RECURSO ESPECIAL Nº 1.144.720 - DF (2009/0113695-5)
RELATOR : MINISTRO HUMBERTO MARTINS
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E
TERRITÓRIOS
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS
(Relator):
Cuida-se de recurso especial interposto por E.e OUTROS, com base na alínea "a"
do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal/88, contra acórdão do
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios assim ementado:
"DIREITO CIVIL – ALVARÁ JUDICIAL PARA TRANSPLANTE DE RIM – DOADORA VIVA – NECESSIDADE
DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL – VIGÊNCIA DO DECRETO LEI
Nº 2268/97 – AUSÊNCIA DE COMPATIBILIDADE NECESSÁRIA
E EXIGIDA POR LEI PARA A REALIZAÇÃO DO TRANSPLANTE
– RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO." (fls. 291e/309e)
A parte recorrente opôs embargos de declaração contra o citado
acórdão, os quais foram rejeitados. (fls. 322e/329e)
Alegam, nas razões de recurso especial, que houve violação do
artigo 535, inciso II, do Código de Processo Civil, do artigo 13 do Código
Civil/02, e do artigo 9º da Lei n. 9.434/97.
Aduzem que a Lei n. 10.211/01, ao alterar a redação do
caput do
artigo 9º da Lei n. 9.434/97, retirou a eficácia do disposto no § 3º do artigo 15 do
Decreto n. 2.268/97, excluindo, portanto, a necessidade de haver a comprovação
de, pelo menos, quatro compatibilidades em relação aos antígenos leucocitários
humanos (HLA). (fls. 337e/358e)
O recorrido afirma, em suas contrarrazões de recurso especial, que
as recorrentes não são próximas; que o hospital, onde pretendem realizar o
transplante, está sendo investigado por irregularidades na unidade de
transplantes; que o resultado do exame de HLA não recomenda o procedimento;
que há laudo médico afirmando a incompatibilidade; que existe a possibilidade
de comércio de órgão; que não há afronta ao artigo 9º da Lei n. 9.434/97,
alterado pela Lei n. 10.211/01; que o § 3º do artigo 15 do Decreto n. 2.268/97
não perdeu eficácia; que não houve afronta ao artigo 13 do Código Civil/02; e,
que inexiste violação do inciso II do artigo 535 do Código de Processo Civil. (fls.
364e/385e)
O presente recurso especial foi admito na origem. (fls. 387e/389e)
É, no essencial, o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.144.720 - DF (2009/0113695-5)
EMENTA
TRANSPLANTE DE RIM – AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO
ART. 535, II, DO CPC – AUTORIZAÇÃO JUDICIAL –
NECESSIDADE – OBJETOS SINDICÁVEIS PELO PODER
JUDICIÁRIO: INEXISTÊNCIA DE LESÃO À INTEGRIDADE
FÍSICA DO DOADOR, NÃO-OCORRÊNCIA DE COMÉRCIO
OU DE QUALQUER TIPO DE CONTRAPRESTAÇÃO E
POTENCIAL EFICÁCIA DO TRANSPLANTE DE RIM –
INEXISTÊNCIA DE REVOGAÇÃO DO § 3º DO ART. 15 DO
DECRETO N. 2.268/97 PELA LEI N. 10.211/01 QUE ALTEROU
A REDAÇÃO DO
CAPUT DO ART. 9º DA LEI N. 9.434/97.
1. Inexiste violação do art. 535, II, do Código de
Processo Civil quando o aresto recorrido adota fundamentação
suficiente para dirimir a controvérsia, sendo desnecessária a
manifestação expressa sobre todos os argumentos apresentados
pelos litigantes.
2. A autorização judicial exigida no
caput do artigo
9º da Lei n. 9.434/97 tem três objetivos: (I) impedir lesão à
integridade física do doador; (II) impedir o comércio de órgãos ou
qualquer tipo de contraprestação; e, (III) assegurar, na forma do §
3º do artigo 15 do Decreto n. 2.268/97, potencial eficácia ao
transplante de rim.
3. Todas as exigências proporcionais e razoáveis
colocadas pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo para
evitar o comércio de órgão ou qualquer tipo de contraprestação e
assegurar a potencial eficácia do transplante de rim (direito à
saúde) são ratificadas pelo ordenamento jurídico pátrio.
4. É legal a exigência, para a retirada de rins, de
comprovação de, pelo menos, quatro compatibilidades em relação
aos antígenos leucocitários humanos (HLA), salvo entre cônjuges e
consanguíneos, na linha reta ou colateral, até o terceiro grau,
inclusive.
5. A Lei n. 10.211/01, ao alterar o
caput do art. 9º da
Lei n. 9.434/97, não revogou ou retirou a eficácia do § 3º do artigo
15 do Decreto n. 2.268/97, portanto correto o Tribunal de origem
na aplicação da Lei e do Decreto.
Recurso especial improvido.
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VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS
(Relator):
O presente processo ilustra bem a noção de que o juiz é um ser
solitário no ato de julgar.
Decidir sobre os direitos dos seus pares impõe ao magistrado
diversas angústias, pois, apesar da possibilidade de interferir na vidas dos seus
semelhantes, o julgador não é onipotente, onisciente ou onipresente.
Deve o responsável pela judicatura afastar seus sentimentos
pessoais para observar os postulados do Estado Democrático de Direito (
rule of
law
), uma vez que os órgãos criadores do Direito neste sistema (Senado, Câmara
dos Deputados e Presidente da República) são diretamente legitimados, enquanto
que os magistrados, aplicadores do Direito, são órgãos indiretamente
legitimados.
A propósito:
"A decisão do juiz deve ser uma reprodução ajustada ao caso
concreto do que fora produzido pelo legislador como Direito
válido e vigente, posto que ao magistrado não deve ser deixada
qualquer liberdade para o exercício da sua fantasia legislativa. Se
os juízes pudessem modificar o Direito posto pelo órgão legitimado
com base em critérios eqüitativos - observe-se que o subjetivismo
exagerado gera contradições - os juízes de diferentes competências
territoriais, mas subordinados à mesma jurisdição (a jurisdição é
una e a competência é a sua medida), poderiam exarar decisões
completamente diferentes em casos idênticos. Além disso, o
princípio da separação dos poderes, dogma adotado pela
Constituição Federal de 1988, seria negado pela presença de dois
legisladores. A obrigatória observância da lei tende a garantir dois
valores absolutamente importantes para o sistema jurídico
nacional: 1) a segurança jurídica; e 2) a democracia."
(COUTO FILHO, Reinaldo de Souza. Considerações sobre a
validade, a vigência e a eficácia das normas jurídicas.
Jus
Navigandi
, Teresina, ano 5, n. 49, fev. 2001. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=21>. Acesso em: 16
nov. 2009.)
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Assim, afasto minhas convicções pessoais para, observado o
princípio da legalidade, aplicar do Direito.
INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO INCISO II DO
ARTIGO 535 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Inexistente a alegada violação do artigo 535, inciso II, do CPC,
pois a prestação jurisdicional foi dada na medida da pretensão deduzida,
conforme se depreende da análise do acórdão recorrido.
Na verdade, a questão não foi decidida conforme objetivava a
recorrente, uma vez que foi aplicado entendimento diverso. É cediço, no STJ,
que o juiz não fica obrigado a manifestar-se sobre todas as alegações das partes,
nem a ater-se aos fundamentos indicados por elas ou a responder, um a um, a
todos os seus argumentos, quando já encontrou motivo suficiente para
fundamentar a decisão, o que de fato ocorreu.
Ressalte-se, ainda, que cabe ao magistrado decidir a questão de
acordo com o seu livre convencimento, utilizando-se dos fatos, provas,
jurisprudência, aspectos pertinentes ao tema e da legislação que entender
aplicável ao caso concreto.
Nessa linha de raciocínio, o disposto no art. 131 do Código de
Processo Civil:
"Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos
fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não
alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos
que lhe formaram o convencimento."
Em suma, nos termos de jurisprudência pacífica do STJ,
"o
magistrado não é obrigado a responder todas as alegações das partes se já tiver
encontrado motivo suficiente para fundamentar a decisão, nem é obrigado a
ater-se aos fundamentos por elas indicados.
" (REsp 684.311/RS, Rel. Min.
Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 4.4.2006, DJ 18.4.2006, p. 191),
como ocorreu na hipótese ora em apreço.
Nesse sentido, ainda, os precedentes:
"TRIBUTÁRIO – COFINS – SOCIEDADES CIVIS DE
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PROFISSIONAIS – ISENÇÃO –
MUDANÇA DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL NÃO
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FUNDAMENTA EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - AUSÊNCIA
DE OMISSÃO, OBSCURIDADE OU CONTRADIÇÃO.
1. A oposição de embargos declaratórios se faz apropriada
quando o pronunciamento judicial padecer de ambigüidade, de
obscuridade, de contradição ou de omissão, os quais inexistem
neste caso. Em contrapartida, sabe-se que o tribunal não está
compelido a manifestar-se sobre todas as questões suscitadas pela
parte, principalmente se o acórdão contém adequado fundamento
para justificar a conclusão perfilhada.
2. Nítido é o caráter modificativo que a embargante,
inconformada, busca com a oposição dos embargos declaratórios,
uma vez que pretende ver reexaminada e decidida a controvérsia
de acordo com sua tese.
3. A mudança de entendimento jurisprudencial sobre a
matéria não autoriza o manejo dos embargos de declaração com
pretensão de efeitos infringentes. Esta inferência decorre do
disposto no artigo 535, do Estatuto Processual Civil.
Embargo de declaração rejeitados."
(EDcl no AgRg no REsp 456.674/RS, relatado por este
Magistrado, Segunda Turma, julgado em 26.9.2006, DJ
10.10.2006, p. 291.)
"PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – IMPOSTO DE
RENDA SOBRE VERBAS INDENIZATÓRIAS – REPETIÇÃO DE
INDÉBITO – FORMA DE DEVOLUÇÃO – RETIFICAÇÃO DA
DECLARAÇÃO ANUAL – DESVIRTUAMENTO DO PEDIDO:
IMPOSSIBILIDADE.
1. Inexiste violação do art. 535 do CPC se as teses suscitadas
pela parte são implicitamente rejeitadas no aresto impugnado,
restando, portanto, prequestionadas.
2. Aplica-se o teor da Súmula 211/STJ às teses não
prequestionadas.
3. Se na inicial é formulado pedido de repetição de indébito
do imposto de renda, descabe ao Tribunal modificá-lo,
determinando a retificação da declaração anual e a compensação
com o imposto de renda porventura devido.
4. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte,
parcialmente provido."
(REsp 853.102/SC, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda
Turma, julgado em 19.9.2006, DJ 3.10.2006, p. 201.)
DA INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ARTIGO 13 DO
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CC/02 E AO ARTIGO 9º DA LEI N. 9.434/97
O artigo 13 do Código Civil/02 afirma, de maneira reversa, que é
possível dispor do próprio corpo quando não importar diminuição permanente da
integridade física ou não contrariar os bons costumes.
De fato, ninguém duvida que o ser humano possa dispor dos seus
cabelos, das suas unhas e de alguns dos seus fluídos; entretanto, a disposição
para fim de transplante não é regulada pelo artigo citado, e sim por lei especial.
Eis a norma do artigo 13 do Código Civil/02:
"Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de
disposição do próprio corpo, quando importar diminuição
permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido
para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial
."
(grifo meu.)
A norma especial tratada no parágrafo único acima é a Lei n.
9.434/97, Lei dos Transplantes. O Código Civil de 2002 deixou claro que, apesar
de lhe ser anterior, a citada lei não foi revogada, em face de sua especificidade.
Não se há falar, portanto, em violação do artigo 13 do Código
Civil/02.
A Lei dos Transplantes estabelece, no seu artigo 9º:
"Art. 9
o É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor
gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo,
para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes
consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4
o deste
artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização
judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. (Redação
dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)
§ 1º (VETADO)
§ 2º (VETADO)
§ 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se
tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do
corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de
continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não
represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde
mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e
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corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente
indispensável à pessoa receptora.
§ 4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por
escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou
parte do corpo objeto da retirada.
§ 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos
responsáveis legais a qualquer momento antes de sua
concretização.
§ 6º O indivíduo juridicamente incapaz, com compatibilidade
imunológica comprovada, poderá fazer doação nos casos de
transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de
ambos os pais ou seus responsáveis legais e autorização judicial e
o ato não oferecer risco para a sua saúde.
§ 7º É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes
de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido
para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não
oferecer risco à sua saúde ou ao feto.
§ 8º O auto-transplante depende apenas do consentimento do
próprio indivíduo, registrado em seu prontuário médico ou, se ele
for juridicamente incapaz, de um de seus pais ou responsáveis
legais."
Tal norma ilustra, de forma cristalina, a opção política adotada pelo
Poder Legislativo de permitir a disposição apenas a título gratuito, sendo certo
que a política atual tem como escopo macro proteger a vida, vedando o comércio
de órgão humanos.
A venda ou aluguel de órgãos não lesionaria apenas a integridade
física do doador ou os bons costumes, mas poderia deflagrar um comércio
desregulado, no qual as pessoas disporiam do próprio corpo, ou do corpo de
outra pessoa sob a sua tutela, como moeda de troca para assegurar lucro ou a sua
sobrevivência.
A ausência de regulação e regulamentação terminaria por instaurar
um sistema paralelo de comércio de órgãos que tocaria outros crimes como
sequestros e homicídios para a extração do material que se tornaria valioso.
A vida humana seria reduzida a questões meramente econômicas e
o seu valor e proteção seriam aviltados a extremos inimagináveis.
Pertinentes as palavras de Giovanni Berlinger,
in Donation, Organ
Transplantation and Human Market. Anais do VI Congresso Mundial de
Bioética, DF, de 30.10.2002 a 3.11.2002, p. 63, citado pelo Ministério Público:
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"As science makes different parts of the body transferable to
other individuals, the invisible hand of the market invades and
exploits the new fields. The principle of autonomy, whit implies the
availability of our own body, is misconstrued and confused with the
negotiability. The century-old market of human beings as a whole
(slavery) is replaced by technological biomarket."
Maria Auxiliadora Minahim, uma das maiores pesquisadoras sobre
Bioética e Biodireito do Brasil, ilustra bem, no seu livro
Direito Penal e
Biotecnologia
, São Paulo: RT, 2005, a dificuldade do ordenamento jurídico em
disciplinar as relações surgidas pela possibilidade de disposição de partes do
corpo humano, eis o texto:
"De certa forma, afirmar-se que a presença da tecnologia na
vida cotidiana apresenta desafios ao Direito não seria, per si,
motivo de controvérsias. Com efeito, a presença da tecnologia na
vida cotidiana altera a forma de vida que se pratica e, desta
maneira, cria perplexidades e conflitos que, vista a pluralidade de
interesses que se contrapõem na sociedade, cabe ao Direito
disciplinar e dirimir.
Entre todos os interesses que afetam a espécie humana, talvez
sejam os referentes à vida e à morte os que se revelam mais
inquietantes. Sendo a única espécie que parece exercitar a
auto-reflexão – pensar acerca dos seus próprios pensamentos – a
espécie humana tem consciência da transitoriedade de cada um de
seus indivíduos e preocupa-se com a possível transitoriedade dela
própria como espécie. Talvez seja esta a razão que as questões da
vida e da morte sejam as quais participam mais nitidamente da
identidade humana como ser que conhece sua própria
transitoriedade e, de certo modo, acalenta o ideal de superá-la.
Destacam-se, assim, as questões referentes à vida e à morte,
em meio a tantos outros desafios que a tecnologia trouxe ao
Direito, como aquelas com o potencial de mais agudamente
afetarem, em nível profundo, a configuração física e cultural da
sociedade. Por conseqüência, são elas que aparecem com maior
preeminência quando se reclama a interveniência do Direito no
seu papel de garantidor das formas estáveis de convivência
humana."
No caso dos transplantes, o Direito interveio para proibir todas as
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forma de comércio, seja envolvendo pecúnia seja envolvendo benefícios outros
de qualquer natureza.
Conforme salientado também por Maria Elisa Villas-Bôas,
in Da
Eutanásia ao Prolongamento Artificial: aspectos polêmicos na disciplina
jurídico-penal do final de vida.
Rio de Janeiro: Forense, 2005, a partir do
momento que você mantém um indivíduo com a finalidade de utilizar os seus
órgãos e/ou tecidos, resta descaracterizada a concepção Kantiana de que o ser
humano não pode ser meio para nada, pois ele é fim em si mesmo.
A autorização judicial exigida no
caput do artigo 9º da Lei n.
9.434/97 tem três objetivos: (I) impedir lesão à integridade física do doador; (II)
impedir o comércio de órgãos ou qualquer tipo de contraprestação; e, (III)
assegurar, na forma do § 3º do artigo 15 do Decreto n. 2.268/97, potencial
eficácia ao transplante renal.
O § 3º do artigo 15 do Decerto n. 2.268/97, norma
regulamentadora, do artigo 9º da Lei n. 9.434/97, tem o seguinte teor:
"Art 15. Qualquer pessoa capaz, nos termos da lei civil, pode
dispor de tecidos, órgãos e partes de seu corpo para serem
retirados, em vida, para fins de transplantes ou terapêuticas.
§ 3º Exigir-se-á, ainda, para a retirada de rins, a
comprovação de, pelo menos, quatro compatibilidades em relação
aos antígenos leucocitários humanos (HLA), salvo entre cônjuges e
consangüíneos, na linha reta ou colateral, até o terceiro grau
inclusive."
A jurisdição voluntária exercida deve, com ilustrado, sindicar
também, no caso de transplante de rins, as quatro compatibilidades em relação
aos HLA quando não estiver relacionado a cônjuges ou consanguíneos, na linha
reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive.
Ressalte-se que a Lei n. 10.211/01 não retirou a eficácia do § 3º
acima transcrito.
O ordenamento jurídico é um sistema autopoiético, ou seja, é
autorreferenciado, tem autogoverno e a criação das suas formas é disciplinada
pelo próprio sistema.
Desta qualificação erige o Princípio da Similitude das Formas, o
seu conteúdo estabelece que qualquer alteração normativa somente dar-se-á por
norma de forma idêntica.
Documento: 7104698 - RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 10de 11
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Assim, norma constitucional revoga norma constitucional, lei
complementar revoga lei complementar, lei ordinária revoga lei ordinária,
decreto revoga decreto.
Quando a norma constitucional superveniente torna incompatível
norma infraconstitucional não se fala em revogação, mas em não recepção.
Já quando a lei ordinária nova dispõe de maneira diversa do
estipulado em decreto não há revogação e sim retirada de eficácia do decreto.
As recorrentes argumentam ter a Lei n. 10.211/01 retirado a
eficácia do § 3º do artigo 15 do Decerto n. 2.268/97, mas isto não ocorreu, pois
somente é possível tal exclusão se a lei nova dispuser de maneira diversa, e tal
fato não ocorreu.
Assim, ficam claras a eficácia e a vigência do § 3º citado e resta
cristalino que inexistente no acórdão atacado qualquer violação do artigo 9º da
Lei n. 9.434/97, alterado pela Lei n. 10.211/01.
Não se debate aqui a existência ou não de incompatibilidades dos
HLA, pois todos os laudos juntados, inclusive das recorrentes, atestam a
não-ocorrência das quatro compatibilidade exigidas pelo § 3º do artigo 15 do
Decerto n. 2.268/97. Além disso, é fato atestado pelas instâncias inferiores cujo
reexame esbarraria na Súmula 7/STJ.
Ante o exposto, nego provimento ao presente recurso especial.
É como penso. É como voto.
MINISTRO HUMBERTO MARTINS
Relator
do site do STJ
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