Uma delas gerou os filhos e a outra doou os óvulos
A espera foi longa, mas valeu a pena. Em decisão inédita, a Justiça de São Paulo autorizou um casal homossexual do sexo feminino a registrar em certidão de nascimento, como mães, os gêmeos Ana e Eduardo, de 1 ano e 8 meses. Os bebês foram gerados por inseminação artificial no útero de uma delas com os óvulos da outra. O pai, um doador anônimo do banco de sêmen, não aparece no documento.
"É o melhor presente para se ganhar em início do ano", comenta a mãe que emprestou a barriga, Adriana Tito Maciel, de 28 anos. "A decisão me fez voltar a acreditar na Justiça", diz a mãe biológica, Munira Khalil El Ourra, de 29. Ela conta que, em alguns momentos, por causa da demora, chegou a se revoltar e a desacreditar de tudo. "Mas agora a justiça foi feita."
Em sua sentença, o juiz Fábio Eduardo Basso, da 6 Vara da Família e Sucessões do Fórum de Santo Amaro, afirma que "as afortunadas crianças têm duas mães; e mais, a possibilidade de desfrutar da vida juntamente com ambas, as quais, ao que consta, pretendem criar a prole com todo o amor e dedicação."
Segundo o magistrado, "o vínculo afetivo que elas (mães) possuem com as crianças são incontestáveis e preponderantes sobre qualquer eventual discussão sobre qual delas deve ser coroada mãe." O juiz diz que sua decisão "trata-se, na realidade, de reconhecer a situação de fato existente, o que traz sentido à aplicação da lei."
FANTASMAS JURÍDICOS
A advogada do casal de mães, Maria Berenice Dias, especialista em direito homoafetivo, enfrentou verdadeira batalha jurídica até obter o direito à dupla maternidade. O primeiro pedido de liminar (decisão provisória) foi feito quando Adriana ainda estava grávida e negado. Ao todo, em dois anos e meio, foram cinco apelações rejeitadas.
Na opinião de Maria Berenice, a Justiça brasileira precisa superar muitos fantasmas. "Em assunto polêmico, que envolve preconceito, juízes, desembargadores e ministros ainda têm dificuldade para se manifestar", observa. A advogada acredita que essa decisão abrirá importante precedente no Judiciário. "Se a Adriana e a Munira não tivessem envolvidas em relacionamento estável, o caso seria tratado como o de barriga de aluguel", compara.
Ana e Eduardo nasceram em 29 de abril de 2009, em uma maternidade da Zona Sul. Como não tinham registro, os gêmeos foram identificados apenas como RN 1 (recém-nascido) e RN 2, fato que deixou as mães muito incomodadas.
Para poder incluir os bebês em um plano de saúde, a alternativa foi registrá-los apenas em nome de Adriana. Mas, agora, a nova certidão de nascimento, que deverá ficar pronta em 15 dias, incluirá, além dos nomes das duas mães, os dos quatro avós maternos. "Costumo falar que o grande problema será para quem se casar com as crianças, porque terá duas sogras", brinca Adriana.
SÍNDROME RARA
Na época em que os bebês nasceram, Munira trabalhava em uma empresa como analista administrativa e tirou quatro meses de licença-maternidade. "Foi um período de felicidade plena", diz ela, apesar de reconhecer que tarefa de mãe não é fácil, mesmo quando são duas.
Mas nem tudo são flores na vida das pessoas. Na proximidade de retornar ao trabalho, surgiu o primeiro problema familiar. Os médicos constataram que Eduardo é portador de uma síndrome rara, CDG tipo 1-A, que afeta, principalmente, o sistema nervoso e a visão.
Diante da gravidade da situação, Munira foi obrigada a pedir demissão para ajudar a cuidar dos filhos. "Não existe cura, por enquanto. A única coisa que podemos fazer é amenizar o sofrimento", explica Adriana.
Segundo ela, a maior preocupação na época era a de que Eduardo precisasse de tratamento no exterior e a família tivesse que se separar. "Para a Munira viajar com ele ou ficar com a Ana seria muito complicado, porque eu teria que dar autorização", conta.
Adriana lembra que a cada indeferimento do pedido de registro de dupla maternidade a decepção, a angústia, a ansiedade e a revolta aumentavam ainda mais. A incerteza do futuro era o que mais doía.
"Choramos muito. A Munira até mais do que eu. Porém, um dia, decidimos não sofrer mais. Entregamos tudo nas mãos de Deus e, só então, o nosso sonho acabou se realizando", comenta Adriana, emocionada.
Veja outras medidas da resolução
Agora, só dois embriões podem ser implantados em mulheres com até 35 anos e, três, nas de 36 a 39. Descarte de material biológico fica por conta das clínicas. É permitido o uso de embriões de morto, desde que em vida tenha autorizado por escrito.
Fonte: Correio Forense, 15 de janeiro de 2011
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