Entre Vistas e Olhares
Juliane Cintra de Oliveira; E-mail: juliane.cintra@gmail.com ; Universidade de São Paulo, São Paulo,
São Paulo, Brasil.
Cad. Gên. Tecnol., Curitiba, v.12, n. 40, p. 13-24, jul./dez. 2019.
Em menos de duas décadas de produção científica, Ísis Aparecida Conceição, professora de Direito Internacional Público da UNILAB-Malês (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), trilhou uma trajetória singular e proeminente no campo do direito. O argumento central de sua produção é a promoção da justiça racial e a sedimentação do debate sobre interseccionalidade no Brasil, com vistas a emancipação das mulheres negras, bem como reconhecimento dos saberes produzidos por estas cientistas.
Ao lado de figuras icônicas, como a professora Kimberlé Williams Crenshaw, defensora dos direitos civis dos Estados Unidos e uma das principais estudiosas da teoria crítica racial, Ísis inaugura um campo do debate no Direito para as feministas negras na América Latina.
A partir do lugar das mulheres negras, Ísis partilha sua trajetória e a necessidade da elaboração de uma epistemologia feminista própria, à luz dos saberes e experiências de sua comunidade nesta entrevista aos Cadernos de Gênero e Tecnologia.
CGT – Antes mesmo de olhar de modo mais dedicado para sua trajetória eminente no campo do direito, gostaria de começar esta conversa a partir da perspectiva de sua presença nesse Caderno que se debruça sobre a reflexão de Gênero e Tecnologia. Sendo pesquisadora do campo do direito, você se considera uma cientista? A trajetória de uma mulher negra do campo das ciências humanas contempla esta abordagem de ciência e tecnologia?
Ísis – A gente sabe que o cientista nada mais é que uma pessoa que se vale do método científico, já o produtor de tecnologia, por sua vez, seria a pessoa que produz ferramentas para aprimorar a qualidade de vida ou dos resultados e achados, após uma pesquisa científica. Sendo assim, você sistematizar um conhecimento ou produzi-lo de modo a alterar uma realidade, o torna um cientista, um produtor de ciência, um produtor de tecnologia. E isso acontece tanto na área de ciências humanas, quanto na área das chamadas ciências duras.
Interpretarmos que somente a área de ciências STEM1 produz ciência e tecnologia, implicaria quase que na negação de todas as ferramentas que foram construídas por cientistas da área de ciências sociais e humanas para promoção de inclusão de gênero, por exemplo. Não é possível propor o debate sobre gênero e raça ou inclusão subalterna em função dessas identidades e partir de uma premissa que esta reflexão não tem uma natureza científica. Negar cientificidade da área do conhecimento que origina o debate desta revista acaba sendo uma contradição, em vista que existem mulheres negras que são cientistas e também estão nas Humanas, a exemplo da Patrícia Hill Collins, Kimberlé Williams Crenshaw, bell hooks, Yuderkys Espinosa Minõso, Ochy Curiel, Lelia Gonzales, elas estão produzindo tecnologia para a gente conseguir observar, interpretar e transformar a nossa realidade.
CGT – Nos dedicando a sua trajetória pessoal, tem uma frase sua – ao tratar da conclusão do seu curso na UCLA School of Law2 - na qual você diz: “aqui, apenas encontrei fundamentação teórica para o que aprendi com meus pais e meus pais aprenderam com seus pais”, com base nisso, conte para gente como se constrói a escolha pela atuação no campo do direito? Antes mesmo de adentrar a universidade.
Ísis – Eu como filha de imigrantes – tanto pela família da minha mãe, do sul da Bahia, como pela do meu pai, oriundo do Recôncavo, que partem para São Paulo, ainda jovens –, cresço em um espaço no qual tenho acesso a uma educação de tradição oral. Aqui na Bahia, as pessoas distinguem isso, há uma educação da sabedoria... afinal, você pode não ter tido acesso à educação formal, mas isso não significa que deixe de possuir um acúmulo de saber, acúmulo este resultante de sua experiência de vida. E foi isto que aprendi na minha casa, exatamente porque meus pais não têm educação formal, mas me educaram de uma forma muito eficaz, a partir dessa atenção eficiente que tiveram em observar o mundo e observar como educar seus filhos para transitar nesse mundo. Evidente que estamos falando da tradição dos Griôs3 , que é também dos meus avós, que tem a ver com sentar e conversar com os mais novos, contar suas histórias, ser uma fonte de informação e saber relevantes.
A Teoria Crítica Racial resgata isso, tanto que tem a questão de valorizar as narrativas. Porque as narrativas quando reproduzem sistematicamente algumas informações, acabam sendo fontes de análise. Por exemplo, você se lembra daquele vídeo das bonecas? Da boneca branca e da boneca preta?
CGT – Que são apresentadas para algumas crianças?
Ísis – Isso! Esta peça é quase uma estratégia de narrativa, apresentada para Suprema Corte dos Estados Unidos, por meio dela constataram que todas as crianças negras tinham uma autoimagem negativa. E esta percepção depreciada de si, está vindo de onde? Da nossa estrutura. Ou seja, você só consegue dizer como está funcionando a estrutura, as instituições, muitas vezes, a partir das narrativas individuais, das histórias dessas pessoas. É este um dos argumentos da Teoria Crítica Racial, mas que eu aprendi dentro de casa.
Aprendi porque ouvia as histórias que meu pai contava, minha mãe contava, que meus avós contavam, tudo era uma fonte de aprendizado. Não só isso, mas também as conclusões a que eles chegavam, muitas delas não são muito diferentes de alguns achados dos professores da Teoria Crítica Racial que nos auxiliam a pensar como funciona esse sistema de subordinação racial. Por exemplo, nem sempre é o Estado que vai negar direitos em função do seu pertencimento racial, às vezes é o particular e isso não me veio numa teoria de horizontalidade dos direitos fundamentais e do particular negando direitos formados por raça. Isso vem de uma história que o meu avô, meu pai e minha mãe contaram, a partir de suas experiências – prática comum quando falamos de povos africanos.
O Griô é a pessoa mais respeitada, porque é ele quem vai observar, memorizar e contar a história daquela comunidade, suas estratégias e aprendizados. Na minha família sempre foi valorizado ouvir os mais velhos, prestar atenção em suas histórias, pois elas podem nos ser úteis lá na frente. Acho que era isso que eu sentia no meu tempo de UCLA, eles teorizaram, mas a horizontalidade de direitos fundamentais e violação de direitos fundamentais por particulares pode ser o chefe folgado, o patrão numa relação de trabalho doméstico que te assedia. Já me contaram que isso acontecia, que não era só a polícia, tinha a dimensão do privado. E, sobretudo, eles também me informaram para que ficasse atenta, para que não fosse absorvida nessa mesma negação de direitos. Acho que é isso. Vários conceitos, mas essa era a ideia.
CGT – Perfeito! E pensando em todo esse caminho que você apresentou, do quanto isso tem a ver com sua narrativa e sua trajetória. Quando é que você vira e fala: bom, é Direito.
Ísis – Tem o lado do Paulo Coelho [risadas], afinal, quando você está prestando vestibular, o desespero sempre bate. Eu era muito boa, no Ensino Médio, em química e matemática, física não fazia tanto sentido, mas eu me saía bem. Lembrome do professor falar que química era “uma grande regra de três”.... Foi assim que me fascinei com aquele curso de Engenharia de Materiais, que parecia ser coisa de Engenheiro Químico. Pensei também em Engenharia Química e se tudo desse errado, a opção seria Engenharia Civil.
Só que quando chegou a hora de pagar – a inscrição para o vestibular eram, como dizem, os dois olhos da cara que decidem sua vida [risadas]. É sério, seu pai te dá oitenta reais e tu vai decidir sua vida, assim que me sentia.... Parei, conversei com a minha mãe e recordei de quando li o Paulo Coelho ainda no Ensino Fundamental. Ele dizia algo assim: aquela profissão que foi a primeira que você escolheu é a que você escolheu na sua vida sem influências da sociedade, portanto, é o que você realmente quer. Foi assim, no final, acabei escolhendo Direito por causa do Paulo Coelho [risadas]. Logo, comprei outro manual, preenchi Direito Noturno ou Direito Diurno, paguei a inscrição e fiz o vestibular.
Teve também o fato da minha mãe trabalhar no Sindicato dos Metalúrgicos, na colônia de férias. Tinha um advogado do sindicato que era uma ótima referência, de muito carinho. Eu era uma criança mesmo, tinha por volta de sete, oito anos, muito tagarela. E ao me observar, ele sempre brincava comigo, afirmando que deveria ir para área do Direito por ser muito articulada. Dizia ele: ela consegue fazer boas defesas!
O elemento final tem a ver com unir o útil ao agradável. De forma pragmática, a faculdade de Direito despontou no meu horizonte como a possibilidade de ter uma profissão, alcançar estabilidade financeira e trabalhar com a defesa de direitos numa estrutura, na qual já sabia que teria meus direitos violados – não somente pelo Estado, mas também pelos outros, particulares – e que todos os que amava também corriam esse risco. Acabei prestando Direito com esse olhar, com essa base de formação. Esse foi o ponto, mas também foi o Paulo Coelho [risadas].
CGT – Você é pesquisadora em muitas áreas do Direito: Direito Internacional, Direito Constitucional, Direito do Consumidor, Direito da Criança, Justiça Racial e Direitos Humanos. Olhando para sua produção acadêmica, para o seu Doutorado e para os dois Mestrados, além da sua Graduação, identificamos que compreender o sistema de justiça a partir do debate racial é uma escolha que orienta sua atuação, não é mesmo?
Ísis – Este sempre foi meu foco, até porque estabeleço conexões de proximidade, estou falando de pai, irmão, tios, da insegurança característica a que são submetidos os homens negros ao meu redor. Há um sistema de insegurança motivado pela violência policial arbitrária, sem motivos além do racismo.
Escolho trilhar por esses caminhos acompanhada de docentes negros, entre os quais é importante falar do Hédio Silva, notório advogado, doutor pela PUC, foi Secretário de Justiça do Estado de São Paulo, do Fernando Fernandez, primeiro negro a ser formar em Direito na UNESP (Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho") e o primeiro brasileiro a ser doutor em direito em Coimbra – meu orientador na graduação, ainda há Eunice Prudente, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, para mencionar os professores daqui do Brasil. Tal opção viabiliza dar passos mais largos na pesquisa, não ter que fazer o debate sobre se racismo existe ou não, porque seria uma perda de tempo. Mas sim já partir para outros aspectos da investigação: por que o racismo está no sistema de justiça criminal? Por que o racismo está no processo de adoção? Por que o racismo está na abordagem do Direito do Consumidor? Por que o impacto dos Direitos Tributários é maior para mulheres negras no Brasil? Estas foram as perguntas que informaram o meu olhar.
Você pode ter lentes por meio das quais você enxerga o mundo, você olha as coisas, a minha é racializada, pois esta é a formação que tive em casa. Não se engane, o racismo existe, seja esperta e tente sempre escapar - este é o resumo e isso formou as minhas pesquisas.
CGT – Podemos dizer que a espinha dorsal das suas produções é o debate relacionado a teoria crítica racial. Conte-nos um pouco do que se trata esse conceito?
Ísis – A teoria crítica racial (TCR) é uma escola de pensamento, ela está inserida nesse contexto de pessoas não brancas que entram nas universidades de elite, majoritariamente brancas, nos cursos de Direito dos Estados Unidos, por conta das ações afirmativas. Esses novos estudantes trazem a necessidade de produzir uma teoria para refletir o funcionamento do sistema de justiça sob luz do debate racial.
É um processo de desconstrução do ideário de que o judiciário não vê cor, ao contrário, a Teoria Crítica Racial desponta para falar, não existe neutralidade. Afirmando que, sim, o judiciário tanto vê cor que temos um precedente, muito estudando na escola de TCR, de um homem branco que atirou em três jovens negros dentro do metrô. A alegação era de que por estar sozinho, sentiu-se ameaçado e intimidado, agiu em legítima defesa. O julgamento, por sua vez, foi no sentido de inocentá-lo pois era razoável você sentir medo quando se está só no metrô e três homens negros vêm em sua direção. Dizer que esse julgamento não tem a categoria raça presente é o absurdo dos absurdos, o auge do privilégio branco. É afirmar que o debate sobre discriminação e estereótipos, bem como sobre a negativa de direitos informadas por esses estereótipos de raça estão presentes, e que isso é normal.
Descobrir tudo isso foi maravilhoso, porque eu trabalhava a questão de raça no Direito, mas encontrei um acúmulo de um monte de gente que estava perguntando e pensando como raça perpassava as categorias jurídicas.
Eu posso dizer que a Teoria Crítica Racial formava minhas pesquisas em criminologia na graduação e políticas criminais, marcadamente, mas depois eu percebi que tinha uma sustentação científica nos Estados Unidos, como uma escola reconhecida. De fato, soube da Teoria Crítica Racial em 2007, quando conheci a professora Kimberlé Crenshaw. Se você for ver que eu entrei na faculdade de Direito em 2000 e já estava pensando a categoria raça, foram sete anos meio de autodidatismo nesse campo.
CGT – E como chega o debate de gênero em suas produções? Como você tem abordado tal conceito no campo do direito?
Ísis – Como a maioria das mulheres negras em espaços de poder, percebemos primeiro a categoria raça. Você é discriminada pelas mulheres brancas e homens brancos, os homens negros eventualmente disputam com você em um outro contexto, mas a priori não identificava essas condutas de discriminação de gênero imediatamente.
Quando entrei na faculdade de Direito, o que eu via era a polícia parando o ônibus para revistar todo mundo. Quem desce? Meu pai, trabalhador voltando do fim do expediente, já eu não desço. É isto, num primeiro momento, é uma questão de raça que me preocupa, não é uma questão de gênero e por isso me dediquei a pesquisa de raça por muito tempo, mas eu estava mais ou menos com o olhar para agenda de gênero, inevitavelmente.
Então, após muitos questionamentos da professora Kimberlé Crenshaw, aliados a uma palestra do ex-presidente dos EUA, Barack Obama, quando percebi, por meio da reação da plateia, o quanto a recepção sobre as agendas de gênero e raça eram diferenciadas no Brasil, decidi me debruçar sobre o tema.
Foi surpreendente para mim quando o público quase veio abaixo ao ouvir ele dizer que um país não vai ser desenvolvido enquanto ele discriminar mulheres, enquanto ele não aceitar mulheres em condições de igualdade nos espaços onde os homens estão. As palmas e os gritos o interromperam, no entanto, quando ao retomar, em um ato contínuo, ele afirma que um país não vai ser desenvolvido se discriminar as pessoas em função dela ser mais clara ou mais escura, ou usar cor como exclusão dos espaços de decisão, ninguém me bate palma.... Até brinquei, porque na hora eu bati palma, aí o menino ao meu lado olhou assustado. Falei para ele que todos deveríamos reconhecer no Brasil o quanto o debate sobre raça também é relevante. Voltamos para uma antiga indagação da, abolicionista e ativista dos direitos das mulheres, Soujourner Truth: não sou eu, uma mulher?
No Brasil, existe uma aceitação intensa ao debate sobre feminismo e inclusão de mulheres, porque a premissa é que a inclusão não será de mulheres negras. A premissa é de que a inclusão será de mulher. E mulher é a “mulher universal”, por isso esse espaço do feminismo ter um marcado apoio, no entanto, o debate racial não tem apoio, por ser entendido, como destaca a professora Kimberlé Crenshaw, como a inclusão de homens negros, somente, e eles vistos como ameaçadores pela sociedade. Porém, não se percebe que o debate racial também envolve mulheres negras, uma vez vistas a partir desse viés racial, retomam o olhar existente no período do escravismo.
A mulher negra é vista como não humana, porque o negro ele tem a sua humanidade negada. Aí eu me lembro que sai da palestra do Obama e fui almoçar com a professora Eunice Prudente, dialogamos e constatamos que era necessário aprofundar o conteúdo teórico para entender o que está acontecendo. Pois existem inúmeras feministas interseccionais, um monte de gente falando sobre interseccionalidade, mas nos espaços em que as coisas precisam ser mais contundentes e consistentes, a reflexão sobre raça ainda não é aceita e consequentemente a mulher negra não é observada e a invisibilidade permanece.
CGT – O debate sobre interseccionalidade tem ganhado ampla repercussão entre as ativistas do movimento negro, como tem visto a abordagem dessa categoria para compreensão do fenômeno do racismo e do sexismo em nosso país?
Ísis – Kimberlé Crenshaw já tinha comentado que, nos EUA, os debates sobre ações afirmativas e raça, inclusive os de interseccionalidade, acabavam sempre privilegiando mais as mulheres brancas, do que as mulheres negras e homens negros. Pensei comigo: aqui no Brasil está acontecendo a mesma coisa! Comecei, a partir disso, a procurar qual eventualmente seria esta motivação. Por que isso está acontecendo? Quais as ferramentas estão fazendo com que esse fenômeno ocorra? Vamos pelo menos sistematizar os achados destes questionamentos, para depois pensar em uma intervenção, uma tecnologia que atue nessa constatação.
O nosso diagnóstico aponta para uma instrumentalização da categoria feminismo, desconectada do debate de raça. Aquele clássico que acontecia nos EUA, entre as décadas de 60 e 80, no qual as feministas brancas falavam que as mulheres negras não eram feministas porque rachavam o movimento por não terem sororidade - união e aliança entre mulheres, pois em seu ponto de vista debater a questão racial era menos relevante diante da questão da discriminação da mulher. Acabei de ser apresentada a tal discurso no ano passado, na UNILAB, por isso decidi olhar para esta ocorrência, até porque como uma pessoa que pesquisa, gosto de ter fundamentação, não gosto de usar palavras de ordem, desconectadas de fundamentação teórica. Foi assim que acabei caindo nesse mundo de teorias feministas.
CGT – Você tem trabalhado a categoria de solidariedade assimétrica ao analisar o cenário do feminismo nacional. Conte-nos o que isto significa?
Ísis – A interseccionalidade é uma categoria jurídica, elaborada por Kimberlé Crenshaw, portanto, ela é uma ferramenta. Ou seja, nos casos em que gênero e raça precisam ser apreciados pelo Direito, a interseccionalidade desponta como a ferramenta que dará a visibilidade para identificar como opera na vida de mulheres negras as discriminações de raça e de gênero. A base teórica dessa ferramenta é o Feminismo Negro, como já dissemos, sistematizado por muitas autoras, entre as quais destaco Patrícia Hill Collins.
As disputas epistemológicas se dão no âmbito do reconhecimento do saber e da produção de conhecimento das mulheres negras, de modo que gere o mesmo resultado, para as mulheres negras, que o feminismo branco gera para as feministas brancas, que o antirracismo gera para os homens negros. É a exigência de que a produção do saber reconheça que a interseccionalidade é resultado de um processo emancipatório, que nos permite diagnosticar a opressão e intervir no sentido de alterá-la
Trabalhar a interseccionalidade como se fosse a somatória de todas as identidades excluídas é um equívoco, esta categoria não é olímpiadas da exclusão, ao contrário, ela não deve parar no reconhecimento de uma possível sobreposição ou de um lugar específico, mas como a partir daí você revisita a distribuição de poder e melhora a vida de mulheres negras.
Neste contexto que emerge a abordagem de solidariedade assimétrica, – também me foi apresentada por Kimberlé Crenshaw, esta categoria nos provoca a refletir como a interseccionalidade, enquanto ferramenta, não está sendo usada para o empoderamento das mulheres negras, mas para tão somente reconhecer que elas são vítimas e este não é seu objetivo central. Sua premissa e das teorias que constroem seu embasamento teórico é de que ocorra a emancipação deste grupo social, a promoção de justiça social.
Pensando na solidariedade assimétrica, você mulher negra entra como vítima somente no feminismo ou no antirracismo, entra legitimando a condição dos intermediadores da conversa, você não entrará como um interlocutor, um igual, você não vai ocupar esse espaço do discurso, do cientista, do advogado. Esta é uma problematização que precisa ser feita às mulheres brancas; vocês vão usar essa aproximação de mulheres negras só para legitimarem-se e continuar com o domínio da situação política de gênero, com o monopólio de instrumentalização das ferramentas?
No caso da Aline Pimentel, uma condenação por direitos sexuais e reprodutivos, a gente vê que nem sua mãe ou seu esposo perceberam que, durante os seis meses da gravidez, ela estava recebendo um tratamento inadequado. O bebê já tinha morrido em sua barriga e ninguém percebeu. Tanto que após a morte da jovem, sua mãe que era empregada doméstica comenta com sua patroa a morte da filha e a patroa que era de uma ONG percebe: “nossa, isso é um bom caso para gente entrar com um processo”.
Quer dizer, a família da Aline5 não teve acesso à informação que permitisse a eles perceber que tinha uma negação de direitos acontecendo, porque quem tem acesso a este tipo de informação não são as vítimas, são as pessoas que entram para serem os advogados, os defensores e a função das mulheres negras continua sendo entrar como vítima. Não é essa a proposta da interseccionalidade, criar tokens ideais, a ferramenta busca visibilizar, mas a teoria busca disputar saber, legitimidade de saber e distribuição de acesso a informação. O caso da Ingriane6 parece estar andando do mesmo jeito.
CGT – Um importante feito de sua trajetória é a possibilidade de produzir conhecimento com figuras proeminentes como Kimberlé Crenshaw, Eunice Prudente, dentre outros, como esses feitos acabaram acontecendo?
Ísis – Sei que pode parecer arrogante, mas eu fui atrás, e claro também contei com um bom axé. Foi dessa maneira, por meio de pontes e diálogos que fui conhecendo as pessoas. Um desembargador após uma palestra promovida pelo NEDA, Núcleo de Estudo de Direito Alternativo, me indicou o Hédio Silva, que por sua vez, recomendou a professora Eunice Prudente. Quando a Kimberlé veio para São Paulo em 2007, sai do trabalho e fui pra PUC onde ela estava.
E então, cheguei na professora, falei da minha pesquisa, pedi para conversar, agendamos um encontro e iniciamos as trocas que permanecem – aí tem o inglês e a piada que a Kimberlé sempre faz, porque o único momento em que ela agradece o Axl Rose foi por conta do meu aprendizado do idioma por ser sua fã. A Patrícia Hill Collins estava em Brasília, no Latinidades, lá fui eu com meu livro, pedi autografo e para tirar uma dúvida, foi assim que consegui seu e-mail e mantivemos contato.
É procurar mesmo, porque são muito poucos. Ache e os agarre, sugue deles o máximo de conhecimento...
CGT – Desde que terminou seu mestrado, você assume a experiência da docência como uma das suas frentes de atuação. De lá para cá, agora está professora na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), entre outras universidades, como se deu esse caminho?
Ísis – Na Graduação, já pensava em ser professora de Direito. Lembro-me que o manual do vestibulando, acho que da UNESP, em 1999, afirmava que o número de faculdades de Direito no Brasil crescia sobremaneira e a profissão do futuro no Direito era ser professor porque haveria uma demanda gigantesca! E é verdade! Na minha trajetória acadêmica, percebi que todos os meus modelos de cientistas do direito, que estavam tentando responder às insuficiências do saber jurídico para aprimorar, para construir novas ferramentas, todos eles eram professores. Comecei trabalhando em uma universidade privada na Zona Leste de São Paulo, depois um grande grupo privado, acho que o maior do mundo, e de lá vim pra Unilab.
CGT – Em sua opinião, qual o principal desafio da docência?
Ísis – A partir da minha experiência, penso que em primeiro lugar tem esse momento de adaptação de quem era professora numa universidade privada e agora está em uma universidade pública internacional. Creio que estou conseguindo conciliar bem a parte de ensino, pesquisa e extensão. Fora esses elementos institucionais, tem aqueles elementos das interações humanas... pessoas distintas: alunos brasileiros, alunos brancos brasileiros, alunos negros brasileiros, alunos africanos, alunos africanos de guiné, alunos africanos de guiné da etnia tal.... Com olhar sendo provocado todo o tempo, aprendo demais sobre outras culturas, isso muda decisivamente o fazer acadêmico.
CGT – Você tem também uma carreira técnica como servidora do direito e até mesmo em organizações do campo de defesa de direitos, não é mesmo
Ísis – Sim, tudo começa porque fiz cursinho comunitário, cursinho popular prévestibular. Portanto, quando passo na faculdade de Direito, uma primeira aproximação que encaro é o de devolutiva da ação de movimento social.
Chegando na UNESP, segui como professora de química no cursinho, processo que foi muito importante para minha trajetória. Pensando no ativismo estudantil, fui uma das fundadoras do NUPE, Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão da UNESP Franca, um grupo autônomo, de amigos negros que ingressavam na universidade pública em um momento muito específico que antecede as políticas de ações afirmativas no Ensino Superior. Era incrível, tínhamos um programa de rádio na cidade, aos sábados de tarde, promovíamos palestras, seminários, entre outros eventos, que pautavam a produção de conhecimento de pesquisadores negros sobre temáticas raciais.
Depois de formada virei professora de cidadania da EducaAfro4 de Arujá, onde meus pais moram. Esta dobradinha academia e movimento social é uma constante em minha vida, a sustentação da minha atuação... continuar produzindo um saber que não é desconectado da ação política, de uma utilidade prática. Atuei por dez anos na Educafro, saí conselheira administrativa da mantenedora. Ao concluir minha graduação, presto concurso como técnica do Tribunal de Justiça em Arujá, foi esta ocupação que deu conta do custo de vida e viabilizou que tanto minha militância, quanto produção científica fossem autônomas, relacionadas aos meus objetivos e anseios, não ao salário. Já minha passagem em organizações do campo de defesa de direitos foi pela Conectas e a Ação Educativa7 . Participei de um programa na Conectas que abordava os mecanismos de atuação e proteção internacional dos direitos humanos para ativistas. Na Ação Educativa, atuei na unidade Ação na Justiça, responsável pela judicialização do direito humano à educação como estratégia de movimentos sociais. Foi quando aprendi a lógica das organizações sociais, suas principais diferenças em relação aos movimentos políticos e sociais que era a Educafro.
CGT – E o Supremo Tribunal Federal?
Ísis – Atuar no gabinete do Barroso8 foi uma experiência rica, aprendi demais sobre atuação em Tribunal Superior e suas especificidades. O cara é um professor, né? Aprendi mais do que no TJ SP.
CGT – Pensando em seu perfil, considerando os acúmulos desses distintos campos de atuação que integraram sua trajetória, o que você identificaria como singular em seu fazer profissional?
Ísis – Penso que a questão da minha etnicidade, das minhas origens familiares, do apoio incondicional ao meu crescimento e contribuições da minha família para que me tornasse quem sou hoje.
Uma vez em conversa com a professora Kimberlé, disse que queria ser como ela, uma professora do Direito, com uma produção acadêmica reconhecida. E ela me retorna dizendo que para que eu seja uma boa produtora de conhecimentos sobre gênero e raça no Direito não posso ambicionar ser como ela. Na verdade, Kimberlé pede para que seja única, e por isso seria melhor que ela. E é isso, se eu fosse igual a Kimberlé, o meu olhar sobre o feminismo negro americano nos Estados Unidos não conseguiria perceber muitas lacunas. Não conseguiria perceber o quão é importante observar o discurso das feministas decoloniais latinas. Muito menos o quanto a gente está recepcionando ferramentas não adaptadas e por isso elas estão sendo desvirtuadas, não é mesmo?
Demorei? Demorei! Mas ter entrado numa universidade pública e construir a minha trajetória neste espaço, ou virar fã do Axl Rose e conseguir me comunicar com uma grande docente, como a Kimberlé, em inglês e, por isso, ser convidada por ela para estudar nos EUA são oportunidades que passaram e eu consegui agarrar..., mas é muito difícil definir o que é singular, talvez só mais para frente eu consiga falar, pois creio ser um conjunto de coisas que torna cada pessoa diferente das outras ao redor.
CGT – Você encerra em 2019 seu Pós-Doutorado e agora integra o programa Martin-Flynn Global Law Faculty até 2021. Partilhe conosco um pouco mais sobre essas duas experiências e as possibilidades que se abrem.
Ísis – Eu tenho prazer na produção científica, de saberes e o pós-doutorado surgiu como um meio de institucionalizar a minha pesquisa/sistematização sobre interseccionalidade, a qual tenho a pretensão de publicar seja como artigo fora do país, seja como livro. Além disso, tem as disciplinas de Gênero e Etnia na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde sou professora colaboradora, que permite uma investigação mais vertical no tema, inclusive pensando nas aulas que ministro em parceria com a professora Eunice Prudente. O programa Martin-Flynn Global Law Faculty é um curso de primavera que ministro nos Estados Unidos resultado desse novo momento de dedicação exclusiva a vida acadêmica, em função também do lugar que ocupo na Unilab.
CGT – Após todos esses feitos, o que está em seu horizonte de atuação acadêmica e política daqui por diante?
Ísis – Descansar [risadas]! Esse primeiro ano na Unilab, foram muitas palestras, o projeto de extensão que é gigantesco, trazer pessoas para a universidade, como meu colega que era diplomata na Nigéria, ajudar a professora Eunice, aula de direito internacional, aula de gênero e relações internacionais... definitivamente, descansar foi um projeto meio fracassado! Chegou uma hora que minha hiperatividade me desconcentrou da meta que tinha quando mudei para Salvador... CGT – Quais são suas expectativas no campo do direito e gênero? Ísis – A minha grande expectativa, até por conta da minha produção de pesquisa, agora, é avançar na produção da teoria do direito, ampliar cada vez mais o número de cientistas que vão pensar e produzir justiça racial. Estruturar uma teoria transnacional do debate de interseccionalidade, ou uma teoria de interseccionalidade que se sedimente no Brasil, que não seja a transposição da perspectiva do EUA como tem acontecido, sem a coerência da abordagem teórica do feminismo negro. E, claro, curtir a vida. Ela, para nós negros, é muito curta.
NOTAS
1 STEM é a sigla em inglês para Science, Technology, Engineering e Mathematics (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, em português) 2 A Faculdade de Direito da UCLA, também conhecida como UCLA Law, é uma das 12 escolas profissionais da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. A UCLA Law vem sendo constantemente classificada como uma das melhores escolas de direito dos Estados Unidos. 3 De origem africana, 'griô' é um guardião da memória da história oral de um povo ou comunidade. 4 Pré-Vestibular comunitário, que atua pela inclusão da população negra e empobrecida no Ensino Superior. Tem sido um ator relevante na construção de políticas públicas de ações afirmativas, como cotas nas universidades. 5 Em 2002, Alyne da Silva Pimentel Teixeira – mulher negra, 28 anos, era casada e mãe de uma filha de cinco anos – no sexto mês de gestação, acabou falecendo em decorrência de hemorragia digestiva resultante de negligência médica. Após sucessivos erros médicos, ausência de leitos e violência obstétrica, Alyne se tornou um ícone da luta de mulheres negras por direitos sexuais e reprodutivos. O Estado brasileiro foi responsabilizado, em 2011, pela Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw), órgão ligado à ONU, por não cumprir seu papel de prestar o atendimento médico adequado desde o início das complicações na gravidez de Alyne. Para o órgão, a assistência à saúde uterina e ao ciclo reprodutivo é um direito básico da mulher e a falta dessa assistência consiste em discriminação, por tratar-se de questão exclusiva da saúde e da integridade física feminina. 6 Ingriane Barbosa Carvalho de Oliveira, também mulher negra, com 31 anos, morreu por infecção generalizada após recorrer a um abortamento inseguro no qual um talo de mamona foi introduzido em seu útero para interromper uma gravidez de aproximadamente quatro meses, em Petrópolis, Rio de Janeiro. Seu caso foi referência em agosto de 2018, durante audiência pública que discutiu, no Supremo Tribunal Federal (STF), a descriminalização do aborto até as doze semanas de gestação por livre decisão da mulher. 7 Organizações de projeção nacional, com sede em São Paulo, que atuam no campo de defesa dos direitos humanos. 8 Luís Roberto Barroso é um jurista, professor e magistrado brasileiro. É ministro do Supremo Tribunal Federal.
https://periodicos.utfpr.edu.br/cgt/article/view/9494/6424