terça-feira, 14 de julho de 2020

Inteligência artificial e coronavírus: prevenção e combate ao vírus e à solidão

Robôs não trazem o aconchego de um abraço, mas são ferramentas que aproximam as pessoas, ainda que virtualmente

Cena do filme Blader Runner 2049. Divulgação

Nunca antes na história da humanidade uma pandemia foi enfrentada com tanta tecnologia. Diversos memes têm circulado pela internet retratando um diálogo no futuro entre um jovem de hoje e uma criança. Ao relatar o que fez para sobreviver à pandemia do COVID-19, dirá o idoso do futuro: “eu só fiquei em casa compartilhando memes, figurinhas e vendo Netflix”. Mas para além da salvação individual, é preciso considerar o papel desempenhado pela Inteligência Artificial nessa crise: prevenção e combate ao vírus e à solidão.

Se em grandes pandemias do passado, como na peste bubônica, a tecnologia mais avançada estava nos utensílios; hoje, em muitos casos, ela é, assim como o próprio vírus, invisível, recorrendo a dados pessoais para funcionar e salvar vidas. E o Direito não pode ser alheio aos efeitos colaterais desse progresso tecnológico.

Ao redor do mundo, diversos algoritmos comandados por Inteligência Artificial vêm sendo utilizados para mapear o avanço do vírus. A plataforma canadense Blue-Dot, por exemplo, utilizou um algoritmo desse tipo para alertar seus usuários sobre uma possível contaminação na região de Wuhan antes mesmo da notificação ao público feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O algoritmo, que se valia de técnicas de machine learning (aprendizado de máquina)1, combinava dados de notícias sobre a doença e bancos de dados sobre passagens aéreas para prever quais seriam as próximas cidades infectadas pelo vírus. Foi assim que ele conseguiu antever corretamente o avanço do vírus para Bangkok, Seul, Taipei e Tóquio nos primeiros dias.2

Para além da prevenção e do mapeamento, esses algoritmos também podem ser utilizados para facilitar a detecção e o diagnóstico de pessoas infectadas, gerando resultados que passam a ser empregados pelas agências de saúde para direcionar profissionais para o combate efetivo da doença. Até mesmo no Brasil já se tem notícias de uma atuação nesse sentido.3

Isso só é possível porque esses algoritmos se valem de bases gigantescas de dados (o chamado big data), que os alimentam e subsidiam análises preditivas. Como se costuma dizer, se os algoritmos são o motor, por certo os dados são o combustível.4 E o tratamento desses dados, desde a sua coleta até a sua eliminação, não pode fugir do controle do Direito.

Este quadro se reveste de importância ainda maior quando se considera que os dados analisados são extremamente sensíveis5, na forma do art. 5º, inciso II da Lei nº. 13.7019/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que, embora ainda não tenha entrado em vigor, já é um norte interpretativo fundamental. A tutela desses dados deve ser, por isso mesmo, ainda mais intensa, porque estes dizem respeito aos aspectos mais íntimos da pessoa humana.

Combatendo o vírus

Veja-se alguns exemplos ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, o Tampa General Hospital da Flórida está instalando um sistema algorítmico capaz de instantaneamente identificar febre em visitantes, graças a um software de reconhecimento fácil. Em Israel, o Sheba Medical Center está monitorando pacientes infectados pelo vírus com um sensor de Inteligência Artificial que foi posicionado embaixo dos colchões dos leitos. O sistema analisa continuamente padrões nesses pacientes, tais como atividade cardíaca, respiratória e movimentos corporais, alertando a equipe médica quando algum paciente parece estar caminhando para uma falência respiratória ou sepse.6

Ainda em Israel, está sendo desenvolvido um projeto conjunto do Ministério da Saúde com os professores Yuval Dor da Hebrew University of Jerusalem, além de Eran Segal e Benjamin Giger do Weizmann Institute of Science of Rehovot. Nesse projeto, distribuem-se questionários a serem preenchidos pelo público geral, cujos dados são posteriormente analisados por algoritmos de Inteligência Artificial. O objetivo principal é prever onde há maior probabilidade de o vírus se disseminar para que, em seguida, as autoridades possam focar nesta área para monitorar o aparecimento dos sintomas dos vírus com maior proximidade. Um projeto piloto foi lançado na semana do dia 15 de março e cerca de 60 mil pessoas responderam ao questionário. Após uma análise preliminar, os cientistas e pesquisadores conseguiram detectar um aumento nos sintomas nas regiões onde identificaram a presença de pacientes contaminados. Em suma, entendem que em virtude desse programa, as autoridades serão capazes de prever as próximas regiões com maior possibilidade de eclosão do vírus, o que irá permitir que os esforços sejam direcionados para essas áreas mais necessitadas.7

Já se tem observado no Brasil uma série de questionários que tem circulado por aplicativos de mensagens como o WhatsApp, e que realizam diversas perguntas sobre o estado clínico da pessoa e possíveis sintomas para se tentar dar um parecer quanto à necessidade de procurar atendimento médico e hospitalar. É preciso, no entanto, reforçar o cuidado com o tratamento desses dados, observando, ainda, se estes são necessários para as finalidades para as quais foram coletados (art. 6º, inciso III da LGPD). Isso porque muito embora esses dados possam estar sendo coletados para finalidades lícitas e ajudem no mapeamento da doença, há que se considerar que eles podem acabar sendo armazenados e utilizados para finalidades espúrias mais tarde. Daí a necessidade de fornecer tão somente dados imprescindíveis para as necessidades da pesquisa, tanto ao poder público, como aos planos de saúde privados, já que ambos devem atuar, igualmente, na proteção dos dados pessoais coletados.

No âmbito da União Europeia, por exemplo, o Comitê Europeu para a Proteção de Dados (The European Data Protection Board – EDPB) divulgou uma declaração por meio da qual alerta que, apesar de o mundo estar vivendo uma situação de emergência, o tratamento dos coletados neste período deve respeitar os princípios gerais da proteção de dados e não deve ser irreversível. Afirma, assim, que a utilização de dados sensíveis, como aqueles relativos à saúde e à localização das pessoas pode ser excepcionalmente permitida de maneira mais ampla, desde que constitua uma medida proporcional, necessária e apropriada, dentro de uma sociedade democrática.8

Detalha, em seguida, como deverá ser o tratamento de dados pessoais de localização coletados em celulares e daqueles coletados por empregadores. Diante da possibilidade de se utilizar esses dados de geolocalização, a declaração dispõe que as autoridades públicas deveriam primeiramente tentar processá-los de maneira anônima. Mas, quando não for possível, os Estados poderiam introduzir medidas para salvaguardar a segurança pública. Para tanto, deverão munir os indivíduos de um direito a um remédio judicial. A linha geral, desse modo, deve ser a adoção de medidas proporcionalmente menos invasivas.9

Por fim, estabelece que os empregadores só deverão requerer informações específicas a seus empregados relativamente ao coronavírus ou realizar check-ups médicos neles se houver obrigação legal neste sentido. A declaração analisa ainda a possibilidade de os empregadores revelarem a colegas de trabalhos e terceiros que um empregado está infectado com COVID-19. Neste sentido, a orientação é de que os empregadores devem informar seu staff sobre casos confirmados e tomar medidas protetivas, mas não devem comunicar mais informações que o necessário. Naqueles casos em que seja necessário revelar o nome do empregado infectado e que a legislação nacional o permita, os empregados deverão ser informados previamente e sua dignidade e integridade deverão ser protegidas.10

Como se pode notar, a Inteligência Artificial e o Big Data estão ajudando a revolucionar o combate e a prevenção de grandes surtos, não apenas do coronavírus. As lições aprendidas nesta pandemia terão, inquestionavelmente, efeitos duradouros. A ideia é que quanto mais cedo e mais detalhadas forem as informações, mais facilmente as autoridades poderão saber onde fazer testes para identificar possíveis infectados e saberão onde os recursos devem ser alocados. Importa ainda considerar que grande parte dos dados (em boa parte anonimizados) utilizados para alimentar esses sistemas e algoritmos são oriundos de gigantes da Internet, como o Google, Amazon, Twitter, Instagram e Facebook. Estas duas últimas têm compartilhado postagens mencionando o coronavírus em grupos, assim como dados sobre a movimentação dos usuários.11

Um remédio para a solidão

A Inteligência Artificial também pode ser utilizada como um remédio, ainda que parcial, para a solidão em tempos de distanciamento social, sobretudo para os mais idosos, cujas restrições são bem mais severas. Já há algum tempo tem-se falado nos chamados “robôs cuidadores”12, que auxiliam no monitoramento constante e servem de companhia para pessoas idosas. Alguns, com recursos avançados de Inteligência Artificial, já são capazes de manter longas conversações, suavizando os efeitos mais perversos da solidão. Eles também podem auxiliar em tarefas domésticas mais simples e, como se tem visto, até convidar os idosos para exercícios físicos leves. Mais uma vez aqui é preciso considerar que estes dispositivos captam dados ambientais para interagir com seus usuários, daí porque deve ser ressaltada a importância da proteção dos dados dessas pessoas em vulnerabilidade que acabam sendo expostas.

Além dos robôs cuidadores, outras “espécies” podem ser empregadas para entreter pessoas de quaisquer idades. Veja-se, por exemplo, o caso dos “robôs sexuais” ou sexbots13, que em razão da Inteligência Artificial que os comanda, são capazes de aprender e se adequar às preferências de seus “parceiros” de carne e osso, despertando questionamentos muito mais amplos que aqueles relativos à proteção dos dados pessoais de seus usuários. Lista-se apenas alguns: (i) seria possível se comercializar robôs sexuais infantis? Se não for possível, as regras proibitivas teriam a mesma ratio das normas que combatem a pornografia infantil?; (ii) pode-se estuprar ou violar um robô sexual? (é possível estuprar uma máquina?); (iii) deve haver alguma regulamentação sobre a produção e comercialização desses robôs? Dúvidas não há de que essas perguntas possuem grande componente ético, que não pode ser desprezado no debate.

Alude-se, ainda, aos chamados “robôs entregadores”, como o Digit da Ford14, que associados a veículos autônomos podem trafegar pelas cidades, realizando entregas e evitando o contato e o contágio entre as pessoas, como tem feito a Telemedicina, que foi regulamentada excepcional e temporariamente pelo Ministério da Saúde por meio da Portaria nº 467 de 20 de Março de 2020.15 Embora essa tecnologia que combina robôs a veículos ainda seja restrita a alguns poucos lugares do mundo, vislumbra-se uma utilização em larga escala num futuro próximo.

Como se pode notar, a Inteligência Artificial já faz parte do combate ao coronavírus e de futuras pandemias que possam surgir. Pensando melhor, talvez essas pandemias nem voltem a eclodir nos próximos anos, graças a análises preditivas cada vez mais precisas feitas pela tecnologia, que será capaz de impedir ou conter rapidamente a sua disseminação. A Inteligência Artificial de hoje é usada para desenvolver vacinas, medicamentos, realizar diagnósticos mais acurados com base em extensas análises de dados. Além disso, cada vez mais dispositivos serão implantados nos corpos para diagnosticar doenças em tempo real. Nada obstante, é preciso tomar cuidado para que os dados coletados para o funcionamento da Inteligência Artificial não seja utilizado para finalidades deletérias.

Por certo, os robôs não trazem o aconchego de um abraço nem o acalanto de um carinho, mas, pelo menos, são ferramentas que aproximam as pessoas, ainda que virtualmente, enquanto o isolamento social nos deixa em quarentena, reféns das sugestões de filmes e séries que a Inteligência Artificial da Netflix nos sugeriu e das playlists que o Spotify gerou para nosso passeio diário do quarto para a cozinha. Depois desse texto, é provável que me sugira ficção científica.

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1 “A partir da habilidade de acumular experiências pessoais, este recurso permite que a IA aja de maneira diversa diante de situações idênticas, porque carrega em seu código o aprendizado das ações performadas anteriormente. Tal como ocorre com a experiência humana, guardadas as devidas proporções, a máquina aprende com base em seus atos, ou seja, seus erros e acertos modelam seu agir futuro.” (MEDON AFFONSO, Filipe José, Inteligência artificial e danos: autonomia, riscos e solidariedade. Dissertação de Mestrado em Direito – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019, p. 44).

2 NIILER, Eric, An AI Epidemiologist Sent the First Warnings of the Wuhan Virus. In: Wired, 25 de jan. 2020. Disponível em: <https://www.wired.com/story/ai-epidemiologist-wuhan-public-health-warnings/>. Acesso em 20 mar. 2020.

3 Brasil tem 291 casos confirmados de novo coronavírus e alta de 327% nos casos suspeitos, diz ministério. In: Bem Estar, 17 mar. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/17/brasil-tem-290-casos-confirmados-de-novo-coronavirus-diz-ministerio.ghtml>. Acesso em 21 mar. 2020.

4 TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; MEDON AFFONSO, Filipe José. A utilização de Inteligência Artificial em decisões empresariais: notas introdutórias acerca da responsabilidade civil dos administradores. In: FRAZÃO, Ana; MULHOLLAND, Caitlin (coords.). Inteligência Artificial e Direito: ética, regulação e responsabilidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 462.

5 Ver mais em: MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. Dados Pessoais Sensíveis e a Tutela de Direitos Fundamentais: uma análise à luz da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18). In: R. Dir. Gar. Fund., Vitória, v. 19, n. 3, p. 159-180, set./dez. 2018; KONDER, Carlos Nelson. O tratamento de dados sensíveis à luz da Lei 13.709/2018. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato (coords.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

6 COUNCIL, Jared. Hospitals Tap AI to Help Manage Coronavirus Outbreak, In: The Wall Street Journal, 20 mar. 2020. Disponível em: <https://www.wsj.com/articles/hospitals-tap-ai-to-help-manage-coronavirus-outbreak-11584696601> Acesso em 24 mar. 2020

7 MASHIANE, Thurgood. Coronavirus and AI, In: Tech Financials, 24 mar. 2020. Disponível em: <https://techfinancials.co.za/2020/03/24/coronavirus-and-ai/>. Acesso em 24 de março de 2020.

8 The European Data Protection Board, Statement on the processing of personal data in the context of the COVID-19 outbreak. Adopted on 19 March 2020. Disponível em: <https://edpb.europa.eu/our-work-tools/our-documents/other/statement-processing-personal-data-context-covid-19-outbreak_pt> Acesso em 22 mar. 2020.

9 The European Data Protection Board, Statement on the processing of personal data in the context of the COVID-19 outbreak. Adopted on 19 March 2020. Disponível em: <https://edpb.europa.eu/our-work-tools/our-documents/other/statement-processing-personal-data-context-covid-19-outbreak_pt> Acesso em 22 mar. 2020.

10 The European Data Protection Board, Statement on the processing of personal data in the context of the COVID-19 outbreak. Adopted on 19 March 2020. Disponível em: <https://edpb.europa.eu/our-work-tools/our-documents/other/statement-processing-personal-data-context-covid-19-outbreak_pt> Acesso em 22 mar. 2020.

11 MASHIANE, Thurgood. Coronavirus and AI, In: Tech Financials, 24 mar. 2020. Disponível em: <https://techfinancials.co.za/2020/03/24/coronavirus-and-ai/>. Acesso em 24 de março de 2020.

12 Japão usa robôs para melhorar atendimento à população idosa. In: Olhar Digital, 26 jul. 2019. Disponível em: <https://olhardigital.com.br/noticia/japao-aposta-na-robotica-para-cuidar-da-populacao-idosa/88455> Acesso em 21 mar. 2020.

13 SHEN, Francis X. Os robôs sexuais já estão aqui. Deveria haver leis que os regulem? In: El País, 18 mar. 2019. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/14/tecnologia/1550144811_560964.html> Acesso em 21 mar. 2020.

14 Trata-se de um robô de duas pernas, que vem dentro de um carro autônomo e, ao chegar ao ponto de entrega, retira a embalagem do interior do veículo e a acomoda perfeitamente na soleira da porta do consumidor, driblando obstáculos, subindo e descendo escadas e carregando aproximadamente 18 quilogramas. A atuação do Digit e de seus sensores é integrada com os sensores do veículo inteligente estacionado, que o auxiliam em sua tarefa de mapeamento do local. Mais sobre, disponível em: < https://www.businessinsider.com/ford-delivery-robot-digit-walks-on-two-legs-like-human-2019-5>; <https://www.businessinsider.com/ford-reveals-autonomous-delivery-robot-digit-2019-5>. Acesso em 05 ago. 2019.

15 PORTARIA Nº 467, DE 20 DE MARÇO DE 2020: “Dispõe, em caráter excepcional e temporário, sobre as ações de Telemedicina, com o objetivo de regulamentar e operacionalizar as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional previstas no art. 3º da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, decorrente da epidemia de COVID-19.” Disponível em: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-467-de-20-de-marco-de-2020-249312996>. Acesso em 24 mar. 2020; Para saber mais, ver: TERRA, Aline de Miranda Valverde; LEMOS, Paula Moura Francesconi de Lemos. Telemedicina no sistema privado de saúde: quando a realidade se impõe. In: Migalhas, 19 mar. 2020. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-vulnerabilidade/322083/telemedicina-no-sistema-privado-de-saude-quando-a-realidade-se-impoe> Acesso em 21 mar. 2020;

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Envelhecimento - artigo de Daniel Callahan


DELINEANDO O TEMA
O envelhecimento das sociedades modernas - fruto notável de avanços médicos e melhoria dos padrões econômicos e de vida - é um dos desafios globais mais importantes, afetando tanto os países ricos quanto os pobres. A maioria das pessoas nos países desenvolvidos vive uma vida longa e morre lentamente de doenças crônicas. A maioria das pessoas nos países pobres está alcançando a expectativa de vida e agora também está morrendo de doenças crônicas. Prevê-se que a população dos EUA com mais de 65 anos suba de 48 milhões em 2015 para 98 milhões em 2060. Em 2015, pela primeira vez na história, a população global dos maiores de 65 anos foi maior do que a dos menores de 5 anos.

Essas mudanças apresentam vários desafios. Uma sociedade em envelhecimento traz maiores pressões econômicas para pagar pelas necessidades econômicas e de saúde dos idosos. Altera a proporção entre idosos e jovens e, com frequência, significa proporcionalmente menos jovens a pagar pelos cuidados familiares mais velhos e a prestar cuidados de outras maneiras. Aumenta a incidência de doenças crônicas, que agora são predominantemente as doenças do envelhecimento. As doenças crônicas são caras para a sociedade, complexas de tratar e difíceis de serem enfrentadas pelas famílias e cuidadores. A maioria dos idosos morre de uma doença crônica, mas geralmente depois de sofrer várias doenças crônicas ao longo do caminho. Muitas decisões difíceis sobre cuidados em fim de vida devem ser tomadas, mas constantes desenvolvimentos tecnológicos podem complicar essas decisões, obscurecendo qualquer linha clara entre viver e morrer,

Como as pessoas vivem mais, também correm o risco de insegurança financeira. Além de pagar por cuidados médicos crônicos caros e cuidados, eles enfrentam a perspectiva de sobreviver mais que suas economias. Muitos idosos querem, ou precisam, continuar trabalhando além das idades tradicionais de aposentadoria, mas podem não ter as habilidades necessárias para fazê-lo em sociedades em rápida mudança. Aqueles que permanecem na força de trabalho podem bloquear o caminho dos jovens que procuram emprego.

Com mais pessoas morrendo na velhice, a própria idéia de idade está mudando. Que idades devem agora ser usadas para definir políticas para o Medicare e o Seguro Social? Qual é um bom equilíbrio entre suprir as necessidades de saúde de idosos e jovens, principalmente quando os cuidados de saúde e sociais para idosos são cada vez mais caros em comparação com grupos etários mais jovens? Qual é um bom equilíbrio entre a prestação de cuidados de saúde e segurança econômica para os idosos?

     SOCIEDADES DO ENVELHECIMENTO: DOENÇA, MORTE E SEGURANÇA ECONÔMICA                                 
Os múltiplos problemas de uma sociedade em envelhecimento podem ser divididos em quatro áreas focais, apresentando questões éticas e políticas sobrepostas.

Cuidados de saúde. Para todos, exceto os países mais pobres, os cuidados com a saúde são caros e uma grande parte dos gastos governamentais e privados. Todo país desenvolvido, independentemente do tipo de sistema de saúde que possui, enfrenta custos crescentes. Mesmo países com assistência médica garantida para todos acham esses custos cada vez mais onerosos. O progresso médico, a inovação tecnológica e a força social e econômica aprimorada estão por trás desse desenvolvimento. Juntos, eles levaram a enormes ganhos, mais evidentemente no aumento da expectativa de vida, menores taxas de mortalidade materna, diminuição das mortes de bebês e crianças e melhoria da saúde de todos os tipos e idades.

Embora seja comum argumentar que as novas tecnologias reduzirão os custos com saúde, isso raramente acontece; os custos tendem a subir. Por mais que os pesquisadores odeiem reconhecê-lo, a cura de uma doença letal abrirá inevitavelmente a porta para outra doença letal. Um paciente curado de câncer aumenta suas chances de morrer de doença cardíaca ou demência, ou qualquer outra coisa. A luta bem-sucedida contra pragas e doenças infecciosas fez com que os salvos aumentassem suas chances de morrer de uma doença crônica.

Cuidados em fim de vida. Cuidar dos moribundos tem uma longa história na assistência médica, que remonta a Hipócrates, através da “arte de morrer” ( ars moriendi) na Idade Média e até o século XIX.século. Além de algum alívio da dor e de habilidades brutas de diagnóstico, os médicos poderiam fazer pouco pelos moribundos. Na década de 1960, o progresso médico aumentou a possibilidade de manter vivos os pacientes graves. Esse progresso criou dilemas morais intensificados para médicos e pacientes e suas famílias. Quando e sob que circunstâncias os médicos devem se esforçar para manter vivos os pacientes gravemente doentes ou moribundos? A linha entre viver e morrer tornou-se cada vez mais clara: quase sempre existe uma maneira tecnológica de adicionar minutos, horas ou talvez alguns dias à vida de um paciente que está morrendo.

Outros dilemas surgiram. Quando o poder de tomada de decisão deve ser retirado dos médicos e entregue aos pacientes ou seus substitutos? As opiniões sobre a resposta a essa pergunta mudaram significativamente nos últimos 50 anos. Tudo começou com um movimento para eliminar o paternalismo médico e encontrar maneiras de equilibrar os papéis médico-paciente. Na década de 1970, chegou o movimento de cuidados paliativos, fornecendo apoio médico e psicológico para pacientes que estavam morrendo e suas famílias. Durante esse mesmo período, um movimento nascente começou a legalizar o auxílio médico na morte. (Consulte " Morte assistida por médico ".)

Suporte econômico e social. Embora os 65 anos permaneçam uma referência para a aposentadoria, com todos os benefícios do Medicare e da Seguridade Social a partir de então, a idade aumentará gradualmente. Muitos futuros aposentados - particularmente os Baby Boomers, que agora se aposentam à taxa de 10.000 por dia - enfrentarão problemas econômicos por causa de uma falha em economizar dinheiro suficiente para a velhice e por causa de escassez de aposentadorias e receitas privadas de programas governamentais. As pessoas na faixa etária de 46 a 65 anos são projetadas para ficar ainda pior do que os Baby Boomers mais velhos. Muitas pessoas que vivem acima de 65 anos vão querer continuar trabalhando ou serão economicamente forçadas a fazê-lo.

Durante todo esse tempo, os idosos presentes e futuros viverão mais do que seus pais, com mortes se agrupando nos anos 70 e 80, em vez dos 50 e 60; e milhões chegarão aos 90 e até 100 anos. Nos anos mais longos e posteriores, é provável que precisem não apenas de uma renda adequada, mas também de cuidados de saúde ou ajuda em casa. Muitos serão forçados a pedir apoio a suas famílias. O aumento da demência, principalmente uma doença do envelhecimento, ressalta os difíceis desafios enfrentados pelos aflitos e seus cuidadores. Todas essas questões entram em cena na arena política e legislativa.

Ciência e Envelhecimento. Os avanços científicos e tecnológicos ajudaram a aumentar a longevidade humana, eliminaram muitas das pragas e doenças infecciosas que tiraram a vida da maioria das pessoas, nos permitiram viver o tempo suficiente para morrer de uma doença crônica (ou ser curada) e melhoraram, mas também complicaram cuidados em fim de vida. Subjacente a esses desenvolvimentos, no entanto, há um dilema profundo. O progresso científico que nos ajudou a viver mais e melhor significa que a própria morte é o inimigo humano definitivo contra o qual lutar? Vários cientistas de tendência utópica e empresários ricos para apoiá-los não vêem limites inerentes às possibilidades tecnológicas. Mark Zuckerberg e sua esposa médica prometeram US $ 3 bilhões para encontrar uma "cura para todas as doenças" ao longo da vida de seus filhos.

Cada um dos quatro pontos focais das sociedades em envelhecimento tem seus próprios métodos de pesquisa, quadro de especialistas e periódicos profissionais, constituintes e consumidores leigos. No entanto, juntos, eles se sobrepõem e interagem direta e indiretamente entre si de maneiras importantes.

Os custos com saúde influenciam cada uma das outras áreas. Eles têm um impacto nos recursos econômicos gerais e na segurança dos idosos. Cerca de 18% da renda da Seguridade Social é gasta em déficits na cobertura do Medicare, que nominalmente cobre apenas 75% dos custos com assistência médica. As decisões sobre os cuidados no final da vida podem ser muito mais difíceis para os pacientes críticos e suas famílias, devido aos custos não cobertos pelo seu seguro de saúde. Esses custos são uma das principais causas de falência. A maioria das pessoas com deficiência ou com doenças crônicas, como demência, não possui cobertura de seguro de assistência a longo prazo. As inovações científicas para aumentar as expectativas de vida ou melhorar clinicamente a velhice têm mais probabilidade de aumentar os custos, não de reduzi-los.

Cuidados no fim da vida é complexo, geralmente caro, e muitas vezes preocupante e estressante. Um bom atendimento hospitalar pode aliviar muitos desses encargos para as pessoas que estão morrendo e continua a crescer, cobrindo agora cerca de 1,2 milhão das 2,6 milhões de pessoas nos EUA que morrem anualmente. Mas muitos pacientes entram no programa muito mais tarde do que o desejável, recebendo cuidados paliativos por uma média de apenas 17 dias. Existem várias razões para o atraso. Em alguns casos, o prognóstico é incerto. Mesmo quando está claro que a morte está se aproximando, médicos ou famílias podem demorar para aceitá-la. Pesquisas de opinião pública também revelam uma tensão flutuante sobre os cuidados em fim de vida entre pacientes e médicos. Pode ser chamado de tensão entre "fazer tudo" para manter um paciente vivo e permitir que ele morra. Além disso, as famílias geralmente são ambivalentes quanto ao que desejam.

O apoio econômico e social dos idosos é influenciado não apenas pelo apoio governamental dos programas Medicare e Previdência Social, mas também pelo apoio não remunerado de cerca de 17,7 milhões de cuidadores familiares (consulte “Cuidar da família”) e um número quase incontável de setor privado e grupos cívicos locais. Além disso, é bem reconhecido que os cuidadores podem ficar sobrecarregados com sua carga de cuidados. Às vezes, esse cuidado dura anos e geralmente é necessário 24 horas por dia, sete dias por semana. Para muitos cuidadores familiares, um dilema moral sutil pode se apresentar se eles tiverem que tomar decisões de fim de vida para membros incompetentes da família: eles podem se sentir culpados se aprovarem a interrupção do tratamento, mesmo que pareça algo racional e humano, mas eles podem se perguntar se o fizeram por interesse próprio.

Um importante esforço tecnológico está em andamento com dispositivos eletrônicos que permitem mais autocuidado dos idosos em casa. Os médicos podem ver uma pessoa doente em uma tela, o paciente pode ver e conversar com o médico, e informações de diagnóstico podem ser obtidas por dispositivos eletrônicos implantados. Esses dispositivos podem reduzir a necessidade de proximidade com os cuidadores, mas podem causar isolamento e diminuir o contato humano próximo. Uma questão importante para uma sociedade em envelhecimento é: quais são as melhores formas de a tecnologia contribuir para o bem-estar dos idosos?

ÉTICA E POLÍTICA
Quanto tempo uma vida é necessária para ser plena e satisfatória? Ajudaria ou prejudicaria os seres humanos a ter uma vida útil significativamente mais longa, digamos a 125 e além? Como devemos determinar um equilíbrio equitativo de apoio governamental para jovens e idosos? Qual é uma expectativa razoável para o apoio familiar dos idosos e quando o governo deve ajudar a aliviar esse fardo? Os cuidados de saúde para idosos devem ser racionados e quais seriam os critérios para fazê-lo? Já foi dito que os idosos e os jovens têm obrigações recíprocas entre si: os idosos devem fazer o que podem pelos jovens, e os jovens devem fazer o que podem pelos idosos. Coloque de forma mais clara, quanto de seu próprio bem deve estar disposto a desistir pelo bem do outro? Essa questão se torna mais urgente quando a proporção de jovens para idosos em uma sociedade muda significativamente para mais idosos.

A maioria das pessoas pode concordar que essas são questões éticas importantes. No entanto, é raro fora dos círculos acadêmicos encontrá-los como parte da formação de políticas e debates sobre opções políticas específicas. Eles podem parecer grandes demais, assustadores e "filosóficos" demais para assumir. É provável que os problemas políticos sejam tratados como desafios gerenciais e organizacionais, e não como dilemas éticos a serem resolvidos. Um gerenciamento melhor pode ajudar a reduzir a escalada de custos. A análise de custo-benefício impessoal pode encontrar o equilíbrio certo entre jovens e idosos. Mais pesquisas científicas podem reduzir os custos de assistência a idosos e permitir-nos viver vidas muito mais longas - e eliminar a necessidade de racionamento. Se o mercado e a livre escolha são levados em consideração, as questões filosóficas podem ser deixadas de lado. Alternativamente,

Em suma, as justificativas e as técnicas políticas convencionais frequentemente evitam ou obscurecem as questões éticas e de valor em jogo. Muitas vezes, porém, é possível detectar julgamentos implícitos que refletem os dilemas e valores éticos obscuros. Desde os dias de Sócrates, levantar as questões éticas mais profundas é pedir problemas. Mas, toleráveis ​​ou não, elas estão lá, geralmente logo abaixo da superfície das batalhas políticas, com presença silenciosamente influente. Eles podem ser esquivados, mas é melhor enfrentá-los. A linguagem mais confortável de gerenciamento e organização é necessária - mas não é suficiente.

Como diferentes perspectivas podem ser incorporadas no desenvolvimento de políticas? Várias comissões presidenciais americanas ao longo dos anos, bem como comissões comparáveis ​​em outros países, tentaram responder a essa pergunta. Em essência, é para garantir que uma variedade de disciplinas acadêmicas e profissionais faça parte do diálogo e do processo que molda a política. Dependendo da questão política, pode ser uma mistura de cientistas, filósofos, teólogos ou cientistas sociais e até alguns cidadãos não especialistas. É provável que cada um deles tenha uma perspectiva diferente sobre como o problema em jogo deve ser entendido. E é provável que discordem um do outro. Mas de uma forma ou de outra, eles precisam desenvolver um consenso, ou mesmo no final, apenas votar. Eu chamo isso de método democrático e, como costuma ser o caso, pode ser confuso e contencioso. E nem todos ficarão felizes com a conclusão. Mas nenhum método melhor foi descoberto.

Daniel Callahan, PhD (1930-2019) , co-fundador do The Hastings Center.
site https://www.thehastingscenter.org/briefingbook/aging/