quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O Sangue, os afectos e a imitação da Natureza


Por Guilherme de Oliveira
(Centro de Direito da Família da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra)

do site  https://woc.uc.pt/fduc/getFile.do?tipo=2&id=3405 


            O sangue foi sempre o factor primordial de ligação entre as pessoas (1), e mesmo quando parecia que se regulavam os afectos, era o sangue como critério superior de pertença que estava em causa (2); ou então os afectos tinham de referir-se a um vínculo de sangue porque sem isto não adquiriam um relevo suficiente (3); mas o Direito não desconheceu os afectos (4) que, aliás, têm conhecido uma valorização social crescente (5); porém, a nossa condição de animais provenientes de reprodução sexuada impele-nos a imitar a Natureza (6).

1. O sangue foi sempre a expressão privilegiada dos vínculos entre as pessoas

“O sangue é a vida”[1], e quem dá o sangue dá a vida[2].

As ligações mais próximas que o Direito reconhece são as relações de filiação – de maternidade e de paternidade.
a) Para o Direito, a mãe é a mulher que tem o parto – a mulher que gera, que dá o sangue. É por isto que são muito estranhas ao nosso sistema jurídico as negociações particulares acerca da maternidade, como os contratos em que uma mulher se compromete a gerar um filho e a entregá-lo a outra mulher que pretende desempenhar o papel social de mãe. O nosso Direito terá dificuldades em aceitar esta maternidade voluntária, contratual, porque o contrato não costuma ser considerado um fundamento suficiente para o vínculo de maternidade, um fundamento equivalente ao vínculo de sangue. Adiante voltarei a este assunto.
            b) Também é o sangue que estabelece o vínculo de paternidade. O pai jurídico é o pai biológico, o pai que deu o sangue, a vida[3].
Relativamente ao pai dentro do casamento, num famoso Assento de 1938, o Supremo Tribunal de Justiça, afirmou, numa frase saborosa, que o interesse do filho não era, necessariamente, o de manter o estatuto de “filho legítimo”, quando esse estatuto contrariava a verdade dos factos (biológicos)  sobre a paternidade; o interesse do filho seria antes o de “pertencer ao pai cujo é”.
Quantos ao pai fora do casamento, só na aparência é que o vínculo de paternidade resulta de uma simples de vontade do pai. De facto, se o vínculo se constitui pela declaração de perfilhação, a verdade é que a perfilhação não é um acto de conteúdo voluntário, de tal modo que um perfilhante possa resolver livremente que vai ser pai, ou escolher o filho que  vai perfilhar; a perfilhação é apenas uma forma simples de revelar um vínculo biológico que existe, de fazer a sua prova por um meio simples e pacífico. Por esta razão é que a perfilhação pode ser impugnada a todo o tempo, por qualquer interessado, se ela não se limitou a expressar a realidade biológica, como lhe competia[4].
Estas ideias costumam exprimir-se, ainda hoje, com a afirmação de que o nosso direito é “biologista” e, de facto, todas as acções de filiação procuram determinar a relação biológica que fundamenta os vínculos.
O sangue, pois, tem definido a pertença, o vínculo.

c) Aliás, para o Direito, até há pouco tempo, a Família era, exclusivamente, a Família consanguínea. O efeito jurídico principal do parentesco – o direito de herdar – era tendencialmente reservado aos parentes de sangue. De facto, o cônjuge, no nosso Direito, ainda há vinte e cinco anos ocupava apenas o quarto lugar na lista dos sucessíveis, a seguir aos descendentes, aos ascendentes, e aos irmãos e sobrinhos do falecido[5]. A importância da família conjugal – uma importância capaz de suplantar a família consanguínea – é coisa recente no Direito português e europeu.
            Além do predomínio das ligações consanguíneas, o direito civil do século dezanove ainda dava relevância jurídica aos parentes colaterais até ao décimo grau – o que significa dar relevo jurídico a primos afastados, que se designariam, na linguagem corrente, por bisnetos de primos direitos.



2. Quando parece que os afectos têm relevo jurídico... afinal eles referem-se a vínculos de sangue, que são o verdadeiro alvo da regulação jurídica


a) Foi ainda o valor do sangue como critério de pertença que justificou as reacções veementes do Direito contra a “confusão de sangues” que resultaria quer do adultério quer das segundas núpcias celebradas logo a seguir à extinção do primeiro casamento.
O adultério    ad alterius thorum ire  foi considerado crime até há pouco tempo[6] e, como elemento típico de uma previsão criminal, suscitava a necessidade de uma definição rigorosa. Os penalistas consideravam adultério “a cópula entre mulher casada e um homem diverso do seu marido” – “só a cópula e não outros actos” pois “dos outros actos não pode provir a adulteração do sangue…”[7]. Além de outras razões do foro da decência pública, tratava-se de evitar a adulteração do sangue da mulher e do filho que seria atribuído ao marido sendo, afinal, filho biológico de outro homem. Só podem ser atribuídos ao marido os filhos do seu sangue.

b) As segundas núpcias da mulher, por seu turno, só podem ser celebradas trezentos dias depois da extinção do primeiro casamento. A razão deste impedimento impediente é semelhante. Se a mulher tiver um filho dentro dos trezentos dias posteriores à morte do marido e, simultaneamente, mais do que cento e oitenta dias depois do segundo casamento, a lei faz presumir a paternidade dos dois maridos, sendo certo que era muito difícil esclarecer  qual era a verdadeira paternidade – a paternidade biológica. O impedimento de prazo internupcial visava, precisamente, evitar esta turbatio sanguinis de que podia resultar uma atribuição de paternidade a um marido que não era o real progenitor.
Em ambos os casos – de adultério e de segundas núpcias – o risco a evitar era o de uma vinculação jurídica familiar entre pessoas que não eram do mesmo sangue.


3. ...ou os afectos têm de referir-se a um vínculo de sangue, e exprimir-se através dele, para acrescentar a sua intensidade

a) Lembremos uma outra forma universal e antiga de vinculação – a irmandade pelo sangue – que se constituía entre dois indivíduos que bebiam o sangue um do outro ou o trocavam através da junção de duas feridas abertas. A irmandade de sangue alargava, para além da família ou de outro grupo básico, os vínculos pessoais,  os deveres de lealdade e de protecção recíprocas    de solidariedade, afinal – imitando o paradigma dominante da consanguinidade.

b) E como esquecer – mesmo que esteja para além do Direito do Estado – a vinculação que resulta da comunhão em Cristo? “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, vive em mim e eu vivo nele” – afirma-se no  Evangelho segundo S. João[8]. Também aqui se o sangue é a referência superior da vinculação.

            c) Na cultura e na linguagem populares, por outro lado, foi sempre comum a ideia de que o amor familiar mais intenso e firme é o amor de pai e o amor de mãe – isto é, o amor decorrente do vínculo de sangue, e presumido por ele. O sentimento maior esteve sempre implícito na ligação consanguínea do primeiro grau; e a convicção de que as crianças ficam o melhor possível quando são entregues aos seus pais biológicos não é mais do que um corolário desta ideia.

           
4. Os afectos – por si sós – tiveram uma expressão limitada, no Direito

Na verdade, os afectos raramente foram valorizados para fundamentar, ou densificar, uma relação jurídica[9].
a) É conhecido um exemplo, que se encontra  na regra antiga sobre a designação do tutor pelo tribunal – que deverá escolher entre parentes, afins, ou pessoas que tenham cuidado ou estejam a cuidar do menor, ou ainda entre as pessoas que por ele tenham “demonstrado afeição” (art. 1931.º CCiv). Neste caso, o afecto serve como critério de afirmação de um vínculo parafamiliar novo – o vínculo de tutela.

b) Mas, sem dúvida, a maior expressão autónoma de um vínculo baseado nos afectos é o vínculo de adopção plena.
            A adopção esteve desaparecida dos sistemas europeus, durante séculos; regressou ao direito português com o código civil de 1966. Por definição, não assenta sobre vínculos biológicos – é mesmo constituída em oposição aos progenitores da criança adoptada, cujos laços se rompem definitivamente e são substituídos pelos novos laços adoptivos.
            Certamente por força de um cuidado particular que as sociedades modernas dispensam às crianças, e certamente também por força de uma escassez nítida de nascimentos, a adopção tornou-se a expressão mais clara de um vínculo familiar exclusivamente baseado no cuidado sócio-afectivo.
            A circunstância de a adopção se impor contra a família biológica[10] tem acrescentado a ideia de que os afectos são um suporte tão firme como a descendência biológica; e até mais firme e conveniente, pois ela constitui o meio de retirar a criança do perigo em que a sua família biológica a colocou, para lhe dar uma vida mais segura. 
Daqui até se desvalorizar os vínculos biológicos, considerados perigosos ou alheios aos afectos... o passo pode ser curto, por vezes. E é sugestiva a tendência para descartar os procedimentos constitutivos legais, para reduzir a legitimidade de uma adopção à mera prova dos afectos, sobretudo quando esta é confortada por uma situação de facto consumado.
Note-se, porém, que apesar da exaltação dos afectos – elevados à categoria de fenómeno social e mediático – é curioso verificar como, nas palavras da lei, a adopção ainda mantém uma clara referência ao paradigma biológico. Diz o art. 1974.º: “A adopção ... será decretada quando ... seja razoável supor que entre o adoptante e o adoptado se estabelecerá um vínculo semelhante ao da filiação”.
            Além disto – e muito significativamente – registe-se o movimento amplo no sentido de os adoptados conhecerem a identidade dos pais biológicos, movimento que veio a alargar-se aos filhos nascidos por reprodução medicamente assistida com recurso a um dador de gâmetas[11]. Os E.U.A. e os países da Europa do norte aceitam esta faculdade como o exercício de um verdadeiro “direito ao conhecimento da ascendência biológica”; e a doutrina portuguesa também o vem sustentando claramente[12].
Embora, nestes casos, a pertença seja ditada pelos afectos – quer dos adoptantes, quer do marido ou companheiro da mãe, o valor do sangue de algum modo ainda persiste; mesmo que não se admita que o filho retire daquele conhecimento a constituição, ou a recuperação, de um verdadeiro laço jurídico com o progenitor, é significativo que o direito a conhecer a identidade do progenitor seja entendido como um direito fundamental dos cidadãos, decorrente dos imperativos constitucionais da defesa da integridade moral e do livre desenvolvimento da personalidade.


5. A importância dos afectos têm crescido

            O valor de pertença que o sangue continha não se perdeu de todo nos sistemas jurídicos modernos, mas os vínculos de consanguinidade passaram a sofrer a concorrência dos afectos como critério de vinculação.
             
a) Foi uma família conjugal baseada em afectos que tomou o lugar que os sistemas jurídicos reservavam antes para a família consanguínea. O laço matrimonial equiparou-se, ou tomou mesmo a primazia, relativamente ao sangue na produção de efeitos sucessórios, pois o cônjuge ascendeu à primeira classe de sucessíveis, com os descendentes; à segunda, com os ascendentes; à terceira, sozinho, postergando todos os colaterais.
           
b) A própria formação do vínculo matrimonial esteve sujeita, desde o século dezasseis, à autorização dos pais e da família consanguínea[13]; como acontece ainda, em parte, no direito português. Mas a tendência instalada tem vindo no sentido de libertar as vontades dos nubentes dos constrangimentos impostos pelos parentes de sangue.
           
c) Por outro lado, a erosão do valor social da família consanguínea tem sido acentuada pelo Estado-prestador-de-serviços, que tem aumentado as ajudas directas à família conjugal, urbana, providenciando abonos de família, acolhimento de crianças, etc., ao mesmo tempo que presta auxílio aos indivíduos considerados isoladamente, aliviando a tarefa da família consanguínea que outrora estava onerada com o cuidado dos doentes e dos mais pobres, ou mais velhos.
           
d) A relevância crescente da pequena família conjugal dos afectos, em detrimento da família consanguínea, vê-se, ainda, na circunstância de se estender a tutela jurídica à pequena família mesmo que ele não seja verdadeiramente “conjugal” – como na tutela da união de facto; e mesmo que essa pequena família não cumpra sequer a função reprodutiva tradicional, mesmo que não acrescente a consanguinidade – como na tutela das uniões de facto (ou dos casamentos) de homossexuais.

            e) Por outro lado, os estudos sociológicos têm revelado a fragilidade daquela ideia pré-concebida de que os pais biológicos amam e cuidam necessariamente. Na verdade, sabe-se hoje que os maiores danos causados aos mais frágeis ocorrem dentro da família, e são praticados pelos progenitores ou por outros parentes. É por esta razão que se tornou mais fácil reconhecer as situações de perigo que resultam da falta de cuidados e de “afeição”[14] imputáveis aos familiares consanguíneos, para limitar os poderes dos progenitores, ou chegar ao ponto de esvaziar o seu estatuto, privando-os das responsabilidades parentais, e entregar as crianças e jovens a terceiras pessoas.

f) Uma outra situação que demonstra esta supremacia dos vínculos afectivos ou sociais sobre o vínculo biológico é a que surge na sequência de uma dação de esperma, no quadro da procriação medicamente assistida. Os sistemas jurídicos de tradição latina, e explicitamente o direito português[15], recomendam o anonimato do dador para que não seja possível conhecer a sua identidade[16], e muito menos estabelecer juridicamente a paternidade do dador. Assim, o pai jurídico é o homem que desempenha o papel social e afectivo de pai – o homem que dispensa os cuidados e os afectos. É o seu nome que fica a constar do registo de nascimento do filho; e a lei proíbe mesmo que este homem impugne a paternidade[17], desde que a sua intervenção tenha sido voluntária e livre.

g) Os afectos – ou melhor: uma situação de convivência estabilizada entre duas pessoas – levou sempre o Direito francês a estabelecer restrições à impugnação de vínculos de filiação. Ainda hoje, o grupo de pessoas legitimadas para propor uma acção de impugnação da paternidade do marido torna-se restrito quando se registou uma posse de estado de filho; e o prazo de caducidade passa de dez para cinco anos (art. 333.º Code Civil). Ou seja: ainda é possível procurar a verdade biológica e mostrar que o marido da mãe não é o pai; mas a existência de uma posse de estado de filho limita muito essa possibilidade, para se proteger os laços que de facto se formaram e se alimentaram, no quotidiano das pessoas envolvidas.
Também o Código civil espanhol se mostra sensível às situações de facto consolidadas. Na verdade, o regime da impugnação da paternidade do marido é diferente consoante haja, ou não haja, posse de estado de filho. Na verdade, se não houver posse de estado, o direito de impugnação pelo filho, em lugar de estar sujeito ao prazo de um ano, passa a ser imprescritível (art. 137.º)[18]. Por outro lado, se não houver posse de estado de filho, qualquer pessoa prejudicada pela existência do vínculo de filiação pode impugná-lo; enquanto, se houver posse de estado, só o marido, o filho, ou um herdeiro legitimário pode exercer o direito de impugnar (art. 140.º).
Embora o Direito português não reconheça esta diferença – a de o filho beneficiar ou não de posse de estado relativamente ao marido da mãe – parece razoável afirmar que a existência de um vínculo social, afectivo, entre o filho e o marido da mãe – ainda que desprovido de um suporte biológico de descendência – deve ser tido em conta no modo de regular os direitos de impugnar a paternidade presumida[19]. Por isso, ao discutir-se – como se fez recentemente – o problema da eventual inconstitucionalidade dos prazos de caducidade nas acções de investigação da paternidade, e ao concluir-se pela resposta afirmativa, não pareceu razoável transpor, pura e simplesmente, a argumentação e a conclusão, para as hipóteses de impugnação de vínculos estabelecidos, como o vínculo entre o filho e o marido da mãe. Neste sentido, pronunciou-se o Procurador-Geral-Adjunto no Tribunal Constitucional – e o próprio Acórdão do Tribunal, num caso recente[20]  afirmando que “o único interesse que poderia invocar-se em contraponto ao direito fundamental do filho a conhecer e determinar juridicamente a sua verdadeira paternidade biológica seria o da ‘harmonia’ e estabilidade da vida e da família conjugal”.  

h) Um passo ainda mais nítido – absolutamente nítido – é aquele que tem vindo a ser tentado pela jurisprudência e pela doutrina brasileiras, no sentido de poder fundamentar um novo vínculo de filiação na pura e simples verificação dos afectos que unem dos indivíduos, como pai ou mãe, e filho. Mais ainda: começa a admitir-se que se possa instaurar uma acção de estabelecimento do vínculo de fraternidade, com base na prova de uma amizade fraternal[21].
Esta ideia é sedutora – quadra bem com a sentimentalização progressiva das relações individuais, é punitiva relativamente aos familiares consanguíneos que não honram a tradição do afecto inevitável e garantido entre  parentes, e resolve de um modo intenso e satisfatório os casos em que se quer premiar os afectos e proteger crianças através da constituição de um vínculo jurídico com uma solidez equivalente à dos vínculos de sangue.
Mas existem dificuldades consideráveis para a aceitação deste “critério sócio-afectivo” para o estabelecimento de laços familiares, para além da novidade que ele nos traz. De facto, os países europeus – e sobretudo alguns como Portugal – abandonaram há trinta anos um Direito da Filiação que guardava muito espaço para soluções desigualitárias dedicadas às várias categorias de filhos (legítimos, ilegítimos simples, ilegítimos adulterinos, ilegítimos incestuosos) com base em justificações de índole cultural que entretanto tinham perdido valor (favorecimento do matrimónio, preferência pela vontade do pai). O Direito da Filiação nascido em 1977 pretendeu caminhar no sentido de soluções igualitárias, fundadas em dados objectivos – nos dados da Biologia – de tal modo que os vínculos jurídicos de filiação dependessem exclusivamente dos laços de progenitura, e coincidissem com eles. É por isto que se diz que o Direito da Filiação português é “biologista”. E foi este pendor “biologista”, confortado pela crescente praticabilidade que lhe foi emprestada pelos progressos laboratoriais, que permitiu eliminar um sistema que parecia rígido, desigualitário, e injusto. Foi este carácter “biologista” que veio admitir, com liberdade, a destruição de vínculos formais que não tinham substância efectiva, o estabelecimento de outros que até aí estavam injustamente proibidos, e a relevância livre de provas científicas comprovadas.
Numa palavra, é o próprio fundamento “biologista” do nosso Direito da Filiação – a procura da verdade biológica da Filiação – que agora estremece em confronto com este fundamento concorrente que é a afirmação da “verdade afectiva”.

i) Num outro domínio delicado – o do transsexualismo – o critério do sangue também não é determinante. Pertencer ao género feminino ou ao género masculino não depende estritamente de se possuir o cromossoma X ou o cromossoma Y[22]. Tem-se admitido que o chamado “sexo psicológico” é o critério decisivo – o indivíduo deve poder adequar a sua vida e o seu estado jurídico ao sexo que emocionalmente entende que é o seu. Por outras palavras, também aqui são as emoções que prevalecem e que ditam a vinculação do indivíduo a um género diferente daquele onde esse indivíduo caberia por força das leis da genética.

            j) Um exemplo interessante da moderna concorrência entre os vínculos de sangue e os laços afectivos regista-se na sequência dos divórcios e na crescente formação de famílias recombinadas em que os filhos biológicos de progenitores ausentes convivem com adultos que desempenham os papéis sociais e afectivos de pai e de mãe. É certo que esta relação convivência não substitui – formal e juridicamente – o vínculo de filiação com o progenitor ausente, e neste sentido o sangue continua a ser o critério determinante; mas nota-se, no contexto dos sistemas jurídicos europeus, uma ansiedade no sentido de se reconhecer a importância da relação afectiva entre o filho e o parceiro da mãe ou do pai e de se procurar traduzir essa importância num verdadeiro estatuto jurídico dos padrastos e das madrastas[23].

            l) Por último – embora não esteja aqui em causa a concorrência dos afectos com um vínculo de sangue – nota-se que a importância dos afectos no vínculo matrimonial  transfigurou o próprio acto do casamento, em dois aspectos essenciais.
Em primeiro lugar, o casamento deixou de ser um acordo (patrimonial) entre famílias.  O momento culminante da influência das famílias no espaço europeu ocorreu no século dezasseis, quando se estabeleceu a necessidade de amplas autorizações dos familiares para a celebração do matrimónio – no meio de tamanha intervenção familiar, pouco espaço devia restar para a vontade dos dois nubentes. Mas em breve o Romantismo veio a transformar progressivamente este quadro, atribuindo um relevo cada vez maior à pessoa dos nubentes, e destacando a família nuclear como uma realidade social emergente.
O casamento romântico, porém, ao mesmo tempo que exaltava a individualidade e os afectos dos nubentes, conservava a intensidade de uma vinculação jurídica contratual, assente na imposição de deveres contratuais firmes, e  na previsão de condições apertadas para a desvinculação unilateral.
Estes último aspecto tem sido posto em causa por uma sentimentalização exacerbada, que tende a retirar do acordo de casamento aqueles ingredientes característicos da sua condição contratual. De facto, a “norma” social contemporânea tem afastado o acordo de casamento das suas raízes ao ponto de se poder perguntar se o Direito e os seus instrumentos tradicionais ainda são aptos para regular este acordo peculiar. Fragilizados os deveres recíprocos dos cônjuges – que vão desaparecendo subrepticiamente dos códigos civis – rejeitada uma avaliação da culpa e a responsabilização civil pelo incumprimento, liberalizada a desvinculação unilateral, pode perguntar-se o resta para a intervenção jurídica no (ainda) chamado contrato de casamento[24].
E tudo por causa da afirmação crescente dos afectos e dos desafectos...


6. Os limites impostos pela imitação da Natureza – dois indivíduos de sexo oposto

                                                                                                Mãe há só… duas?

            a) Há vários anos que se vem desenhando um conflito entre mães geradoras e mães genéticas – que é, afinal, uma versão moderna da turbatio sanguinis… Os primeiros casos de maternidade de substituição não suscitaram este conflito porque as mães hospedeiras contribuíram com a gestação e com o óvulo, foram simultaneamente mães gestadoras e mães genéticas.
Mas adivinhava-se o dia em que a separação possível destas duas condições havia de desencadear o conflito[25]. O nosso direito – como todos os outros – elaborado antes de serem conhecidas estas possibilidades abertas pela Medicina da Reprodução, estabelece pacificamente que a mãe jurídica é a mulher que dá à luz. Os legisladores, e a tradição jurídica, não sabem como lidar com esta realidade nova em que a mãe geradora não é a mãe genética.
Na verdade, é difícil optar por qualquer das soluções.
A solução tradicional – a do direito português e dos outros sistemas jurídicos – privilegia a mãe gestadora. Esta solução tem a vantagem da tradição e de ser, portanto, facilmente compreendida; por outro lado, dá uma certeza confortável sobre a identidade da mãe, já que o parto é um facto ostensivo, fácil de provar; além disto, a gestação cada vez é considerada mais importante no processo biológico da maturação fetal, isto é, a genética não é tudo e hoje valorizam-se as trocas biológicas entre a gestante e o feto.
A solução contrária – a que daria preferência à mãe genética – apoia-se nos progressos vertiginosos e entusiásticos da genómica, a mais promissora área científica dos tempos que correm; por outro lado, é razoável supor que, em casos normais, a mãe gestadora não intervém no processo para vir a ter um filho seu, mas sim para gerar um filho para outra mulher. 
Qual delas é mais mãe? Talvez nunca se consiga dar uma resposta satisfatória a esta pergunta, de um ponto de vista da participação biológica das duas mulheres.
Se assim for – se não conseguirmos escolher quem é mais mãe – talvez venha a ensaiar-se uma resposta simultaneamente fácil e insólita: talvez possamos considerar que a mãe... são as duas. A resposta seria fácil, obviamente, por que nos dispensaria de apurar mais a distinção entre os estatutos das duas mulheres; ao mesmo tempo que poderíamos dispor, relativamente a ambas, de convincentes argumentos biológicos. A resposta também seria insólita, naturalmente, porque a mente humana está condicionada pela reprodução sexuada, que envolve a participação de um macho e de uma fêmea.
A Natureza de que fazemos parte – por vezes parece útil notá-lo – dificilmente autoriza uma forma de raciocinar que comporte a existência de duas mães biológicas a tomar parte no mesmo processo de fecundação e de reprodução. Talvez por esta razão não se consiga dar uma resposta assim, embora ela se funde em conhecimentos científicos e seja capaz de resolver o problema que enfrentamos.

            b) Suponho que será por razões semelhantes que não tem sido fácil resolver a questão da adopção por casais homossexuais.
            Neste assunto, podem caber dois tipos de casos: um deles, será o caso em que dois adultos do mesmo sexo pretendem adoptar uma criança; o outro, será o caso em que um dos adultos é o progenitor  da criança, pelo que só o segundo adulto tem a pretensão de adoptar. Creio que o primeiro caso corresponde, mais frequentemente, à hipótese de serem dois homens a formular a pretensão; enquanto o segundo caso corresponde, em regra, à hipótese de o casal homossexual ser composto por duas mulheres.
            A dificuldade que tem sido sentida em muitos sistemas jurídicos não é idêntica àquela que apresentei antes – não se trata aqui de escolher qual das mães biológicas é mais mãe do que a outra, ao ponto de se tornar a mãe jurídica; não temos de escolher entre duas figuras concorrentes do ponto de vista biológico. Aqui, a questão é a de saber se conseguimos aceitar a coexistência de dois pais jurídicos, ou de duas mães jurídicas – quer se trate de duas paternidades sócio-afectivas, quer se trate de uma maternidade biológica e uma maternidade sócio-afectiva.
            Mesmo quando conseguimos admitir que a criança ficaria suficientemente protegida – que a adopção a colocaria numa situação muito mais favorável do que aquela em que porventura se encontra – resta a dificuldade que resulta da rejeição do modelo natural que nos sugere um macho e uma fêmea. É possível que outros sistemas jurídicos sigam aqueles que já superaram esta dificuldade cultural – Canadá, Espanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suécia, Islândia, Noruega, Inglaterra, Alemanha – mas ainda há um caminho a percorrer.

            c) Observemos agora uma hipótese também difícil, por razões parecidas.
            Refiro-me ao problema da admissibilidade do recurso às técnicas de reprodução assistida por mulheres sozinhas. Embora se possa dizer que não se trata agora de uma questão da relevância dos afectos – mas apenas de eliminar o progenitor masculino dentro do quadro jurídico normal da filiação – a verdade é que, por um lado, não se prescinde dos gâmetas masculinos, embora estes permaneçam no anonimato; por outro lado, alega-se que a mulher não quer partilhar responsabilidades parentais com um pai. Sendo assim, afinal, a questão reconduz-se a um problema de afectos – de recusa de partilha dos afectos relativamente ao filho.
Alguns sistemas jurídicos admitem o acesso das mulheres sós; o direito português não admite. Costuma justificar-se esta solução com a ideia de que os filhos costumam ter um pai e uma mãe; que é preciso provar as vantagens que se obtém com a eliminação de um dos responsáveis.
As objecções tinham mais força há uma dezenas de anos quando eram poucas as crianças cuidadas por apenas um dos seus progenitores; hoje, depois da multiplicação do número de divórcios, tornou-se normal que as crianças cresçam acompanhadas por um só dos seus progenitores[26]. Por esta razão, é natural que os sistemas jurídicos evoluam no sentido da aceitação do acesso das mulheres sós às técnicas de reprodução assistida. Mas, porventura, esta evolução será mais lenta do que poderia ser exactamente porque é preciso vencer o preconceito natural do macho e da fêmea – na verdade, a mulher que quer ter um filho sozinha está a querer praticar a reprodução com menos do que dois indivíduos.


d) Refiro-me, por fim, a um caso recente que se tornou mundialmente conhecido.
            Um tribunal de 2.ª instância de Ontário (Canadá) declarou que uma criança tinha um pai e duas mães.
Um casal de mulheres resolveu ter um filho; mas rejeitou o recurso à dação de esperma, no âmbito da reprodução medicamente assistida, porque não queria “medicalizar” a procriação. Por esta razão, um amigo veio a tornar-se o progenitor.
A criança foi cuidada pelos três intervenientes, antes e depois do nascimento. Depois do nascimento, o pai biológico e a mãe biológica tornaram-se os pais jurídicos. Em seguida, pôs-se o problema do estatuto a reconhecer à companheira da mãe. A simples atribuição de responsabilidades parentais não era considerada satisfatória pelos interessados, na medida em que  discriminava uma das mulheres a quem todos – incluindo o filho – reconheciam um papel de mãe; o caminho da adopção por esta mulher também não atingia resultados convenientes, desta vez porque, ao admitir que ela se tornasse mãe adoptiva, ao lado da mãe natural, excluía o pai biológico – que todos desejavam manter com um estatuto familiar igual ao das duas mulheres.
Restou ao tribunal de 2.ª instância considerar que o caso – sendo excepcional – não se resolvia segundo os mecanismos legais normais; e lançar mão dos poderes excepcionais designados por parens patriae para preencher o que foi considerado um vazio das leis.
No exercício destes poderes excepcionais, o tribunal declarou que a criança tinha duas mães e um pai dois pais biológicos e uma mãe sócio-afectiva.
            O caso ficou conhecido como o Three parents case – um em que um tribunal venceu as barreiras impostas pela imitação da Natureza e aceitou que, de certo modo, neste processo de reprodução interviessem mais do que dois indivíduos[27].



[1] Levítico, 17: 14.
[2] Talvez por isto, as transfusões tiveram um início atribulado. Para além de problemas técnicos mais simples, que os médicos-inventores foram resolvendo com tubos artesanais e penas de pato, discutiram-se problemas mais complicados como o que aconteceria se se tirasse sangue a um indivíduo são para o transferir para um doente? E que resultado daria tirar sangue a um homem para o dar a uma mulher? Tirar sangue  de um sarnoso para o dar a alguém com a pele sã? (Anne Marie MoulinAs batalhas da transfusão sanguínea, in Jacques le GoffAs doenças têm história, Lisboa, Terramar, 1991, p. 265). Além disto, se o sangue era vida devia ser preocupante tirar sangue (tirar vida…) a um indivíduo são…. Problemas que eram também do foro da bioética… como quer que ela se designasse na época.
Depois de o pioneiro francês Jean-Baptiste Denis ter alegado que a mãe transfere sangue para o feto (Anne Marie MoulinAs batalhas…, p. 267), foi possível vencer as hesitações acerca da transfusão entre dois indivíduos. Todavia, duzentos anos depois, quando Landsteiner explicou os grupos sanguíneos e as reacções de aglutinação, não foi fácil aceitar que se recorresse ao sangue de um estranho, pois  – significativamente –  ainda era uso transferir sangue entre membros da mesma família (Idem, p. 272). E trezentos anos depois, as Testemunhas de Jeová ainda respeitam à sua maneira a injunção bíblica “Não comais a carne com o sangue, que é a vida dela...” (Gen 9:4).
[3] O critério do sangue, porém, sofreu desde sempre a concorrência dos interesses ligados à defesa da “família legítima”, que implicava “impor” juridicamente a paternidade aos maridos mesmo que eles não fossem, obviamente, os progenitores biológicos.
[4] Embora não deve esconder-se a tradição antiga de fazer perfilhações de complacência, quando um homem casava com uma mulher que já tinha filhos de pai incógnito. Era socialmente adequado perfilhar os filhos da mulher – sabendo que não eram descendentes biológicos do perfilhante – e as pessoas com legitimidade para a impugnação abstinham de agir (Cfr. O meu Critério jurídico da paternidade, Coimbra, Almedina, 1983, p. 421).
[5] A Reforma de 1977 fez ascender o cônjuge sobrevivo à primeira posição, ao lado dos descendentes. Esta Reforma, aliás, melhorou a posição sucessória do cônjuge, relativamente aos filhos, em outros aspectos que não cabe aqui mencionar.
[6] Até 1982, no nosso Direito.
[7]Luis OsórioNotas ao Código Penal Português, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1924, p. 282. Sublinhado meu
[8] 6:56.
[9] É claro que as emoções foram sempre conhecidos do direito criminal. São vários os exemplos em que os sentimentos maus os sentimentos bons integraram os elementos do tipo legal de crime – como nos arts. 132.º e 133.º CPen. Porém, o que nos interessa agora é o valor dos sentimentos como fundamento de vínculos jurídicos entre as pessoas.
[10] Esta oposição não se registava na versão inicial do código civil, de 1966, pois só podiam ser adoptados os filhos de pessoa falecidas ou desaparecidas. A adopção era supletiva, mas nunca entrava em conflito com a filiação de sangue.
[11] Ou dois; para este caso é indiferente.
[12] Cfr. Reis, Rafael Luís Vale e – O direito ao conhecimento das origens genéticas. Coimbra, Centro de Direito Biomédico/Coimbra Editora, 2008.
[13] A necessidade da autorização dos pais para o casamento foi introduzida na sequência do Concílio de Trento, realizado em 1563. Vários sistemas jurídicos abandonaram este impedimento impediente – cfr. Mary Ann GlendonThe transformation of Family Law, paperback, Chicago, The University of Chicago Press, 1996, p. 28-30 e 38-49.
[14] Art. 3.º, n.º 2, c), da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.
[15] Art. 15.º, n.º 2, da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho.
[16] Esta atitude, porém, não é partilhada pelos direitos escandinavos, germânico e anglo-saxónicos, que preferem reconhecer aos filhos o direito de conhecerem a identidade dos seus progenitores, embora sem chegarem ao ponto de permitir um verdadeiro estabelecimento jurídico da paternidade.
[17] Art. 1839.º, n.º 3 CCiv.
[18] O filho pode propor a acção dentro do prazo de um ano a contar da inscrição da paternidade no registo ou, se ele for menor ou incapaz, dentro de um ano sobre a data da maioridade ou o termo da incapacidade (art. 137.º, §3.º); mas se não houver posse de estado de filiação matrimonial, isto é, se o filho não for tratado como filho pelo marido da mãe, se este não se considerar como seu progenitor, e se o círculo dos familiares e amigos mais próximos não supuser que eles são pai e filho, então a acção pode ser proposta a todo o tempo pelo filho ou pelos seus herdeiros (§3.º).
[19] Como escrevi, por outras palavras, no Curso de Direito da Família, Vol. II, tomo I, Direito da Filiação, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 137 e 139.
[20] Acórdão n.º 609/2007, 1.º Secção.
[21] Fachin, Luiz Edson; Pianovski, Carlos Eduardo – Parentesco. Fraternidade sócioafectiva. Possibilidade jurídica. Efeitos que podem ensejar. «Revista Forense», vol. 388, p. 259-273.
[22] É certo que nunca se usou um “critério de sangue” rigoroso, no momento da inscrição do recém-nascido nos serviços do registo civil: a inclusão de cada indivíduo num género ou noutro depende de uma observação morfológica banal.
[23] O próprio nome dos vínculos é desconfortável – herdeiro de uma tradição de madrastas feias e más... mas o Direito ainda não encontrou um designação adequada.
O recente projecto de lei para alteração do regime jurídico do Divórcio, apresentado pelo Partido Socialista, prevê que o progenitor com quem o filho vive possa delegar como entender os poderes que detém no âmbito dos “actos da vida corrente” do filho – delegação que será feita, com frequência, no padrasto ou na madrasta.
[24] É vulgar ouvir-se dizer que “o casamento não é um contrato qualquer”, com a intenção de se sublinhar a necessidade de se manter uma vinculação forte e uma responsabilização tipicamente fundada na culpa pela violação de deveres jurídicos. Mas “o casamento não é um contrato qualquer” justamente porque tende a escapar à lógica contratual – patrimonial – que impõe deveres claros, responsabilidade subjectiva pelo não cumprimento, e dificuldade de desvinculação unilateral. “O casamento não é um contrato qualquer” porque tem vindo a perder os ingredientes típicos do instrumento jurídico que é o contrato; porque se deixou impregnar pelos afectos e pela sua volatilidade.
[25] Veja-se o meu Mãe há só… duas! Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p. 73-8.
[26] Embora, ao contrário do que se pensava, não vivam em famílias monoparentais. De facto, o progenitor e os seus filhos tendem a formar uma família recombinada, onde aparece um pai ou mãe social que desempenha o papel do progenitor ausente (Informação de Anália Torres, com base no European Social Survey 2002).
[27] Será interessante saber se o caso pode repetir-se; e, sobretudo, se um tribunal decidirá do mesmo modo quando os dois progenitores não aceitarem a intervenção do terceiro em condições de igualdade.

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