terça-feira, 31 de julho de 2012

Biodireito - Acórdão para transplante de Rim - Direito à Saúde


RECURSO ESPECIAL Nº 1.144.720 - DF (2009/0113695-5)

RELATOR : MINISTRO HUMBERTO MARTINS


RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E

TERRITÓRIOS


RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS

(Relator):


Cuida-se de recurso especial interposto por E.e OUTROS, com base na alínea "a"

do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal/88, contra acórdão do

Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios assim ementado:


"DIREITO CIVIL – ALVARÁ JUDICIAL PARA TRANSPLANTE DE RIM – DOADORA VIVA – NECESSIDADE

DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL – VIGÊNCIA DO DECRETO LEI

Nº 2268/97 – AUSÊNCIA DE COMPATIBILIDADE NECESSÁRIA

E EXIGIDA POR LEI PARA A REALIZAÇÃO DO TRANSPLANTE

– RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO." (fls. 291e/309e)


A parte recorrente opôs embargos de declaração contra o citado

acórdão, os quais foram rejeitados. (fls. 322e/329e)

Alegam, nas razões de recurso especial, que houve violação do

artigo 535, inciso II, do Código de Processo Civil, do artigo 13 do Código

Civil/02, e do artigo 9º da Lei n. 9.434/97.

Aduzem que a Lei n. 10.211/01, ao alterar a redação do

caput do


artigo 9º da Lei n. 9.434/97, retirou a eficácia do disposto no § 3º do artigo 15 do

Decreto n. 2.268/97, excluindo, portanto, a necessidade de haver a comprovação

de, pelo menos, quatro compatibilidades em relação aos antígenos leucocitários

humanos (HLA). (fls. 337e/358e)

O recorrido afirma, em suas contrarrazões de recurso especial, que

as recorrentes não são próximas; que o hospital, onde pretendem realizar o

transplante, está sendo investigado por irregularidades na unidade de


transplantes; que o resultado do exame de HLA não recomenda o procedimento;

que há laudo médico afirmando a incompatibilidade; que existe a possibilidade

de comércio de órgão; que não há afronta ao artigo 9º da Lei n. 9.434/97,

alterado pela Lei n. 10.211/01; que o § 3º do artigo 15 do Decreto n. 2.268/97

não perdeu eficácia; que não houve afronta ao artigo 13 do Código Civil/02; e,

que inexiste violação do inciso II do artigo 535 do Código de Processo Civil. (fls.

364e/385e)

O presente recurso especial foi admito na origem. (fls. 387e/389e)

É, no essencial, o relatório.


RECURSO ESPECIAL Nº 1.144.720 - DF (2009/0113695-5)

EMENTA


BIODIREITO – DIREITO À SAÚDE – ALVARÁ –

TRANSPLANTE DE RIM – AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO

ART. 535, II, DO CPC – AUTORIZAÇÃO JUDICIAL –

NECESSIDADE – OBJETOS SINDICÁVEIS PELO PODER

JUDICIÁRIO: INEXISTÊNCIA DE LESÃO À INTEGRIDADE

FÍSICA DO DOADOR, NÃO-OCORRÊNCIA DE COMÉRCIO

OU DE QUALQUER TIPO DE CONTRAPRESTAÇÃO E

POTENCIAL EFICÁCIA DO TRANSPLANTE DE RIM –

INEXISTÊNCIA DE REVOGAÇÃO DO § 3º DO ART. 15 DO

DECRETO N. 2.268/97 PELA LEI N. 10.211/01 QUE ALTEROU

A REDAÇÃO DO

CAPUT DO ART. 9º DA LEI N. 9.434/97.


1. Inexiste violação do art. 535, II, do Código de

Processo Civil quando o aresto recorrido adota fundamentação

suficiente para dirimir a controvérsia, sendo desnecessária a

manifestação expressa sobre todos os argumentos apresentados

pelos litigantes.

2. A autorização judicial exigida no

caput do artigo


9º da Lei n. 9.434/97 tem três objetivos: (I) impedir lesão à

integridade física do doador; (II) impedir o comércio de órgãos ou

qualquer tipo de contraprestação; e, (III) assegurar, na forma do §

3º do artigo 15 do Decreto n. 2.268/97, potencial eficácia ao

transplante de rim.

3. Todas as exigências proporcionais e razoáveis

colocadas pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo para

evitar o comércio de órgão ou qualquer tipo de contraprestação e

assegurar a potencial eficácia do transplante de rim (direito à

saúde) são ratificadas pelo ordenamento jurídico pátrio.

4. É legal a exigência, para a retirada de rins, de

comprovação de, pelo menos, quatro compatibilidades em relação

aos antígenos leucocitários humanos (HLA), salvo entre cônjuges e

consanguíneos, na linha reta ou colateral, até o terceiro grau,

inclusive.

5. A Lei n. 10.211/01, ao alterar o

caput do art. 9º da


Lei n. 9.434/97, não revogou ou retirou a eficácia do § 3º do artigo

15 do Decreto n. 2.268/97, portanto correto o Tribunal de origem

na aplicação da Lei e do Decreto.

Recurso especial improvido.


Documento: 7104698 - RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 3 de 11


Superior Tribunal de Justiça

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS

(Relator):


O presente processo ilustra bem a noção de que o juiz é um ser

solitário no ato de julgar.

Decidir sobre os direitos dos seus pares impõe ao magistrado

diversas angústias, pois, apesar da possibilidade de interferir na vidas dos seus

semelhantes, o julgador não é onipotente, onisciente ou onipresente.

Deve o responsável pela judicatura afastar seus sentimentos

pessoais para observar os postulados do Estado Democrático de Direito (

rule of


law

), uma vez que os órgãos criadores do Direito neste sistema (Senado, Câmara


dos Deputados e Presidente da República) são diretamente legitimados, enquanto

que os magistrados, aplicadores do Direito, são órgãos indiretamente

legitimados.

A propósito:


"A decisão do juiz deve ser uma reprodução ajustada ao caso

concreto do que fora produzido pelo legislador como Direito

válido e vigente, posto que ao magistrado não deve ser deixada

qualquer liberdade para o exercício da sua fantasia legislativa. Se

os juízes pudessem modificar o Direito posto pelo órgão legitimado

com base em critérios eqüitativos - observe-se que o subjetivismo

exagerado gera contradições - os juízes de diferentes competências

territoriais, mas subordinados à mesma jurisdição (a jurisdição é

una e a competência é a sua medida), poderiam exarar decisões

completamente diferentes em casos idênticos. Além disso, o

princípio da separação dos poderes, dogma adotado pela

Constituição Federal de 1988, seria negado pela presença de dois

legisladores. A obrigatória observância da lei tende a garantir dois

valores absolutamente importantes para o sistema jurídico

nacional: 1) a segurança jurídica; e 2) a democracia."


(COUTO FILHO, Reinaldo de Souza. Considerações sobre a

validade, a vigência e a eficácia das normas jurídicas.

Jus


Navigandi

, Teresina, ano 5, n. 49, fev. 2001. Disponível em:


<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=21>. Acesso em: 16

nov. 2009.)


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Superior Tribunal de Justiça


Assim, afasto minhas convicções pessoais para, observado o

princípio da legalidade, aplicar do Direito.


INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO INCISO II DO

ARTIGO 535 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL


Inexistente a alegada violação do artigo 535, inciso II, do CPC,

pois a prestação jurisdicional foi dada na medida da pretensão deduzida,

conforme se depreende da análise do acórdão recorrido.

Na verdade, a questão não foi decidida conforme objetivava a

recorrente, uma vez que foi aplicado entendimento diverso. É cediço, no STJ,

que o juiz não fica obrigado a manifestar-se sobre todas as alegações das partes,

nem a ater-se aos fundamentos indicados por elas ou a responder, um a um, a

todos os seus argumentos, quando já encontrou motivo suficiente para

fundamentar a decisão, o que de fato ocorreu.

Ressalte-se, ainda, que cabe ao magistrado decidir a questão de

acordo com o seu livre convencimento, utilizando-se dos fatos, provas,

jurisprudência, aspectos pertinentes ao tema e da legislação que entender

aplicável ao caso concreto.

Nessa linha de raciocínio, o disposto no art. 131 do Código de

Processo Civil:


"Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos

fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não

alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos

que lhe formaram o convencimento."


Em suma, nos termos de jurisprudência pacífica do STJ,

"o


magistrado não é obrigado a responder todas as alegações das partes se já tiver

encontrado motivo suficiente para fundamentar a decisão, nem é obrigado a

ater-se aos fundamentos por elas indicados.

" (REsp 684.311/RS, Rel. Min.


Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 4.4.2006, DJ 18.4.2006, p. 191),

como ocorreu na hipótese ora em apreço.

Nesse sentido, ainda, os precedentes:


"TRIBUTÁRIO – COFINS – SOCIEDADES CIVIS DE

PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PROFISSIONAIS – ISENÇÃO –

MUDANÇA DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL NÃO


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FUNDAMENTA EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - AUSÊNCIA

DE OMISSÃO, OBSCURIDADE OU CONTRADIÇÃO.

1. A oposição de embargos declaratórios se faz apropriada

quando o pronunciamento judicial padecer de ambigüidade, de

obscuridade, de contradição ou de omissão, os quais inexistem

neste caso. Em contrapartida, sabe-se que o tribunal não está

compelido a manifestar-se sobre todas as questões suscitadas pela

parte, principalmente se o acórdão contém adequado fundamento

para justificar a conclusão perfilhada.

2. Nítido é o caráter modificativo que a embargante,

inconformada, busca com a oposição dos embargos declaratórios,

uma vez que pretende ver reexaminada e decidida a controvérsia

de acordo com sua tese.

3. A mudança de entendimento jurisprudencial sobre a

matéria não autoriza o manejo dos embargos de declaração com

pretensão de efeitos infringentes. Esta inferência decorre do

disposto no artigo 535, do Estatuto Processual Civil.

Embargo de declaração rejeitados."


(EDcl no AgRg no REsp 456.674/RS, relatado por este

Magistrado, Segunda Turma, julgado em 26.9.2006, DJ

10.10.2006, p. 291.)


"PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – IMPOSTO DE

RENDA SOBRE VERBAS INDENIZATÓRIAS – REPETIÇÃO DE

INDÉBITO – FORMA DE DEVOLUÇÃO – RETIFICAÇÃO DA

DECLARAÇÃO ANUAL – DESVIRTUAMENTO DO PEDIDO:

IMPOSSIBILIDADE.

1. Inexiste violação do art. 535 do CPC se as teses suscitadas

pela parte são implicitamente rejeitadas no aresto impugnado,

restando, portanto, prequestionadas.

2. Aplica-se o teor da Súmula 211/STJ às teses não

prequestionadas.

3. Se na inicial é formulado pedido de repetição de indébito

do imposto de renda, descabe ao Tribunal modificá-lo,

determinando a retificação da declaração anual e a compensação

com o imposto de renda porventura devido.

4. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte,

parcialmente provido."


(REsp 853.102/SC, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda

Turma, julgado em 19.9.2006, DJ 3.10.2006, p. 201.)


DA INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ARTIGO 13 DO


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CC/02 E AO ARTIGO 9º DA LEI N. 9.434/97


O artigo 13 do Código Civil/02 afirma, de maneira reversa, que é

possível dispor do próprio corpo quando não importar diminuição permanente da

integridade física ou não contrariar os bons costumes.

De fato, ninguém duvida que o ser humano possa dispor dos seus

cabelos, das suas unhas e de alguns dos seus fluídos; entretanto, a disposição

para fim de transplante não é regulada pelo artigo citado, e sim por lei especial.

Eis a norma do artigo 13 do Código Civil/02:


"Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de

disposição do próprio corpo, quando importar diminuição

permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido

para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial
."


(grifo meu.)

A norma especial tratada no parágrafo único acima é a Lei n.

9.434/97, Lei dos Transplantes. O Código Civil de 2002 deixou claro que, apesar

de lhe ser anterior, a citada lei não foi revogada, em face de sua especificidade.

Não se há falar, portanto, em violação do artigo 13 do Código

Civil/02.

A Lei dos Transplantes estabelece, no seu artigo 9º:


"Art. 9
o É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor

gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo,

para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes

consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4
o deste

artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização

judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. (Redação

dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

§ 1º (VETADO)

§ 2º (VETADO)

§ 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se

tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do

corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de

continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não

represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde

mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e


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corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente

indispensável à pessoa receptora.

§ 4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por

escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou

parte do corpo objeto da retirada.

§ 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos

responsáveis legais a qualquer momento antes de sua

concretização.

§ 6º O indivíduo juridicamente incapaz, com compatibilidade

imunológica comprovada, poderá fazer doação nos casos de

transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de

ambos os pais ou seus responsáveis legais e autorização judicial e

o ato não oferecer risco para a sua saúde.

§ 7º É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes

de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido

para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não

oferecer risco à sua saúde ou ao feto.

§ 8º O auto-transplante depende apenas do consentimento do

próprio indivíduo, registrado em seu prontuário médico ou, se ele

for juridicamente incapaz, de um de seus pais ou responsáveis

legais."


Tal norma ilustra, de forma cristalina, a opção política adotada pelo

Poder Legislativo de permitir a disposição apenas a título gratuito, sendo certo

que a política atual tem como escopo macro proteger a vida, vedando o comércio

de órgão humanos.

A venda ou aluguel de órgãos não lesionaria apenas a integridade

física do doador ou os bons costumes, mas poderia deflagrar um comércio

desregulado, no qual as pessoas disporiam do próprio corpo, ou do corpo de

outra pessoa sob a sua tutela, como moeda de troca para assegurar lucro ou a sua

sobrevivência.

A ausência de regulação e regulamentação terminaria por instaurar

um sistema paralelo de comércio de órgãos que tocaria outros crimes como

sequestros e homicídios para a extração do material que se tornaria valioso.

A vida humana seria reduzida a questões meramente econômicas e

o seu valor e proteção seriam aviltados a extremos inimagináveis.

Pertinentes as palavras de Giovanni Berlinger,

in Donation, Organ


Transplantation and Human Market. Anais do VI Congresso Mundial de

Bioética, DF, de 30.10.2002 a 3.11.2002, p. 63, citado pelo Ministério Público:


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"As science makes different parts of the body transferable to

other individuals, the invisible hand of the market invades and

exploits the new fields. The principle of autonomy, whit implies the

availability of our own body, is misconstrued and confused with the

negotiability. The century-old market of human beings as a whole

(slavery) is replaced by technological biomarket."


Maria Auxiliadora Minahim, uma das maiores pesquisadoras sobre

Bioética e Biodireito do Brasil, ilustra bem, no seu livro

Direito Penal e


Biotecnologia

, São Paulo: RT, 2005, a dificuldade do ordenamento jurídico em


disciplinar as relações surgidas pela possibilidade de disposição de partes do

corpo humano, eis o texto:


"De certa forma, afirmar-se que a presença da tecnologia na

vida cotidiana apresenta desafios ao Direito não seria, per si,

motivo de controvérsias. Com efeito, a presença da tecnologia na

vida cotidiana altera a forma de vida que se pratica e, desta

maneira, cria perplexidades e conflitos que, vista a pluralidade de

interesses que se contrapõem na sociedade, cabe ao Direito

disciplinar e dirimir.

Entre todos os interesses que afetam a espécie humana, talvez

sejam os referentes à vida e à morte os que se revelam mais

inquietantes. Sendo a única espécie que parece exercitar a

auto-reflexão – pensar acerca dos seus próprios pensamentos – a

espécie humana tem consciência da transitoriedade de cada um de

seus indivíduos e preocupa-se com a possível transitoriedade dela

própria como espécie. Talvez seja esta a razão que as questões da

vida e da morte sejam as quais participam mais nitidamente da

identidade humana como ser que conhece sua própria

transitoriedade e, de certo modo, acalenta o ideal de superá-la.

Destacam-se, assim, as questões referentes à vida e à morte,

em meio a tantos outros desafios que a tecnologia trouxe ao

Direito, como aquelas com o potencial de mais agudamente

afetarem, em nível profundo, a configuração física e cultural da

sociedade. Por conseqüência, são elas que aparecem com maior

preeminência quando se reclama a interveniência do Direito no

seu papel de garantidor das formas estáveis de convivência

humana."


No caso dos transplantes, o Direito interveio para proibir todas as


Documento: 7104698 - RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 9 de 11


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forma de comércio, seja envolvendo pecúnia seja envolvendo benefícios outros

de qualquer natureza.

Conforme salientado também por Maria Elisa Villas-Bôas,

in Da


Eutanásia ao Prolongamento Artificial: aspectos polêmicos na disciplina

jurídico-penal do final de vida.

Rio de Janeiro: Forense, 2005, a partir do


momento que você mantém um indivíduo com a finalidade de utilizar os seus

órgãos e/ou tecidos, resta descaracterizada a concepção Kantiana de que o ser

humano não pode ser meio para nada, pois ele é fim em si mesmo.

A autorização judicial exigida no

caput do artigo 9º da Lei n.


9.434/97 tem três objetivos: (I) impedir lesão à integridade física do doador; (II)

impedir o comércio de órgãos ou qualquer tipo de contraprestação; e, (III)

assegurar, na forma do § 3º do artigo 15 do Decreto n. 2.268/97, potencial

eficácia ao transplante renal.

O § 3º do artigo 15 do Decerto n. 2.268/97, norma

regulamentadora, do artigo 9º da Lei n. 9.434/97, tem o seguinte teor:


"Art 15. Qualquer pessoa capaz, nos termos da lei civil, pode

dispor de tecidos, órgãos e partes de seu corpo para serem

retirados, em vida, para fins de transplantes ou terapêuticas.

§ 3º Exigir-se-á, ainda, para a retirada de rins, a

comprovação de, pelo menos, quatro compatibilidades em relação

aos antígenos leucocitários humanos (HLA), salvo entre cônjuges e

consangüíneos, na linha reta ou colateral, até o terceiro grau

inclusive."


A jurisdição voluntária exercida deve, com ilustrado, sindicar

também, no caso de transplante de rins, as quatro compatibilidades em relação

aos HLA quando não estiver relacionado a cônjuges ou consanguíneos, na linha

reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive.

Ressalte-se que a Lei n. 10.211/01 não retirou a eficácia do § 3º

acima transcrito.

O ordenamento jurídico é um sistema autopoiético, ou seja, é

autorreferenciado, tem autogoverno e a criação das suas formas é disciplinada

pelo próprio sistema.

Desta qualificação erige o Princípio da Similitude das Formas, o

seu conteúdo estabelece que qualquer alteração normativa somente dar-se-á por

norma de forma idêntica.


Documento: 7104698 - RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 10de 11


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Assim, norma constitucional revoga norma constitucional, lei

complementar revoga lei complementar, lei ordinária revoga lei ordinária,

decreto revoga decreto.

Quando a norma constitucional superveniente torna incompatível

norma infraconstitucional não se fala em revogação, mas em não recepção.

Já quando a lei ordinária nova dispõe de maneira diversa do

estipulado em decreto não há revogação e sim retirada de eficácia do decreto.

As recorrentes argumentam ter a Lei n. 10.211/01 retirado a

eficácia do § 3º do artigo 15 do Decerto n. 2.268/97, mas isto não ocorreu, pois

somente é possível tal exclusão se a lei nova dispuser de maneira diversa, e tal

fato não ocorreu.

Assim, ficam claras a eficácia e a vigência do § 3º citado e resta

cristalino que inexistente no acórdão atacado qualquer violação do artigo 9º da

Lei n. 9.434/97, alterado pela Lei n. 10.211/01.

Não se debate aqui a existência ou não de incompatibilidades dos

HLA, pois todos os laudos juntados, inclusive das recorrentes, atestam a

não-ocorrência das quatro compatibilidade exigidas pelo § 3º do artigo 15 do

Decerto n. 2.268/97. Além disso, é fato atestado pelas instâncias inferiores cujo

reexame esbarraria na Súmula 7/STJ.

Ante o exposto, nego provimento ao presente recurso especial.

É como penso. É como voto.

MINISTRO HUMBERTO MARTINS

Relator

do site do STJ

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