, vistos como uma série aberta de hipóteses de fato, são situações
subjetivas não patrimoniais merecedoras de tutela1 qualitativamente
diferenciada, por se tratarem de questões atinentes à condição existencial do
homem, pessoa humana, posto no vértice do ordenamento jurídico.
Passados quase 20 anos desde a entrada em vigor da mais
festejada Constituição da República, um olhar histórico sobre os institutos de
direito privado revela uma alteração substancial de suas fontes. Nas palavras
de Maria Celina B. Moraes2:
“Diante da nova Constituição e da proliferação dos chamados
microssistemas, como, por exemplo, a Lei do Direito Autoral, e recentemente, o
Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei
das Locações, é forçoso reconhecer que o Código Civil não mais se encontra no
centro das relações de direito privado. Tal pólo foi deslocado, a partir da
consciência da unidade do sistema e do respeito à hierarquia das fontes
normativas, para a Constituição, base única dos princípios fundamentais do
ordenamento.”
A questão, todavia, reside não apenas em escolhas topográficas
das fontes normativas (se o fundamento está na Constituição, Códigos ou leis
especiais), mas na correta individuação dos problemas.
Pretende-se lançar mão do paradigma próprio da metodologia civil
— constitucional, a fim de se delinear argumentos e fundamentos para uma maior
abrangência das situações jurídicas existenciais, os direitos da personalidade.
As situações subjetivas existenciais. O
Direito Civil — Constitucional e os fundamentos da República. A dignidade da
pessoa humana como valor
Os atualmente conhecidos direitos da personalidade são frutos de
construção doutrinária recente, surgida na segunda metade do século XX.
Sob a nomenclatura dos direitos da personalidade, estão
compreendidos os direitos atinentes à tutela da pessoa humana, considerados
essenciais à sua dignidade e integridade3.
Dito desta forma parece bem simples a compreensão, porém,
disputas doutrinárias foram travadas em debates sobre a tipificação, aceitação
de tais direitos e disciplina jurídica.
Em apertada síntese elaborada por Tepedino, se afirmava que a
personalidade, identificando-se com a titularidade de direitos, não poderia, ao
mesmo tempo, ser considerada como objeto deles; sendo, portanto, uma
contradição lógica (Tepedino, 2004: 25).
A vida, a saúde e a honra não se enquadrariam na categoria do
ter, mas do ser, o que os tornaria incompatíveis com a noção de direito
subjetivo. Vista desta forma, a proteção jurídica da personalidade não se
revestia de características do direito subjetivo. O ordenamento reagia contra
danos injustos a tais bens, através do princípio de não causar danos a outrem,
ou seja, reflexos do direito objetivo (responsabilidade civil) 4
Não se trata aqui de percorrer o caminho da tipificação dos
direitos da personalidade até a positivação ocorrida no Código Civil de 2002. O
conceito de situação jurídica subjetiva, proposto por Pietro Perlingieri,
permite a dissociação dos argumentos de cunho patrimonialista, elevando os
direitos da personalidade como valor.
Citado por Gustavo Tepedino5, Pietro Perlingieri
supera a insuficiência das correntes doutrinárias que se apegam ao caráter
patrimonial intimamente associado à teoria do direito subjetivo:
“a personalidade humana mostra-se insuscetível de recondução a
uma relação jurídica — tipo ou a um novelo de direitos subjetivos típicos,
sendo, ao contrário, valor jurídico a ser tutelado nas múltiplas e renovadas
situações em que o homem possa se encontrar a cada dia. Daí resulta que o
modelo do direito subjetivo tipificado será necessariamente insuficiente para
atender às possíveis situações em que a personalidade humana reclame tutela
jurídica.
O que se verifica, a rigor, do debate antes enunciado em torno
das diversas correntes que buscam explicar a conceituação, o objeto e o
conteúdo dos direitos da personalidade, é que todas elas se baseiam no
paradigma dos direitos patrimoniais.
Imaginando-se a personalidade humana do ponto de vista
estrutural (ora o elemento subjetivo da estrutura das relações jurídicas,
identificada como o conceito de capacidade jurídica, ora o elemento objetivo,
ponto de referência dos chamados direitos da personalidade), e protegendo-a
apenas em termos negativos, no sentido de repelir as ingerências externas à
livre atuação do sujeito de direito, segundo a técnica própria do direito da
propriedade, a tutela da personalidade será sempre setorial e insuficiente.”
Assim, classificar os direitos da personalidade, segundo as
doutrinas tradicionais, é insuficiente. O aspecto essencial das situações
subjetivas, na visão de Perlingieri6, é aquele normativo ou regulamentar,
extraído do ordenamento como um todo. A juridicidade traduz-se no poder de
realizar, de exigir que outros realizem ou que se abstenham de realizar
determinados atos. Tal afirmação encontra confirmação em princípios e normas
jurídicas. Nesse aspecto, a situação constitui uma norma de conduta que pode
significar atribuição ao sujeito — no interesse próprio e/ou de terceiros, no
interesse individual e/ou social — do poder de realizar ou de não realizar
determinados atos ou atividades. A tipificação encontrada no Código Civil de
2002 não encerra uma proteção total da pessoa humana.
É correto afirmar, conforme faz Tepedino, que é preciso
considerar a personalidade mais que um reduto de poder do indivíduo no âmbito
do qual seria exercido a sua titularidade. Ao contrário, devemos elevar a sua
proteção como valor máximo do ordenamento. Com efeito, a escolha da dignidade
da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo
fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, na redução das
desigualdades sociais, juntamente com a previsão do parágrafo 2º do artigo 5º,
no sentido da não exclusão de qualquer direito ou garantias, embora não
expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior,
configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana
(Tepedino, 2004: 49).
O ponto de confluência desta cláusula geral é, sem dúvida7,
a dignidade da pessoa humana, posta no ápice da Constituição Federal de 1988
(artigo 1º, III). Em seu cerne, encontram-se a igualdade, a integridade
psicofísica, a liberdade, e a solidariedade. Neste sentido, deve-se inibir ou
reparar, em todos os seus desdobramentos, a conformação de tratamentos
desiguais — sem descurar da injustiça consubstanciada no tratamento idêntico
aos que são desiguais —; o atentado à saúde, entendida esta em sua mais ampla
acepção; o constrangimento e o estreitamento da liberdade individual, com foco
voltado para as situações existenciais, e o desprezo pela solidariedade social
— mandamento constitucional que não admite nem a marginalização, tampouco a
indiferença.
A cláusula geral visa proteger a pessoa em suas múltiplas
características, “naquilo que lhe é próprio”, aspectos que recompõem à
consubstanciação de sua dignidade, valor reunificador da personalidade a ser
tutelada. Evidentemente, também se abrigam sob o seu manto os demais direitos
que se relacionam com a personalidade, alguns deles descritos pelo próprio
legislador constituinte no artigo 5º da Constituição.
Está presente, no ordenamento jurídico brasileiro, a base
normativa para dar elasticidade às situações subjetivas existenciais a fim de
ampliar a tutela dos denominados direitos da personalidade. A relação jurídica
consiste em um dos ângulos de averiguação do fenômeno jurídico, não deve ser
tomada apenas como relação entre pessoas determinadas. É melhor ser vista como
um vínculo entre situações subjetivas, levando-se em consideração os aspectos
distintivos da pessoa humana na hierarquia dos valores constitucionais.
Notas de rodapé
1- PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao
Direito Civil Constitucional. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Pág. 90.
2- MORAES, Maria Celina Bodin de. A Caminho de um Direito Civil
Constitucional. Publicado na Revista Estado, Direito e Sociedade, vol. I, 1991.
Pág. 4.
3- TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento
Civil – constitucional Brasileiro in Temas de Direito Civil / Gustavo Tepedino
(coordenador). 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2004. Pág. 25
4- Idem.
5- TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento
Civil – constitucional Brasileiro in Temas de Direito Civil / Gustavo Tepedino
(coordenador). 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2004. Pág. 47
6- PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao
Direito Civil Constitucional. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Pág. 107
7- MORAES, Maria Celina Bodin de. O Princípio da Dignidade
Humana in Princípios do Direito Civil Contemporâneo / Maria Celina Bodin de
Moraes (coordenadora). Rio de Janeiro: Renovar, 2006. Pág. 55.
Bibliografia
MORAES, Maria Celina Bodin de. O Princípio da Dignidade Humana
in Princípios do Direito Civil Contemporâneo / Maria Celina Bodin de Moraes
(coordenadora). Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento
Civil – constitucional Brasileiro in Temas de Direito Civil / Gustavo Tepedino
(coordenador). 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
DONEDA, Danilo. Os Direitos da Personalidade no Novo Código
Civil in A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil -
constitucional / Gustavo Tepedino (coordenador). 2ª ed., Rio de Janeiro:
Renovar, 2003.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao
Direito Civil Constitucional. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
AMARAL, Francisco. Direito Civil Introdução. 5ª ed., Rio de
Janeiro: Renovar, 2002.
MORAES, Maria Celina Bodin de. A Caminho de um Direito Civil
Constitucional. Publicado na Revista Estado, Direito e Sociedade, vol. I, 1991.
Antonio Paulo
Barca é advogado, especialista em Direito civil, sócio titular do
escritório de advocacia Barça e Associados.
Revista Consultor
Jurídico, 16 de dezembro de 2007
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