quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Francisco Mora: “É preciso acabar com o formato das aulas de 50 minutos”


Especialista em Neuroeducação aposta na mudança de metodologias, mas pede cautela na aplicação da neurociência na educação

A neuroeducação, disciplina que estuda como o cérebro aprende, está dinamitando as metodologias tradicionais de ensino. Sua principal contribuição é que o cérebro precisa se emocionar para aprender e, de alguns anos para cá, não existe ideia inovadora considerada válida que não contenha esse princípio. No entanto, uma das maiores referências na Espanha nesse campo, o doutor em Medicina Francisco Mora, recomenda cautela e adverte que na neuroeducação ainda há mais perguntas do que respostas.
Mora, autor do livro Neuroeducación. Solo se puede aprender aquello que se ama (Neuroeducação. Só se pode aprender aquilo que se ama), que já atingiu a marca de onze edições desde 2013, também é doutor em neurociência pela Universidade de Oxford. Começou a se interessar pelo assunto em 2010, quando participou do primeiro Congresso Mundial de Neuroeducação realizado no Peru.

Mora argumenta que a educação pode ser transformada para tornar a aprendizagem mais eficaz, por exemplo, reduzindo o tempo das aulas para menos de 50 minutos para que os alunos sejam capazes de manter a atenção. O professor de Fisiologia Humana da Universidade Complutense alerta que na educação ainda são consideradas válidas concepções equivocadas sobre o cérebro, o que ele chama de neuromitos. Além disso, Mora está ligado ao Departamento de Fisiologia Molecular e Biofísica da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos.


Pergunta. Por que é importante levar em conta as descobertas da neuroeducação para transformar a forma de aprender?
Resposta. No contexto internacional há muita fome para ancorar em algo sólido o que até agora são apenas opiniões, e esse interesse se dá especialmente entre os professores. O que a neuroeducação faz é transferir a informação de como o cérebro funciona com a melhoria dos processos de aprendizagem. Por exemplo, saber quais estímulos despertam a atenção, que em seguida dá lugar à emoção, pois sem esses dois fatores nenhuma aprendizagem ocorre. O cérebro humano não mudou nos últimos 15.000 anos; poderíamos ter uma criança do paleolíticoinferior numa escola e o professor não perceber. A educação tampouco mudou nos últimos 200 anos e já temos algumas evidências de que é urgente fazer essa transformação. Devemos redesenhar a forma de ensinar.
P. Quais são as certezas que já podem ser aplicadas?
R. Uma delas é a idade em que se deve aprender a ler. Hoje sabemos que os circuitos neurais que codificam para transformar de grafema a fonema, o que você lê e o que você diz, não fazem conexões sinápticas antes dos seis anos. Se os circuitos que permitirão aprender a ler não estão formados, se poderá ensinar com um chicote, com sacrifício, sofrimento, mas não de forma natural. Se você começa com seis, em pouquíssimo tempo aprenderá, enquanto que se começar com quatro talvez consiga, mas com enorme sofrimento. Tudo o que é doloroso tendemos a rejeitar, não queremos, enquanto aquilo que é prazeroso tentamos repetir.
P. Qual é a principal mudança que o sistema de ensino atual deve sofrer?
R. Hoje estamos começando a saber que ninguém pode aprender qualquer coisa se não estiver motivado. É necessário despertar a curiosidade, que é o mecanismo cerebral capaz de detectar a diferença na monotonia diária. Presta-se atenção àquilo que se destaca. Estudos recentes mostram que a aquisição de conhecimentos compartilha substratos neuronais com a busca de água, alimentos e sexo. O prazeroso. Por isso é preciso acender uma emoção no aluno, que é a base mais importante sobre a qual se apoiam os processos de aprendizagem e memória. As emoções servem para armazenar e recordar de uma forma mais eficaz.
P. Quais estratégias o professor pode usar para despertar essa curiosidade?

Sabemos que para um aluno prestar atenção na aula não basta exigir que ele o faça

R. Ele deve começar a aula com algum elemento provocador, uma frase ou uma imagem que seja chocante. Romper o esquema e sair da monotonia. Sabemos que para um aluno prestar atenção na aula não basta exigir que ele o faça. A atenção deve ser evocada com mecanismos que a psicologia e a neurociência estão começando a desvendar. Métodos associados à recompensa, e não à punição. Desde que somos mamíferos, há mais de 200 milhões de anos, a emoção é o que nos move. Os elementos desconhecidos, que nos surpreendem, são aqueles que abrem a janela da atenção, imprescindível para a aprendizagem.
P. O senhor alertou em várias ocasiões para a necessidade de ser cauteloso em 
http://brasil.elpais.com/autor/ana_torres_menarguez/a/ 


relação às evidências da neuroeducação. Em que ponto o senhor está?
R. A neuroeducação não é como o método Montessori, não existe um decálogo que possa ser aplicado. Ainda não é uma disciplina acadêmica com um corpo ordenado de conhecimentos. Precisamos de tempo para continuar pesquisando porque o que conhecemos hoje em profundidade sobre o cérebro não é totalmente aplicável ao dia a dia em sala de aula. Muitos cientistas dizem que é muito cedo para levar a neurociência às escolas, primeiro porque os professores não entendem do que você está lhes falando e segundo porque não há literatura científica suficiente para afirmar em quais idades é melhor aprender quais conteúdos e como. Há flashes de luz.
P. O senhor poderia contar alguns dos mais recentes?
R. Estamos percebendo, por exemplo, que a atenção não pode ser mantida durante 50 minutos, por isso é preciso romper o formato atual das aulas. Mais vale assistir 50 aulas de 10 minutos do que 10 aulas de 50 minutos. Na prática, uma vez que esses formatos não serão alterados em breve, os professores devem quebrar a cada 15 minutos com um elemento disruptor: uma anedota sobre um pesquisador, uma pergunta, um vídeo que levante um assunto diferente... Há algumas semanas, a Universidade de Harvard me encarregou de criar um MOOC (curso online aberto e massivo, na sigla em inglês) sobre Neurociência. Tenho de concentrar tudo em 10 minutos para que os alunos absorvam 100% do conteúdo. Nessa linha irão as coisas no futuro.P. Em seu livro Neuroeducação: Só se pode aprender aquilo que se ama, o senhor adverte sobre o perigo dos chamados neuromitos. Quais são os mais difundidos?
R. Há muita confusão e erros de interpretação dos fatos científicos, o que chamamos de neuromitos. Um dos mais generalizados é que utilizamos apenas 10% da capacidade do cérebro. Ainda se vendem programas de computador baseados nisso e as pessoas acreditam que poderão aumentar suas capacidades e inteligência para além de suas próprias limitações. Nada pode substituir o lento e difícil processo do trabalho e da disciplina quando se trata de aumentar as capacidades intelectuais. Além disso, o cérebro utiliza todos os seus recursos a cada vez que se depara com a resolução de problemas, com processos de aprendizagem ou de memória.
Outro neuromito é o que fala do cérebro direito e esquerdo e que as crianças deveriam ser classificadas em função de qual dos dois cérebros é mais desenvolvido nelas. Ao analisar as funções de ambos os hemisférios em laboratório, constatou-se que o hemisfério direito é o criador e o esquerdo é o analítico – o da linguagem e da matemática. Extrapolou-se a ideia de que há crianças com predominância de cérebros direitos ou esquerdos e criou-se o equívoco, o mito, de que há dois cérebros que trabalham de forma independente, e que se tal separação não for feita na hora de ensinar as crianças, isso as prejudica. Essa dicotomia não existe, a transferência de informações entre os dois hemisférios é constante. Se temos talentos mais próximos da matemática ou do desenho, isso não se refere aos hemisférios, mas à produção conjunta de ambos.
P. A neuroeducação está influindo em outros aspectos do ensino?
R. Há um movimento muito interessante que é o da neuroarquitetura, que visa à criação de escolas com formas inovadoras que gerem bem-estar enquanto se aprende. A Academia de Neurociências para o Estudo da Arquitetura, nos Estados Unidos, reuniu arquitetos e neurocientistas para conceber novos modos de construir. Novos edifícios nos quais, embora seja importante seu desenho arquitetônico, a luz seja contemplada, assim como a temperatura e o ruído, que tanto afetam o rendimento mental.

do site http://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/17/economia/1487331225_284546.html

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

O tabu do suicídio assistido no Brasil: morte digna ou crime contra a vida?

Aos 90 anos, o escritor Carlos Heitor Cony não perde o tom jocoso.
Quando indagado sobre o que ainda falta para se sentir realizado, o autor de O Ventre O Piano e a Orquestra Quase Memória , romances premiados da literatura brasileira, não pensa duas vezes: "Morrer". E arremata: "Mas, se quiserem me dar o Nobel, aceito!".
Desde que foi diagnosticado com um câncer linfático, em 2001, Cony tem pensado muito na morte. "De certa forma, somos todos terminais desde que nascemos", escreveu em O Homem Terminal .
"Envelhecer é porcaria. Um homem depois dos 50 é anti-higiênico. Por isso, eu me mataria um dia", confidenciou em Memorial do Inverno.
O câncer obrigou Cony a fazer quimioterapia, o que enfraqueceu seus braços e pernas. Em 2013, levou um tombo na Feira dio Livro de Frankfurt, que gerou um coágulo no cérebro "do tamanho de uma maçã".
Hoje, Cony anda de cadeira de rodas, perdeu o movimento do lado direito do corpo e compara o apartamento onde vive, no bairro da Lagoa, zona sul do Rio de Janeiro, a uma UTI. Por essas e outras, se diz solidário a quem cogita a hipótese de suicídio assistido.
"Ninguém quer morrer sofrendo, chorando e gritando. Eu, pelo menos, não. Quero morrer numa boa", avisa.
Mas, para evitar abusos e mal-entendidos, ressalva, algumas premissas devem que ser obedecidas. Uma delas é o paciente manifestar sua vontade por escrito, com a concordância de três ou quatro membros da família.
Outra é o médico emitir um atestado comprovando que o paciente é terminal e o estado dele, irreversível.
"Há casos em que os remédios já não produzem mais efeito, a família gasta um dinheiro que não tem e, pior, o paciente não tem mais condições de viver, só de sofrer. Se não há uma solução médica ou científica, o suicídio assistido é a saída mais humana que existe", afirma Cony.
O assunto, apesar de macabro, como o próprio Cony admite, é recorrente.
Em outubro do ano passado, o ex-arcebispo sul-africano Desmond Tutu defendeu, na ocasião de seu aniversário de 85 anos, o direito ao suicídio assistido ao pedir que, no fim de sua vida, seja tratado com compaixão.
"Por que tantos são obrigados a suportar terríveis sofrimentos contra sua vontade?", indagou em artigo publicado no jornal americano The Washington Post . "Não quero que me mantenham vivo a qualquer preço", afirmou o Nobel da Paz, que há 20 anos luta contra um câncer de próstata.
Desmond Tutu não é o único adepto da morte digna e indolor. Em junho de 2015, durante entrevista à BBC Brasil, o físico britânico Stephen Hawking, 73, afirmou que, caso se tornasse um fardo para as pessoas ao seu redor ou se não tivesse "mais nada a contribuir", consideraria a hipótese de dar cabo da própria vida.
"Manter alguém vivo contra sua vontade é a derradeira indignidade", declarou Hawking, que desde os 21 anos sofre de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), doença degenerativa e incurável que ataca os neurônios responsáveis pelos movimentos do corpo e provoca perda de controle muscular.
No Brasil, o tema já inspirou, além de algumas crônicas de Cony, o romance A Mãe Eterna - Morrer É um Direito , da psicanalista e escritora Betty Milan.
Nele, a narradora fala da dificuldade de passar da condição de filha para mão da mãe. A certa altura, ela se pergunta até quando a vida deve ser prolongada e questiona a obsessão terapêutica do médico, que procura vencer a morte a todo custo.
"O suicídio assistido é um benefício sempre que a pessoa expressa claramente seu desejo de ir embora ou porque está sofrendo, como no caso de Desmond Tutu, ou por considerar que cumpriu sua missão na Terra, como Stephen Hawking", diz Betty, que buscou inspiração na própria história e na de sua mãe para escrever o livro.
Dona Rosa, hoje com 99 anos, anda com dificuldade, escuta pouco e enxerga mal.
"Para certas pessoas, o envelhecimento é insuportável e o fim da vida deve ser humanizado. Se nós tivermos certeza de que vamos ser ajudados a morrer, viveremos muito melhor. O prolongamento de uma vida sem qualidade pode ser considerado um crime", afirma a escritora.
Apenas alguns poucos países, como Holanda, Suíça e Bélgica, autorizam a prática. A Holanda se tornou o primeiro a descriminalizar o suicídio assistido, em 2002. Lá, é preciso que a doença seja incurável e que o paciente esteja "lúcido e consciente" ao pedir ajuda para morrer.
A Suíça é o único país do mundo onde um estrangeiro pode se matar com a ajuda de terceiros. Para tanto, precisa desembolsar cerca de 4.400 francos suíços - o equivalente a R$ 13.200, fora as despesas com hotel, traslado e passagem aérea.
Desde 1998, quando foi fundada, até 2014, a associação Dignitas, o mais famoso centro de suicídio assistido da Suíça, já ajudou mais de 1.700 doentes terminais ou pacientes com doenças incuráveis e progressivas a terem uma morte rápida e indolor com uma dose de 15 mg de uma substância letal misturada com 60 ml de água.
O lema da instituição é "Viver com dignidade. Morrer com dignidade".
A legislação suíça permite o suicídio assistido desde que não seja por "motivos egoístas". Por exemplo: ajudar uma tia a morrer só para colocar as mãos em sua fortuna. Já nos EUA, a decisão cabe a cada Estado. Atualmente, é permitido em apenas seis: Washington, Oregon, Vermont, Novo México, Montana e Califórnia.
O Brasil não tem legislação sobre o tema. Por meio de seu artigo 122, o Código Penal proíbe o ato de "induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça". O crime é passível de pena de dois a seis anos de prisão quando o suicídio é consumado, ou de um a três, caso a tentativa resulte em lesão corporal grave.
"Os que se opõem à prática sustentam ser dever do poder público preservar, a todo custo, a vida humana", analisa a advogada Maria de Fátima Freire de Sá, pesquisadora do Centro de Estudos em Biodireito (CEBID) e autora do livro Direito de Morrer - Eutanásia e Suicídio Assistido. "Muitas vezes, eventuais direitos do indivíduo estariam subordinados aos direitos do Estado. Para os que a defendem, o conceito de vida precisa ser repensado. Será que vida digna é aquela segundo a qual o indivíduo ainda se mantenha ligado a aparelhos, totalmente infeliz e dependente da boa vontade dos outros?"
Procurada pela reportagem, a Associação Médica Brasileira (AMB) informou que não tem uma posição sobre o assunto. Mas adiantou que, em março, representantes da entidade vão se reunir com membros do Conselho Federal de Medicina (CFM) para debater o tema.
Desde 2006, o CFM procura disciplinar o uso de tratamentos fúteis (considerados inúteis) em pacientes na fase terminal da vida. Por meio de uma resolução, os médicos podem suspender o tratamento ou os procedimentos que estão prolongando a vida desse doente, se for o desejo dele, com o objetivo de lhe abreviar a morte, sem sofrimento.
Na maioria dos casos, mantêm-se as medidas ordinárias, como as que visam reduzir a dor do paciente, e suspendem-se as extraordinárias ou as que estão dando suporte à vida.
"A ortotanásia (ou "morte correta") dá ao cidadão enfermo grave, em circunstâncias de doença terminal e irreversível, o direito de morrer com dignidade, sem a obrigatoriedade de uso de meios desproporcionais em respeito a sua vontade", explica o médico Carlos Vital, presidente do CFM.
"Seu advento garante a humanização do processo de morte ao evitar prolongamentos irracionais e cruéis da vida do paciente", acrescenta ele.
"Uma coisa é matar. Outra, completamente diferente, é não conseguir impedir uma morte."
A posição do CFM é endossada pela Igreja Católica. O bispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, Dom Antônio Augusto Dias Duarte, explica que a vida é um dom de Deus e, como tal, temos um poder relativo sobre ela.
"A vida não nos pertence. Não podemos concebê-la. Da mesma forma, uma vez perdida, não podemos recuperá-la. Somos administradores de um dom recebido por Deus. Por essa razão, a Igreja recomenda às pessoas que não optem pelo suicídio assistido", explica Dom Antônio Augusto.
Ex-professor do Curso de Pós-Graduação de Bioética da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), Dom Augusto, que também é médico, lembra que, em seus últimos dias, o papa João Paulo 2º tomou a decisão de não mais ir ao hospital para se submeter a meios desproporcionais de tratamento.
Na ocasião, a doença já tinha evoluído de tal maneira que permanecer ligado aos aparelhos apenas prolongaria seu sofrimento físico e moral.
"No suicídio assistido, você mata a pessoa. Na ortotanásia, a exemplo do que aconteceu com o santo padre, você não consegue impedir a morte dela. São duas coisas completamente diferentes", enfatiza Dom Antônio.
Quanto a Carlos Heitor Cony, embora diga que, da vida, só espera a morte, ele já trabalha em dois novos livros: Missa para o Papa Marcelo eCinco Prudentes Virgens , ambos sem previsão de lançamento.
"No meu primeiro romance, já dizia que não queria morrer como negociante falido ou amante renegado. Quero morrer lúcido. Por isso, sigo trabalhando", justifica o escritor.
do site BBC Brasil

Mãe luta na Justiça para obrigar filho a fazer tratamento de saúde


O jovem de 22 anos foi diagnosticado com uma doença que impede o funcionamento dos rins ''Ele decidiu morrer e acha que é um direito'', diz a mãe
                                    
"É egoísmo uma mãe querer que o filho não desista de viver? Acho que não. Eu faria isso por qualquer pessoa, mesmo que não fosse meu filho." Assim a professora Edina Maria Alves Borges, de 55 anos, justifica ter iniciado uma batalha judicial contra o próprio filho, José Humberto Pires de Campos Filho, de 22, para obrigá-lo a submeter-se a sessões de hemodiálise. "Ele decidiu morrer e acha que é um direito. Como mãe, só quero que ele lute pela vida dele."
Mãe e filho moram em Trindade, cidade vizinha de Goiânia (GO), e o rapaz foi diagnosticado com uma doença que impede o funcionamento dos rins. Desde os 15 anos, Humberto vivia com o pai nos Estados Unidos, onde concluiu o ensino médio e tinha plano de fazer universidade. "Ele foi passar as férias com o pai, que é controlador de voo e reside em Boston, e decidiu ficar por lá."
Ela conta que a doença só foi descoberta em julho de 2015. "Ele fazia esportes, nadava muito bem, mas trabalhava em um restaurante para ter direito a residência permanente. No dia 23 de julho, viu que os pés estavam inchados e achou que era do trabalho. Dias depois estava internado. Em setembro, fizeram a biópsia e diagnosticaram a doença renal, só resolvida com transplante."
Edina conta que a resistência ao tratamento começou aí. "Ele tinha plano de saúde, mas se negava a ir para o hospital. Também recusou a lista de transplante. Ele passou a ficar na casa da minha filha, que também mora nos Estados Unidos, mas ela não estava aguentando mais. Ele não queria se tratar e ela não tinha condições psicológicas para lidar com isso, então pedi que viesse embora." 
O jovem retornou em maio de 2016, mas continuou resistindo a tratar-se. Só em dezembro aceitou passar por sessões de hemodiálise. "Ele foi convidado para o Incor de Brasília para uma consulta preparatória para o transplante, mas recusou e o médico não pode fazer nada."

Mãe desistiu da carreira de professora para cuidar do filho

Edina é professora e dava aulas de Educação Física na rede estadual, mas desistiu da carreira para cuidar do filho. Hoje, trabalha em casa e os dois dividem o mesmo teto. Em casa, os conflitos giram exclusivamente em torno da saúde dele. "A Medicina tem recursos e ele tem plano de saúde, eu só quero que se trate. Como um jovem que nem completou a formação universitária, não seguiu uma carreira profissional, nem teve um relacionamento amoroso mais duradouro pode decidir em que momento pode parar a vida?"
Justiça. Foi isso que ela argumentou com o juiz na audiência em que conseguiu a interdição parcial do filho para obrigá-lo, ao menos, a fazer a hemodiálise. Foi quando o juiz perguntou se ela não estava sendo egoísta ao querer decidir sobre a vida do filho. Ela sabe que José Humberto vai tentar convencer a Justiça de que é livre para aceitar ou não um tratamento médico. 
Uma perícia feita pela Junta Médica do Tribunal de Justiça de Goiás atestou que ele tem "total capacidade de entendimento", mas "imaturidade afetiva e emocional", o que tornaria parcial sua capacidade de tomar decisões. Por isso, determinou-se a hemodiálise.
Advogado. Na quarta-feira, 15, José Humberto compareceu à subsecção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Trindade, para conversar com o advogado nomeado para o caso. Ele pretende derrubar a liminar. "Se a Justiça me tirar, o plano de saúde suspende a cobertura e o hospital nega o atendimento, a não ser que ele esteja em coma", diz ela. Sua esperança é uma consulta com um psiquiatra que o jovem terá amanhã. "Dizem que está com síndrome de luto, pois quer se entregar à doença e não se sente culpado pelo que eu estou passando. Mas parece interessado nessa consulta."
Edina conversou com a reportagem por telefone, em casa, sem evitar que o filho ouvisse trechos da conversa. "Ele está no quarto, passando mal, porque ontem quebrou a dieta e comeu pizza e lasanha. Está revoltado porque hoje à tarde vai ter de fazer hemodiálise. Ele não quer falar com ninguém, fica no quarto, todo coberto, com o ar-condicionado ligado no máximo", afirma ela. "A gente conversa, mas tem muitas horas de silêncio. As horas ficam longas, parece que o dia não passa." As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

do site do UOL

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Anvisa mantém posição: medicamento genérico é seguro

Por: Ascom/Anvisa -portal Anvisa
Publicado: 06/02/2017 

Anvisa mantém seu posicionamento: os medicamentos genéricos a que os brasileiros têm acesso são seguros e os testes realizados pelo laboratório Cedafar, da UFMG, são insuficientes para atestar se um determinado medicamento tem ou não qualidade.

A Anvisa foi novamente citada pelo Programa Fantástico, da rede Globo, na edição deste domingo (05/02), em matéria intitulada “Anvisa questiona teste dos remédios genéricos, mas comete imprecisões”. A reportagem discute pontos da nota emitida pela Agência em razão de matéria anterior, onde o Fantástico levantou dúvidas sobre a qualidade dos medicamentos genéricos comercializados no Brasil. Ao programa e, principalmente, ao consumidor, a Anvisa mantém seu posicionamento: os medicamentos genéricos a que os brasileiros têm acesso são seguros e os testes realizados pelo laboratório Cedafar, da UFMG, são insuficientes para atestar se um determinado medicamento tem ou não qualidade.
O programa acusa a Anvisa de “minimizar” os testes de perfil de dissolução. Isso não corresponde à verdade. A Agência explicou, detalhadamente, que os testes apresentados pelo programa não podem ser considerados definitivos para testar a qualidade de um medicamento genérico - nem no Brasil, nem em qualquer país desenvolvido do mundo.  Isso não é minimizar, mas zelar para que as metodologias apropriadas sejam sempre empregadas, para que não haja qualquer tipo de dúvida na população sobre a segurança e a eficácia de um medicamento.
Se não agirmos assim, respeitando as regras que têm base técnica e científica, abriríamos a possibilidade de um concorrente passar a acusar o outro baseado em testes diferentes dos que são preconizados, estabelecendo um clima de desconfiança generalizada. Por isso, a Anvisa sempre aplicará aquilo que está estabelecido nas normas no momento de fazer afirmações sobre a qualidade de um medicamento.

Habilitação do Cedafar

Quanto ao Cedafar, o fato de ele ser habilitado para testes de registro não o habilita, automaticamente, para testes de análise fiscal, exatamente a natureza da reportagem. Em nenhum momento o programa afirmou, categoricamente, que o laboratório não está habilitado para análise fiscal, dando a falsa impressão de que ele é credenciado para todos os tipos de testes. O próprio Cedafar divulgou nota onde afirma que “não faz parte da rede de laboratórios credenciados para a realização de análises fiscais”.
Testes de bioequivalência são realizados em voluntários sadios e medem a concentração do produto no sangue, possibilitando, sem nenhuma dúvida, a avaliação definitiva sobre a ação real do medicamento no organismo humano. Isso é um fato científico indiscutível, e não a opinião de especialistas. Prova disso é que a regra de tomar o teste de bioequivalência como o definitivo para avaliar os medicamentos genéricos é utilizada pelas agências de medicamentos dos Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha e Japão, entre outros países.
O Fantástico corrobora a importância do teste de bioequivalência ao mostrar fala do diretor-presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa, que ressalta: “A bioequivalência é um teste que avalia em seres humanos, e não numa bancada de laboratório, qual vai ser o comportamento daquele genérico”, e a opinião do professor Odorico Moraes, diretor do Núcleo de Pesquisa de Medicamentos da Universidade Federal do Ceará: “(A bioequivalência) é soberana sobre os testes que são feitos in vitro”. Sem esse teste, não é possível estabelecer se um medicamento genérico é equivalente ao de referência. E é aí onde reside a grande falha dos estudos realizados para o Fantástico.
Em relação à declaração do ex-secretário nacional de Vigilância Sanitária Antônio Carlos Zanini, que exerceu o cargo entre 1980 e 1985, vale ressaltar que ele diz: “Se (o produto) não passar no teste de dissolução, PROVAVELMENTE [grifo nosso] não vai ser bem absorvido pelo organismo”. Ou seja, a própria afirmação dele comprova que o teste de dissolução não é capaz de ser conclusivo em relação à qualidade do produto.
Caso contrário, por que, em todo o mundo, são necessários testes de bioequivalência para avaliar medicamentos? Se houvesse uma correlação perfeita entre o resultado do teste de perfil de dissolução com o de bioequivalência, por que as agências dos países desenvolvidos exigiriam o teste de bioequivalência, se há outro mais rápido e mais barato?

Anvisa avalia dipirona reprovada

A reportagem do Fantástico faz acusações levianas, e sem qualquer comprovação, ao cometer ilações como “a Anvisa preferiu fechar os olhos para os resultados das análises”, insinuando que a Agência não teria “discutido providências”. Mas a reportagem não cita trecho da nota da Anvisa que afirma que, cumprindo sua missão de proteger a saúde da população e como o faz com qualquer denúncia sobre irregularidades em medicamentos, a Agência já iniciou os procedimentos para apurar se, no lote específico de dipirona testado e reprovado, existe mesmo teor de princípio ativo inferior ao que é obrigatório.
Ou seja: o único teste apresentado pelo Fantástico que pode apontar algum problema em um lote de um dos medicamentos, entre os 15 analisados, foi tratado com toda a seriedade pela Anvisa, com a abertura do procedimento de investigação adequado, em laboratório oficialmente habilitado para esse fim. Não houve, portanto, qualquer minimização de nossa parte.
Sobre a matéria-prima utilizada para a fabricação de medicamentos genéricos, a Anvisa esclarece ao consumidor que as indústrias farmacêuticas devem realizar análises físico-químicas e microbiológicas nos insumos (excipientes e princípios ativos), bem como realizar a “qualificação dos fornecedores” que comercializam as matérias-primas para as indústrias farmacêuticas.

Insumos inspecionados em 2016

À Anvisa cabe agir de forma proativa e complementar, inspecionando as empresas fabricantes de insumos ao redor do mundo. Em 2016, a Anvisa inspecionou 35 fabricantes de insumos ativos (IFA) sintéticos, entre plantas nacionais (21) e estrangeiras (14). Destaca-se que a maioria das inspeções internacionais ocorreu no continente asiático, que hoje fornece a grande maioria das matérias-primas de medicamentos do mundo para o Brasil, Estados Unidos e Europa.
Por fim, a Anvisa volta a destacar que é absolutamente equivocada e perigosa para a saúde da população a afirmação reiterada pela matéria de que caberia aos médicos indicar ao paciente qual o genérico que tem qualidade. Os médicos têm, entre suas atribuições, o diagnóstico da doença e a prescrição de medicamentos. Mas não faz parte dessas atribuições atestar a qualidade dos medicamentos prescritos. Esse tipo de orientação do Fantástico pode induzir a práticas não éticas que os próprios Conselhos de Ética Profissional têm buscado evitar.
O farmacêutico presente nas farmácias e locais de dispensação de medicamentos é o profissional que tem o conhecimento necessário para saber que os medicamentos ali disponíveis foram avaliados, passaram por todos os testes e estão aptos para serem consumidos. Lembrando que à vigilância sanitária cabe fazer as avaliações em toda a cadeia de produção, distribuição e consumo de medicamentos.
Nesse sentido, a Anvisa lamenta, novamente, que o Fantástico, mesmo com a intenção declarada de prestar um serviço à população, produza uma reportagem sem embasamento técnico-científico adequado, podendo produzir interpretações equivocadas na população.
Reafirmamos que a busca por garantir a qualidade dos medicamentos comercializados em nosso país é uma das funções essenciais da Anvisa e se aplica, de forma equânime, a todos os produtos, sejam genéricos, sejam medicamentos de referência. Sobre todos eles, buscamos aplicar todas as medidas para assegurar sua qualidade, sem discriminações ou preferências. 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Médica especialista em cuidados paliativos conta como é lidar com a morte todos os dias

"
A grandiosidade não é você não depender de ninguém, é você deixar alguém trocar a sua fralda. Isso é um ato de coragem." (
Ana Claudia Quintana Arantes )


Marina Rossi - El País (13/5/2015)

A médica Ana Claudia Quintana Arantes olha nos olhos enquanto fala. Não envia mensagens pelo Whatsapp nem olha o Facebook no celular enquanto conversa com alguém. Especialista em medicina paliativa, seu trabalho é estar presente e essa é a postura dela mesmo quando não está exercendo o ofício.
Formada em medicina pela USP, fez um curso do Instituto Palio após a faculdade e fundou a Casa do Cuidar, o primeiro curso aqui no Brasil de cuidados paliativos, de acordo com ela. Trabalha em São Paulo, no setor de geriatria do Hospital Israelita Albert Einstein e no Recanto São Camilo, onde cuida de pacientes em estado terminal, que chegam encaminhados pelo Hospital das Clínicas. É lá que ela pratica os cuidados paliativos. “Trato ali de pacientes que já foram avaliados pelas equipes médicas e já foi dito a eles que não há nada que a medicina possa fazer para modificar o curso da doença. Não há cura e não há controle”, explica ela. Todos são financiados pelo Sistema Único de Saúde.
O Recanto São Camilo fica no bairro do Jaçanã, na zona norte de São Paulo, em frente a uma escola pública. A área de cuidados paliativos recebe pacientes em estágio avançado de diversas doenças, não só de câncer. E, embora sejam maioria, os idosos não são os únicos a receber os cuidados que, nas palavras de Ana Claudia, “agem sobre o sofrimento” dos pacientes. Adolescentes a partir dos 16 anos também chegam, embora em uma frequência menor. “A morte chega para qualquer idade”, diz ela. Ali, eles não são entubados, não passam por cirurgias invasivas, não recebem nenhuma medicação para tentar curar a doença que têm. Apenas para atenuar a dor. Chegam, muitas vezes, sem andar e sem falar. E não são raros os casos de pacientes que voltam a falar, a comer e até mesmo a andar.
Em sua sala no Einstein, ela conversou com EL PAÍS por mais de uma hora. Depois, a reportagem acompanhou o trabalho dela por alguns dias no hospital de cuidados paliativos. O resultado está nessa reportagem.
Os pacientes que estão morrendo não têm tempo para desperdiçar com a minha distração
Pergunta. Como funciona o hospital de cuidados paliativos?
Resposta. É um hospital comum. Mas tem uma forma de cuidados diferente da dos hospitais. O tratamento passa por algo muito mais amplo que só medir pressão, ver a frequência cardíaca ou medir a temperatura dos pacientes. As pessoas pensam que cuidados paliativos significa tirar ou suspender o tratamento, mas na verdade você amplia. O processo de adoecimento, desde o diagnóstico até que a morte aconteça, esse período é recheado por muito sofrimento. O cuidado paliativo vai agir sobre o sofrimento. Eu trabalho com essa questão do conforto físico do paciente: tirar a dor, fazer o intestino funcionar direito, fazer ele dormir direito, buscar tirar o cansaço... Só que a brincadeira começa quando você controla os sintomas. Porque é quando eu tiro a sua dor, que você começa a experimentar a finitude.
P. A maioria das doenças que esses pacientes têm é câncer?
R. Cerca de 60% dos pacientes que chegam têm câncer. Há uma visão um pouco viciada de que os cuidados paliativos são feitos só com pessoas com câncer. Mas as pessoas morrem de outras coisas também. Anualmente, mais de um milhão de brasileiros morrem todos os anos. Desses, 800.000 morrem de morte anunciada, ou seja, de alguma doença.
P. Como é lidar diariamente com o fim da vida?
R. Eu digo muito para os estudantes: não tem problema você estudar para cuidar de doenças, mas é preciso ter consciência disso, você é um cara que curte doenças. Eu curto pessoas. É outra coisa. As doenças fazem parte, são ossos do meu ofício ter doenças para que eu possa descobrir quem é a pessoa que está por trás dessa doença. Esse trabalho de você retirar o sofrimento, para mim, é um trabalho magnífico. Não porque eu tenha um gosto mórbido pela morte ou pelo sofrimento. É exatamente o contrário.
P. Você não se apega aos pacientes? Como lida com isso?
R. Eu me vinculo. Não tem como não me vincular.
P. E você não sofre quando ele morre?
R. Claro que tem um sofrimento, mas eu penso que isso deveria ser um exercício de todos. Porque não sou só eu que me vinculo. Você se vincula aos seus colegas de trabalho, aos seus amigos, à sua família. O que a gente não entende é que esses vínculos não são definitivos. Por exemplo, eu te encontrei hoje, minha vida pode mudar muito depois que eu te encontrei, eu posso ser uma outra pessoa depois disso, mas eu não sei se vou te encontrar de novo. Então quando eu estou com você, eu estou com você. Eu posso favorecer com que este encontro seja transformador para nós duas,  mas eu não sei se te encontro de novo, então esse momento é o momento que precisa existir. Quando você trata com uma pessoa que está morrendo, você não disfarça. Ela olha pra você, e ela tem o poder de te deixar nua, ela sabe direitinho se você está falando a verdade, se você está falando mentira, se você está com medo, se sentindo insegura. Ela identifica isso. Claro que talvez não identifique numa porção de consciência que a gente quer ter acesso. Por isso, não importa quanto tempo eu tenha com você. Supondo que eu tenha apenas 15 minutos pra olhar pra você, eu estarei prestando a atenção no que você está dizendo durante esses 15 minutos. A grande dificuldade de todo mundo é ficar mais do que 15 segundos prestando atenção. Os pacientes que estão morrendo não têm tempo para desperdiçar com a minha distração.
P. Existem peculiaridades culturais que se revelam no hora da morte?
O processo cultural da morte é muito peculiar
R. Tive uma paciente muito amada, a dona Almira, que não podia morrer de cabelo trançado. Na cultura dela, ali no meio do nada na Bahia, as pessoas não podiam morrer de cabelo trançado. E aí, como faz? Deixa o cabelo solto direto? Se você deixar o cabelo dela solto o tempo todo, você estará dizendo a ela que ela está pronta pra morrer.
P. E ai?
R. Foi uma história linda, porque ela não queria falar sobre a morte, ela tinha medo da morte. Mas ela foi vendo ao longo do tempo de fim da vida dela as oportunidades de despedida, as emoções, a coisas boas que aconteciam, as realizações, as demonstrações de afeto, os pedidos de perdão. Nos últimos fins de vida, ela pediu pra me chamar, segurou a minha mão e falou bem baixinho no meu ouvido: “Destrança o meu cabelo?”. E foi resolvido. Ela não precisou fazer terapia por 50 anos para resolver as questões dela, nem precisou de recursos de enfrentamento para a morte. A morte ensinou como ela deveria fazer ao longo dos últimos meses de vida dela. Agora, imagina se essa senhora fosse morrer nos Estados Unidos? Quem ia entender de trançar ou não o cabelo dela? O processo cultural da morte é muito peculiar e vai fazer com que a sua família se sinta mais ou menos confortável com a sua partida se isso for respeitado.
P. E como vem avançando no Brasil os trabalhos de cuidados paliativos?
R. Principalmente na medicina, quando você carrega a bandeira da morte natural, você está na contramão do resto dos médicos, que são umas crianças infantilóides que acham que a morte pode ser vencida. Não existe ninguém que tenha se curado do câncer até hoje e que não tenha morrido ou que não vá morrer. Essa percepção de que a morte faz parte da vida humana está muito distante da faculdade de medicina. Em 2010 foi feito um estudo pela Economistsobre a qualidade da morte no mundo, que está relacionado a conversas nesse processo, número de leitos, de hospitais de cuidados paliativos no país, a formação dos profissionais em relação a isso, e aí se estabeleceu um ranking com 40 países. O Brasil ficou em 38º lugar. Então se você pretende morrer, aqui não é um lugar legal.
Pegar uma mulher de 60 anos que é contra o aborto, tudo bem, ela nunca mais vai abortar. Ela pode ser contra o aborto dela, mas ela não pode dar palpite no dos outros. É uma tendência do ser desumano, de tratar de assuntos sobre os quais não os dizem respeito. Mas a morte diz respeito a todos
P. Tem algum paciente que pede para morrer?
R. Muita gente pede, quando não suporta o sofrimento. Se está impossível viver, você pede para morrer. Se eu cuido do seu sofrimento, sua vida fica gostosa, então você quer ficar mais um pouquinho. A maior parte das pessoas que chega lá [no hospital], não foi para lá porque queria. Mas uma vez que elas experimentam esses cuidados, elas não querem ir embora. Tá cheio de pacientes que chegam lá, passam um dia e dizem “não me dê alta”.
P. Mas existe alta?
R. Sim. As pessoas melhoram.
P. Mas elas não estavam em fase terminal?
R. Sim, mas nos cuidados paliativos elas voltam a comer, a falar, a andar, voltam a viver. Porque antes elas tinham sido enterradas vivas pela equipe médica e pela família. Ninguém olha mais pra a pessoa. Aí eu chego lá e digo: Você está com dor? Então vamos melhorar a sua dor. Vamos descer no Jardim? O que você quer comer hoje?” As pessoas comem pratos alucinantes [no cardápio do hospital tem pratos como feijoada, dobradinha e bife à milanesa]. Alguns dizem “eu quero champanhe para brindar”, e nós arrumamos um champanhe. Outros dizem “eu quero ver meu cachorro”, vamos buscar seu cachorro. “Ah, eu quero passar o fim de semana em casa, ver meus amigos e ir na igreja”, nós programamos tudo para conseguir com que a pessoa vá. Então eu escuto o que você quer e te ofereço o que eu posso fazer para realizar aquilo que você deseja.
P. Se a morte fosse encarada, culturalmente, de outra maneira, isso também contribuiria para que esse paciente chegasse antes ao hospital? Eles não chegam em um estágio já muito avançado?
A eutanásia ou o suicídio assistido é como você ver um bolo lindo na vitrine. É lindo, aquele confeito perfeito, morangos perfeitos, mas é feito de isopor. Não é vivo. A morte fabricada é uma morte fake
R. Sem dúvida. Essa demora é cultural. Se você tem uma pessoa que você ama muito e essa pessoa está gravemente doente, você a leva ao médico e ele diz "olha, infelizmente a medicina não tem mais como reverter o processo de doença da pessoa que você ama". O que você faz? Diz “ah, tá bom”, e marca outro médico. Até que você encontra um médico que diz “olha, tem um trabalho mostrando que, se a pessoa responder a um tipo de tratamento, há uma chance de 0,01% [de ser curada], aí você cai na roubada de dizer “nós temos esperança. E aí a gente vai lutar e vender a alma para pagar esse tratamento e vai salvar a alma dessa pessoa”.
P. As pessoas confundem o seu trabalho com um trabalho ligado à eutanásia?
R. Confundem, direto. Mas a eutanásia, dentro do cuidado paliativo, não tem espaço. A gente parte do princípio que a gente aceita a morte natural. Eu não pratico eutanásia. Não queria eutanásia pra mim e não faria eutanásia para ninguém. Há médicos que são especializados em suicídios assistidos. Na Europa tem. Eles acreditam que eles estão fazendo muito bem para os pacientes, porque existe quem queira e existe quem faça. Não sou contra ou a favor. Não é a minha prática.
P. Seu trabalho então é justamente o contrário da eutanásia?
R. Sim. Para que você tenha a possibilidade de viver até o último dia da sua vida, do jeito que ela veio para você. A eutanásia ou o suicídio assistido eu penso que é como você ver um bolo lindo na vitrine. É lindo, aquele confeito perfeito, morangos perfeitos, mas é feito de isopor. Não é vivo. A morte fabricada é uma morte fake. Acontece, de fato, tem aquela cena linda da despedida, do perdão e tal, todo mundo te beija e você morre. Que gosto tem isso? Como o processo da tua morte pode te fazer melhor? Como o processo da sua morte pode transformar as pessoas à sua volta? Que legado você deixa de aprendizado quando você decide enfrentar esse processo? É nesse momento em que você enfrenta a sua fragilidade, que você sabe o quão corajoso você é, o quão grande você é. A grandiosidade não é você não depender de ninguém, é você deixar alguém trocar a sua fralda. Isso é um ato de coragem.
P. Fala-se mais sobre o aborto do que sobre a eutanásia...
R. Como se todo mundo fosse abortar, né? Então falam mais sobre coisas que não servem para todo mundo. E você se mete a dar opinião sobre aquilo que você não vai vivenciar. Pegar uma mulher de 60 anos que é contra o aborto, tudo bem, ela nunca mais vai abortar. Ela pode ser contra o aborto dela, mas ela não pode dar palpite no dos outros. É uma tendência do ser desumano, de tratar de assuntos sobre os quais não os dizem respeito. Mas a morte diz respeito a todos.
P. E qual a diferença entre eutanásia, distanásia e ortotanásia?
R. Tudo isso gira em torno do processo de sofrimento. Eutanásia, o prefixo euquer dizer bom, então significa uma "boa morte". Culturalmente, uma boa morte é uma morte rápida, que não tem dor nem sofrimento. Mas veja, a dengue está bombando aí. Você quer pegar dengue? É uma morte rápida! Mas, na verdade, ninguém está a fim de morrer. A ortotanásia, orto  significa "certo", então é a "morte certa", a morte no tempo certo. E a distanásia é a morte funcional, é um processo de morte prolongado. Por exemplo, você tem 95 anos, câncer no fígado, nos ossos, no cérebro, tem demência, desnutrição e a sua filha diz pra mim: "Dr. Ana, salve a minha mãe. Ponha ela na UTI, faça tudo". Aí entubamos ela, fazemos diálise, colocamos sonda, e, mesmo assim, você morre. E se, invés disso, eu virasse para essa filha e dissesse “olha, a sua mãe está muito doente, essa doença não tem cura e nem controle e ela está muito tranquila. Você topa que a gente cuide dela na sua casa? Você acha que ela vai gostar de ficar em casa?". A morte vai ocorrer nas duas situações. A diferença é o que preencherá o seu tempo até lá.