José Roberto Goldim
A reprodução humana tem trazido inúmeros desfios à reflexão bioética, pois é uma área onde o esforços de desenvolvimento e aplicação de conhecimentos aparentemente se contradizem. A intervenção médica na reprodução humana assumiu um importante papel na segunda metade do século 20, com a introdução da pílula anticoncepcional e das técnicas de reprodução assistida. Técnicas e procedimentos são buscados e desenvolvidos, por lado, para impedir a reprodução, por meio da anticoncepção, para quem tem esta possibilidade, e por outro lado, para viabilizar a reprodução de quem tem algum impedimento, por meio da reprodução assistida.
Em ambas situações a caracterização do momento em que o novo ser humano passa a ser reconhecido como pessoa, como detentor de dignidade, é fundamental. Atualmente podem ser utilizados dezenove diferentes critérios para caracterizar esta situação.
Um assunto sempre importante, pelos seus aspectos relacionados a ética, a moral e questões legais, é o aborto. Independentemente da questão legal, existem nesta situação conflitos entre a autonomia, a beneficência, a não-maleficência e a justiça da mãe, do feto e do médico. Os julgamentos morais sobre a justificativa do aborto dependem mais das convicções sobre a natureza e desenvolvimento do ser humano do que das regras e princípios. Muitas vezes a discussão é colocada apenas sob o prisma reprodutivo quando, na realidade, deveriam incluir o acesso ao sistema de saúde e os impedimentos legais para a realização do procedimento de interrupção da gestação. Um dos desafios desta discusão é não permitir que este tema seja banalizado em suas consequências pessoais e para terceiros. Sem dúvida alguma, o aborto é um dos temas mais difíceis e polêmicos da reflexão em Bioética.Em junho de 2011 foi revelado o dado de que anualmente cerca de 50 gestações resultantes de procedimentos de reprodução assistida realizados na Inglaterra são interrompidas a pedido da mãe. Metade destas mulheres justificam o seu pedido de interrupção pela separação do casal ou por medo da maternidade. As demais motivações alegadas incluem as malformações fetais e a Síndrome de Down, que podem estar associadas aos próprios processos de reprodução assistida. Inúmeras questões éticas podem ser geradas por este tipo de decisão. O respeito a autonomia das pessoas passa pelo reconhecimento da possibilidade de reconsiderarem suas decisões, pelo direito de arrependimento. A questão é o confronto desta decisão com a consequencia associada à morte do feto. Outro ponto importante de discussão, desde o ponto de vista da justiça, é o custo gerado, em um sistema de saúde público, de um procedimento que foi solicitado por uma pessoa ou casal que após solicita a sua reversão. A alocação de recursos na área da saúde se baseia predominantemente na necessidade das pessoas, mas neste caso a decisão é fortemente influenciada pelo desejo associado.
O desejo também tem sido utilizado para propiciar ou impedir a reprodução. Um exemplo disto foi uma rifa, com sorteios mensais,lançada na Inglaterra, a um custo unitário de 20 libras, que tem como prêmio um montante de 25000 libras para serem utilizadas em procedimentos de reprodução assistida em uma clínica de reprodução assistida inglesa. Por outro lado, na Índia, outro tipo de "sorteio reprodutivo" também está sendo realizado, só que no sentido inverso. O governo do estado indiano do Rajastão está oferecendo a possibilidade de ganhar batedeiras, televisores, motocicletas e até mesmo automóveis para as pessoas que aceitarem ser esterilizadas. A mesma estratégia com fins opostos. No caso ingles o desejo reprodutivo gera a busca do prêmio, que é a realização do procedimento, mas no caso da Índia é a realização do procedimento que gera a possibilidade de atingir a um desejo de um bem de consumo.
As tentativas de realizar procedimentos de reprodução medicamente assistida foram iniciadas no final do século XVIII. Porém, somente em 1978 estes procedimentos ganharam notoriedade com o nascimento de Louise Brown, na Inglaterra, que foi o primeiro bebê gerado in vitro. Em função da repercussão política e social o Governo Inglês, em 1981, instalou o Committee of Inquiry into Human Fertilization and Embriology, que estudou o assunto por três anos. As suas conclusões foram publicadas, em 1984, no Warnock Report. Neste mesmo ano, nascia na Austrália um outro bebê, denominado de Baby Zoe, que foi o primeiro ser humano a se desenvolver a partir de um embrião criopreservado.
Em 1987 a Igreja Católica publicou um documento - Instrução sobre o respeito à vida humana nascente e a dignidade da procriação - estabelecendo a sua posição sobre estes assuntos.A partir de 1990, inúmeras sociedades médicas e países estabeleceram diretrizes éticas e legislação, respectivamente, para as tecnologias reprodutivas. A Inglaterra, por exemplo, estabeleceu os limites legais para a reprodução assistida em 1990, com base nas proposições do Warnock Report.No Brasil, Conselho Federal de Medicina, através da Resolução CFM 1358/92, instituiu as primieras Normas Éticas para a Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida, em 1992. Em 2010, estas Diretrizes foram atualizadas pela Resolução CFM 1957/2010.
Os aspectos éticos mais importantes que envolvem questões de reprodução humana assistida são os relativos à utilização doconsentimento informado; a seleção de sexo; a doação de espermatozóides, óvulos, pré-embriões e embriões; a comercialização de gametas; a seleção de embriões com base na evidencia de doenças ou problemas associados; a troca de embriões no procedimento de tranferência; a maternidade substitutiva; a redução embrionária; a clonagem; pesquisa e criopreservação (congelamento) de embriões, incluindo a produção de quimeras humanas.
Um importante questionamento que deve ser amplamente discutido é o da utilização destas técnicas de reprodução medicamente assistida em casais sem problemas de infertilidade. Um demanda já encaminhada a vários serviços é a utilização para fins de proteção do parceiro de uma mulher portadora do vírus HIV. A utilização de técnicas de reprodução seriam utilizadas com o objetivo de proteger o parceiro de uma eventual contaminação e permitiria ao casal ter filhos. Esta situação, no passado quando não existiam terapêuticas adequadas nem profilaxia para o bebe, era formalmente contra-indicada, pois seria expor um terceiro a um grande risco então existente. Com o desenvolvimento atual do tratamento o risco de transmissão vertical foi muito reduzido, permitindo uma rediscussão deste tema por parte dos profissionais, portadores, parceiros e Comitês de Bioética.
Uma área bastante complexa é a que envolve aspectos reprodutivos em uniões homoafetivas. Casais homosexuais femininos podem solicitar que um serviço de reprodução assistida possibilite a geração de uma criança, em uma das parceiras utilizando sêmen de doador. O médico deve realizar este procedimento equiparando esta solicitação a de um casal heterosexual ? Ou deve ser dada uma abordagem totalmente diversa ? Os fatores culturais têm impacto nesta decisão? A própria questão de adoção de crianças por homosexuais tem sido admitida em vários países, inclusive no Brasil.
As reflexões utilizadas na reprodução medicamente assistida podem ser transpostas às questões de adoção (reprodução legalmente assistida) ? A adoção, com as suas inúmeras maneiras de realização, desde as legais ou oficialmente mediadas pelo Estado até as realizadas de maneira informal e irregular, comporta um grande questionamento ético. A seleção de crianças por parte dos futuros pais adotivos, o estabelecimento de critérios sociais por parte das autoridades, a invasão de privacidade que os pretendentes sofrem em suas vidas, com a finalidade de preservar possivelmente o melhor bem-estar para acriança adotada, são algumas questões que merecem reflexão.
Outra questão que está propondo desafios éticos é do prosseguimento de gestações em mães com critério de morte encefálica. Já existem casos relatados, no Brasil e em outros países, de situações onde a paciente ou seus familiares, solicitam que todas as medidas de suporte vital sejam utilizadas para que a gestação possa resultar em um bebe viável. As equipes médicas podem atender a um demanda destas ? Como fica o critério encefálico de morte nestas situações ? Esta paciente, já considerada morta, continua sendo paciente, ou o seu bebe é que assume este status ? Neste caso, quando que a mãe será considerada morta ? Estas questões merecem ser refletidas e discutidas nos seus aspectos mais amplos.
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