segunda-feira, 21 de junho de 2010

Sentença - Antecipação terapêutica de parto. Feto anencéfalo. Gravidez de risco. Procedência do pedido Tribunal Julgador: TJMG

Antecipação terapêutica de parto - Feto anencéfalo - Gravidez de risco - Procedência do pedido       
AUTORIZAÇÃO PARA ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DE PARTO

Requerente: V.S.R.B.S.

VISTOS, etc.


V. S. R. B. S., qualificada nos autos, requer autorização judicial para a interrupção da gestação de feto anencéfalo, de alto risco, com "Doença Hipertensiva Específica da Gestação", com picos hipertensivos superiores a 140/100 mmHg, já no início da gravidez, comprovada por exame Holter, edema, histórico de pré-eclampsia em gestação anterior e outros sintomas.

Sustenta a Requerente que conforme o relatório médico incluso na f. 20, tratando-se de gestação de feto anencéfalo, assomam outras complicações durante a gravidez, às quais a gestante está sujeita como: prolongamento da gestação além de 40 semanas; associação com polihidrâmnio, com desconforto respiratório, estase venosa, edema de membros inferiores; associação com vasculopatia periférica de estase; alterações comportamentais e psicológicas; dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de anencéfalos de termo (parto entre 38 e 42 semanas de gestação, tempo considerado normal); necessidade de bloqueio da lactação; puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratilidade uterina, que é a segunda causa de morte materna no Brasil e maior risco de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstétricas do parto de termo.

 Aduz, também, que conforme o relatório sobredito, firmado pela Dra. Valéria Cristina A. Ferrer, CRM-MG 39.389, médica ginecologista e obstetra que lhe acompanha, além dos riscos citados, a Requerente sofre com o enorme desgaste emocional, vivido em razão da dita anomalia, o que atinge o seu bem estar físico, mental e psicológico, afetando assim a sua saúde, a qual termina o seu relato com a indicação da interrupção terapêutica da gestação, que traduz o desejo tanto da requerente como também de seu esposo, após exaustiva explicação do caso e pesquisa sobre o assunto e seus riscos.

Com a inicial juntou-se farta prova documental consistente no relatório precitado, incluso na f. 20, quatro exames ultrassonográficos, realizados por diferentes médicos obstetras (fls. 59/62), todos com diagnóstico de anencefalia fetal, exames laboratoriais, declaração do marido da Requerente anuindo à interrupção terapêutica da gravidez pretendida por essa (f. 19), documentos médicos da gestação anterior e outros.

O Ministério Público manifestou-se em substancioso parecer, incluso nas fls. 64/79, opinando pelo deferimento do pedido para que seja autorizada a antecipação terapêutica do parto solicitado, a ser feita por médico competente.


É a síntese do necessário.

FUNDAMENTAÇÃO

Trata a espécie de procedimento de jurisdição voluntária visando a obtenção de alvará judicial autorizando a interrupção de gravidez inviável de feto anencéfalo, com alto risco de vida para a Requerente e danos irreparáveis à sua saúde emocional, mental e psicológica.

A Requerente submeteu-se a quatro exames de ultrassonografia sendo o primeiro realizado em 09/03/2010 na Clínica São Judas Tadeu, em Ipatinga, estando aquela com 14 semanas de gravidez, no qual a Dra. Sandra Mara S. Pimenta constatou o seguinte: "ausência de calota craniana com estroma angiomatoso cefalicamente à base do crânio, indicativo de anencefalia" (f. 59).

Em 10/03/2010, a Requerente submeteu-se a outro exame na Clínica de Diagnóstico por Imagem, Ecolab, nesta cidade, estando com 14 semanas e um dia de gravidez, cujo resultado atestado pela Dra. Jussara Coelho Nogueira Morais revela a "ausência de calota craniana indicativa de anencefalia." (f. 60)

No dia 12/03/2010 novo exame foi realizado na Clínica São Judas Tadeu, estando a Requerente com 14 semanas e três dias de gravidez, tendo o Dr. Júlio César Faria Couto constatado: "observa-se ausência de calota craniana com exposição de matéria amorfa sobre a base do cérebro correspondendo ao encéfalo em degeneração, quadro compatível com anencefalia" (f. 61).

Por último, em 17/03/2010, a Requerente fez idêntico exame na Clínica Cid Ultrassom, também localizada em Ipatinga, tendo sido constatado pelo Dr. Emílio Gomes Fernandes, igualmente: "ausência de calota craniana sugerindo anencefalia" (f. 69).

 Juntou-se, também, na f. 20, circunstanciado relatório médico firmado pela Dra. Valéria Cristina A. Ferrer, já citada, datado de 19.03.2010, atestando que a Requerente está com quinze semanas de gestação, tendo realizado quatro exames ultrassonográficos "com diagnóstico de anencefalia fetal, má-formação irreversível, incurável e incompatível com a vida"... Ao final a referida médica "solicita junto à paciente autorização para a interrupção terapêutica da gestação, consignando ser esse o desejo da paciente e seu esposo, após exaustiva explicação do caso e pesquisa sobre o assunto e seus riscos".

A declaração da Dra. Valéria, médica ginecologista e obstetra, se embasa nos exames ultrassonográficos acima nomeados, diagnosticando anencefalia fetal na gestação em foco, ante a ausência de calota craniana irreversível, incurável e incompatível com a vida, ocasionando intenso sofrimento à Requerente, com o enorme desgaste emocional, vivido em razão da dita anomalia, o que atinge o seu bem estar físico, mental e psicológico, afetando assim a sua saúde.

Como se percebe, a situação trazida a lume é angustiante, diante da constatação técnica e médica de vida inviável, tratando-se de matéria altamente complexa, fundada, essencialmente, no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1º, inc. III, da Constituição da República, no direito à preservação da autonomia da vontade, na liberdade, legalidade e no direito à saúde, tendo pertinência com os direitos humanos que asseguram à gestante a liberdade de prosseguir ou interromper a gravidez na hipótese de anencefalia fetal, com alto risco de vida para a mesma, como no caso em tela. 

Pelo que se infere da prova documental carreada aos autos, a gravidez da Requerente está acarretando várias complicações para a sua saúde, que já no início apresenta "picos de hipertensivos superiores a 140/100 mmHg", edema e outros sintomas, o que se agrava, também, pelo fato daquela ser obesa e ter histórico de pré-eclampsia na gestação anterior.

Urge consignar que perfilho o entendimento no sentido de que a interrupção terapêutica da gravidez de feto anencéfalo, com alto grau de risco de vida para a gestante, não se trata de aborto, já que nenhuma correlação tem com a figura delitiva tratada no Código Penal Brasileiro. Diferentemente da questão tratada nos autos - fundada em diagnóstico de anencefalia, onde a gestação é desejada, não sendo fácil e nem tampouco leviana a opção pela sua interrupção -, quando há a opção da mulher pela realização do aborto, objetiva-se extirpar algo que não é querido.

Neste cenário convém trazer à colação o posicionamento do constitucionalista Luís Roberto Barroso, subscritor da petição inicial da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54/04), proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS, Entidade que defende os direitos e interesses dos profissionais da saúde no país, que entende como legal a interrupção da gravidez em casos de fetos portadores de anencefalia.

O renomado publicista averba que a permanência do feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em razão do alto índice de óbitos intra-uterinos de fetos anencéfalos. Assim, a antecipação do parto nessa hipótese constitui indicação terapêutica médica, sendo exclusivamente a única possível e eficaz para o tratamento da gestante, já que para tal situação não há possibilidade de reversão.

O argumento para a apresentação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, em comento, destaca que princípios constitucionais fundamentais, como o direito à saúde, à dignidade e à liberdade, estavam sendo ameaçados por uma interpretação errônea de que a antecipação do parto em casos de anencefalia constituía crime de aborto, já que o Código Penal Brasileiro não autoriza expressamente este tipo de antecipação de parto.

Em 1º de julho de 2004, o Ministro Marco Aurélio Mello, acolhendo a tese esposada na referida ação, concedeu a liminar autorizando que mulheres grávidas de fetos portadores de anencefalia possam antecipar o parto, desobrigando os profissionais da saúde de obterem autorização judicial para realizar os procedimentos clínicos necessários, sustentando que "a interrupção terapêutica da gravidez do feto anencefálico não configura aborto, para o qual o pressuposto é que haja viabilidade de vida, o que não existe devido à ausência de cérebro."<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]-->

Releva assinalar que a decisão supracitada, gerou vultosos protestos, principalmente por parte da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), sendo aquela cassada pelo plenário do STF em 20 de outubro de 2004, restabelecendo-se a proibição anteriormente vigente no ordenamento jurídico penal acerca do aborto. Porém, o mérito da ADPF ainda não foi julgado, estando a aludida ação em curso no Supremo Tribunal Federal.

O Ministro asseverou em sua decisão que: "Diante de uma formação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar."<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]-->

Consoante a tese jurídica e ética defendida na ação sobredita, a antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia não se trata do crime de aborto previsto na lei penal. O aborto é considerado um crime contra a potencialidade da vida do feto, algo inexistente no anencéfalo. Não seria correto qualificar como crime de aborto a interrupção da gestação de um feto sem viabilidade de vida. Por isso emprega-se o termo antecipação terapêutica de parto para os procedimentos que apenas antecipam o parto do feto, sem possibilidade de sobrevida extra-uterina.

A ADPF em pauta se fundamenta nos princípios da dignidade, da liberdade e do direito à saúde, pontuando que as mulheres grávidas de fetos com anencefalia experimentam o luto antecipado por um filho que sequer viverá, ferindo a dignidade da pessoa humana exigir que a gestante experimente um sofrimento inútil e desproporcional em nome de uma gravidez de feto inviável.

Além disso, negar-lhe o acesso ao procedimento clínico para interromper a gravidez não possui base legal, sendo um constrangimento ilegal da autonomia da mulher, que viola o princípio da liberdade. O direito à saúde foi considerado em sentido amplo abrangendo o bem-estar psíquico, afetivo, físico e espiritual da gestante.

A interrupção da gravidez no caso de feto com anencefalia, cabalmente comprovada, estando a gestante correndo sério risco, como no caso em exame, é uma necessidade. Não há o que se fazer para tornar viável a vida do feto, portanto, a antecipação do parto deve ser entendida como um procedimento terapêutico para resguardar e proteger a dignidade e a integridade física e mental da mulher.

Por outro lado, impende assinalar que o aborto é autorizado em casos de risco de vida para a mulher e em casos de gravidez resultante de estupro. Estes dois permissivos legais foram previstos pelo Código Penal elaborado no século passado, na década de 40, ou seja, em uma época em que o desenvolvimento da medicina não possibilitava a realização do diagnóstico pré-natal com a segurança de hoje.

 Ora, não se poderia exigir que o legislador do início do século fosse capaz de prever o avanço da medicina e das técnicas de diagnóstico por imagem, capazes de diagnosticarem a anencefalia, má-formação fetal cujos efeitos são inafastáveis, sendo absolutamente inviável e desumano o prolongamento da gestação.

Para se promover a verdadeira justiça é de fundamental importância realizar a adaptação do ordenamento jurídico às técnicas medicinais advindas com a evolução do tempo, mesmo porque o direito não é algo estático, inerte, mas sim uma ciência dinâmica, que deve se adequar à realidade.


É importante consignar que a gravidez de um feto anencéfalo é considerada uma tortura por infligir à gestante incomensuráveis sofrimentos físicos e mentais, a qual não pode ser forçada a manter a gestação até o final, arriscando a sua própria vida, sabendo que o resultado morte do filho que carrega no ventre é imutável.

Sendo assim, o impedimento da interrupção da gravidez de feto anencéfalo também é equiparado à tortura, que se configura sempre que há violação, intencional, do direito de uma pessoa, causando-lhe dores ou sofrimento agudo, físico ou psicológico, consubstanciado no impedimento de todos os mecanismos legais para fazer uso de sua vontade visando à preservação da própria vida.

A manifestação favorável do Estado-Juiz para a realização do procedimento médico pretendido no caso vertente, traduz, acima de tudo, o respeito à dignidade humana, pois a submissão da Requerente, com gestação de feto anencéfalo, importa, como já se frisou iterativas vezes, em violação do princípio sobredito, além de lhe impor o penoso sofrimento pelo dilema entre encomendar um caixão para o filho que carrega no ventre ou um berço acolhedor.

É preciso consignar que o posicionamento aqui defendido visa resguardar o direito à vida e, mais do que isto, o direito a uma vida digna, com esteio nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade que fazem com que se opte por não fazer a mãe correr riscos para preservar um ser que não tem cérebro, abreviando, portanto, o sofrimento cruel e desumano de uma gestante de feto cujo resultado morte é imutável.


Por outro lado, o enfrentamento de tão grave questão referente aos direitos fundamentais da gestante, previstos na Constituição da República, não podem estar condicionados à edição de lei ordinária, eis que aqueles gozam de aplicabilidade imediata, nos termos do art. 5º, § 1º da Lei Maior.

Urge sublinhar, também, que a argumentação no sentido de que a antecipação terapêutica do parto do anencéfalo configuraria a prática nazista da eugenia (destinada a eliminar seres tidos como inferiores, todos titulares de direitos) não se sustenta, na medida em que os valores postos em relevo na antecipação do parto em apreço cingem-se à vida e ao respeito à dignidade da gestante, que não pode ser submetida ao calvário de uma gravidez inviável.


 O direito à vida, assegurado pelo artigo 5º da Constituição da República, não é absoluto. Tanto é verdade que o próprio ordenamento prevê expressamente exceções a ele em outras hipóteses, como ocorre naquelas elencadas no art. 128 do Código Penal, consistentes na existência de perigo de vida para a gestante ou feto concebido mediante estupro ou atentado violento ao pudor.

Como se nota, há previsão expressa no antigo Código Penal para a preservação de outros bens jurídicos em detrimento do direito à vida. Neste cenário, não se pode compreender por qual razão se deveria inviabilizar a interrupção do parto no caso do feto anencefálico se, da mesma maneira, há risco para a vida da gestante, com patente violação da sua integridade física e psíquica, e, ainda, inexiste possibilidade de vida extra-uterina, ao contrário das hipóteses previstas na lei penal.

Em caso análogo, o Min. Arnaldo Esteves Lima, no julgamento do HC 56572/SP, publicado no DJ de 15.05.2006, salientou o seguinte:

Portanto, nesse momento, parece-me difícil discordar de quem defende que a razão pela qual o Código Penal não autorizou o aborto nos casos de anomalia fetal incompatível com a vida extra-uterina decorre apenas do fato de que, à época de sua elaboração e edição (1940), a ciência médica ainda não dispunha de instrumentos capazes de, antecipadamente, durante a gestação, oferecer diagnósticos seguros sobre a existência de anomalias fetais severas, que inviabilizam a vida após o parto, como no caso em exame.

Portanto, diante de uma gestação de feto portador de anomalia incompatível com a vida extra-uterina, como no caso dos autos, a indução antecipada do parto não atinge o bem juridicamente tutelado, uma vez que a morte desse feto é inevitável, em decorrência da própria patologia.

 Em proposição idêntica, o insigne penalista Nélson Hungria, averbou em lapidar lição:


O feto expulso (para que se caracterize o aborto) deve ser um produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há [como] falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto. Não está em jogo, a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que as conseqüências dos atos praticados se resolvem unicamente contra a mulher.

 Sob outro ângulo, Guilherme de Souza Nucci em escólios ao Código Penal averba:

Assim, baseando-se no fato de que algumas gestantes, descobrindo tal fato, não se conformam com a gestação de um ser completamente inviável, abrevia-se o sofrimento e autoriza-se o aborto. O juiz invoca, por vezes, a tese de inexigibilidade de conduta diversa (causa supra legal de exclusão de culpabilidade), por vezes a própria interpretação da norma penal que protege a "vida humana" e não a falsa existência, pois o feto só está "vivo" por conta do organismo materno que o sustenta. A tese da inexigibilidade, nesse caso, teria dois enfoques: o da gestante, não suportando carregar no ventre uma criança de vida inviável; o do médico, julgando salvar a genitora de forte abalo psicológico que vem sofrendo. A medicina, por ter meios, atualmente, de detectar tais anomalias gravíssimas, propicia ao juiz uma avaliação antes impossível. Até esse ponto, cremos ser razoável a invocação da tese de ser inexigível a mulher carregar por meses um ser que logo ao nascer, perecerá (...)

Se os médicos atestarem que o feto é verdadeiramente inviável, vale dizer, é anencéfalo (falta-lhe cérebro), por exemplo, não se cuida de 'vida própria', mas de um ser que sobrevive à custa do organismo materno, uma vez que a própria lei considera cessada a vida tão logo ocorra a morte encefálica".

Pela relevância dos argumentos acerca da questão em pauta, deve-se, ainda, trazer à baila excertos do pronunciamento do Ministro Joaquim Barbosa, relator do HC 84.025-6/RJ:

 Em se tratando de feto com vida extra-uterina inviável, a questão que se coloca é: não há possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento que se interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê. A antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia ser considerada crime? Entendo que não, Sr. Presidente. Isso porque, ao proceder à ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extra-uterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal.

Nesse sentido, também, se colaciona a jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:


AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. GRAVIDEZ. INTERRUPÇÃO. MÁ FORMAÇÃO DO FETO. CONSTATAÇÃO TÉCNICA E MÉDICA DE VIDA INVIÁVEL. APELO DA MÃE A QUE SE DÁ PROVIMENTO.


O fato da ausência de previsão autorizativa para o aborto no art. 128 do CP não impede que o Judiciário analise o caso concreto e o resolva à luz do bom senso e da dignidade humana, preocupando-se com a saúde da própria mãe. Havendo constatação médica de inviabilidade de vida pós-parto, dada a ausência de calota craniana no feto - anencefalia - o Judiciário deve autorizar a interrupção da gravidez até como medida de prevenção profilática à genetriz.


PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ. FETO QUE APRESENTA ANENCEFALIA. DOCUMENTOS MÉDICOS COMPROBATÓRIOS. IMPOSSIBILIDADE DE SOBREVIVÊNCIA EXTRA-UTERINA Nos dias atuais, com os avanços tecnológicos aplicados, especialmente, às áreas médica, radiológica, biológica e genética, pode-se detectar toda a situação do feto, como no caso dos autos, em que se constatou a ocorrência de má-formação fetal, consistente em defeito de fechamento do tubo neural proximal, com conseqüente ausência de formação da calota craniana e atrofia da massa encefálica. Nesse sentido, considero viável e oportuna uma interpretação extensiva do disposto no art. 128, I, da Lei Penal, admitindo o aborto em decorrência de má formação congênita do feto (anencefalia), evitando-se, dessa forma, a amargura e o sofrimento físico e psicológico, considerando que os pais já sabem que o filho não tem qualquer possibilidade de vida 'extra-uterina'. Deve ser afastado o entendimento de que o cumprimento da decisão de antecipação do parto está sujeito a avaliação que o médico vier a fazer. V.v.: Expedindo-se o pretendido alvará, os médicos assistentes da requerente é que verificarão a conveniência e a oportunidade da operação.

Como se divisa, na doutrina e jurisprudência trazidos à lume, sobressai em situações angustiantes como a que se descortina nos autos a necessidade de impingir efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento maior da República Federativa do Brasil, do qual emanam todos os demais postulados consagrados na Carta Política.


Finalmente, impende gizar que é preciso compreender a dignidade humana em seus múltiplos aspectos, de forma a garantir um mínimo de direitos fundamentais capazes de proporcionar uma vida com dignidade. Sendo assim, devem os operadores do direito orientar-se no sentido da concretização do princípio em comento, referência ética que tem absoluta prioridade.  

DISPOSITIVO


ANTE O EXPOSTO e tudo o mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO autorizando a interrupção terapêutica da gestação da Requerente, a ser realizada por médico(s) habilitado(s) para tal desiderato, em Hospital  indicado pela mesma.


Expeça-se o alvará para os fins consignados.


P.R.I.


Ipatinga, 06 de abril de 2010.



MARIA APARECIDA DE O. GROSSI ANDRADE

Juíza de Direito

retirado do site do IBDFAM

domingo, 20 de junho de 2010

Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal e Cadastro das Instituições de Uso Científico de Animais

http://www.mct.gov.br/upd_blob/0204/204755.pdf
DECRETO Nº 6.899, DE 15 DE JULHO DE 2009.
Dispõe sobre a composição do Conselho Nacional de Controle de Experimentação
Animal - CONCEA, estabelece as normas para o seu funcionamento e de sua
Secretaria-Executiva, cria o Cadastro das Instituições de Uso Científico de Animais -
CIUCA

Criação e a utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa científica

http://www.mct.gov.br/upd_blob/0204/204754.pdf


Lei nº 11.794, de 08.10.2008
Regulamenta o inciso VII do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo
procedimentos para o uso científico de animais

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Autorizada interrupção de gravidez por anencefalia

A 3ª Câmara Criminal autorizou a interrupção de gravidez por solicitação da gestante, concordância do pai e indicação médica. Atestado de médico e laudo a partir de ecografia constataram anencefalia - "diagnóstico incompatível com a vida fora do útero".
O pedido foi feito quando o feto apresentava 28 semanas de desenvolvimento. A mãe tem 39 anos de idade e é porto-alegrense, residente na Vila Ipiranga, em Porto Alegre (RS).

Em 1º Grau, foi negada a solicitação de interrupção da gravidez por "impossibilidade jurídica".  Em recurso ao Tribunal, a autora argumentou não haver vida juridicamente tutelada.

Para o relator do recurso, Desembargador José Antonio Hirt Preiss, há uma enorme lacuna no texto do art. 128 do Código Penal. Concluindo tratar-se de causa de exclusão da culpabilidade e não de tipo penal criminalizador - "o que seria inadmissível em Direito Penal" -, entende que a lacuna pode ser suprida pela analogia ou justificada "pela inexigibilidade de conduta diversa no pleito da gestante".

Ao votar, o magistrado cita bibliografia médica que esclarece que os anencéfalos não sobrevivem fora do útero, excepcionalmente atingem de dois a três dias. Também refere artigo de André Petry na última edição da Revista Veja sobre o assunto. Na esfera penal, o magistrado reproduz fundamentos de Guilherme de Souza Nucci (Aborto por indicação eugênica, Código Penal Comentado, 5ª edição), que sintetiza:

"O fato de o feto ser monstruoso, possuir graves anomalias físicas ou mentais, não é, por si só, motivo para autorizar o aborto, desde que haja viabilidade para a vida extra-uterina, embora possa sê-lo quando a vida for praticamente artificial, sem qualquer possibilidade de se manter a partir do momento em que deixar o ventre da mãe."

O Desembargador Newton Brasil de Leão, que presidiu a sessão de julgamento, e a Desembargadora Elba Aparecida Nicolli Bastos acompanharam a conclusão.

retirado do site do ibdfam (01/09/2008 | Fonte: TJRS)

Justiça nega pedido de aborto a pais de feto anencéfalo

O juiz auxiliar Marco Antônio Feital Leite, respondendo pela 1ª Vara Cível de Belo Horizonte, indeferiu o pedido de um casal para a interrupção da gravidez da gestante, devido a má formação fetal.

O casal solicitou a autorização judicial para a realização terapêutica de interrupção de gravidez de feto com anomalia congênita incompatível com a vida (anencefalia). O Ministério Público opinou pelo deferimento do pedido do casal, levando em consideração parecer médico realizado pelo Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa da Saúde.

O juiz analisou os laudos médicos juntados ao processo, que atestaram a inviabilidade de sobrevida do feto anencefálico pós-parto. Argumentou que "disso não advém comprovadamente perigo iminente de morte da mãe, ou seja, que o aborto é o único meio de salvar a vida da gestante", conforme previsto em lei no artigo 128, inciso I, do Código Penal.

O juiz ressaltou que o direito à vida é garantido constitucionalmente, não havendo permissivo legal para a interrupção de gestação no caso de má formação do feto. O magistrado esclareceu que compete ao médico avaliar a necessidade do aborto necessário para a preservação da vida da gestante.

Essa decisão está sujeita a recurso.

Processo nº: 0024.10.150 360-5

retirado do site do IBDFAM

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Apontamentos sobre a lei andaluza de direitos e garantias da dignidade da pessoa durante o processo de morte

http://www.ibdfam.org.br/_img/artigos/Lei%20Anal%C3%BAcia%20Muerte.pdf (clique para acessar a Lei Andaluza de Direitos e Garantias da Dignidade da Pessoa Durante o Processo de Morte)


Autor: Cristian Fetter Mold - membro da Diretoria do IBDFAM-DF, advogado e professor de Direito de Família e Sucessões.

I - Introdução
Segundo Ronald Dworkin (in. "Domínio da Vida", Martins Fontes, São Paulo, 2009, págs. 02 e seguintes), a eutanásia e o aborto vêm sendo condenadas e defendidas há milênios, porém nunca as discussões foram tão acirradas, tão abertas e antagônicas, e a controvérsia sobre uma dessas opções nunca esteve tão estreitamente ligada à controvérsia sobre a outra, como vem ocorrendo atualmente nos Estados Unidos e na Europa. Cortes Superioras e Parlamentos da vários países do mundo têm sido instados a se manifestarem sobre tais questões.


Conforme lembrado pelo autor norte-americano acima citado, em 1991, um plebiscito no estado de Washington rejeitou, por pequena margem de votos projeto de lei que legalizava a eutanásia e, em 1992 uma legislação semelhante foi rejeitada na Califórnia. O Parlamento Holandês, todavia, em 2002, legalizou a eutanásia, através do "Termination of Life on Request and Assisted Suicide (Review Procedures) Act".


Logicamente uma questão desta dimensão não é somente discutida no âmbito dos Poderes Judiciário e Legislativo, pois como lembra a professora Maria de Fátima Freire de Sá, a sociedade, os operadores do Direito, os filósofos e os médicos se dividem na argumentação: os que defendem a prática da eutanásia e do suicídio assistido prendem-se ao argumento de que, na medicina, existem quadros clínicos irreversíveis em que o paciente, muitas vezes passando por terríveis dores e sofrimentos, almeja a antecipação da morte como forma de se livrar do padecimento que se torna viver. Os que se opõem à prática da eutanásia e do suicídio assistido sustentam ser dever do Estado preservar, a todo custo, a vida humana, que é o bem jurídico supremo. (In. "Direito de Morrer", 2ª. Edição, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2005, págs. 01 e 02). Talvez por esta razão o jornalista B.D.Colen em artigo para o jornal de Long Island,  Newsday (citado por Dworkin na página 02 do livro supramencionado) tenha afirmado que o assunto "eutanásia",  "ainda por um bom tempo ocupará um lugar de destaque na pauta dos direitos".


Um novo movimento neste verdadeiro "tabuleiro de xadrez" ocorreu com a recente edição da Lei Andaluza de Direitos e Garantias da Dignidade da Pessoa Durante o Processo de Morte, cujos principais tópicos serão aqui apresentados, sem a pretensão de esgotar o assunto, algo que será buscado em escritos futuros sobre o tema.


II - Sobre a Nova Lei Andaluza
Em sua Exposição de Motivos, o legislador andaluz afirma que todos os seres humanos aspiram viver dignamente. O ordenamento jurídico trata de concretizar e simultaneamente proteger esta aspiração, mas a morte, lembra o texto, também faz parte da vida. Morrer constitui o ato final da biografia pessoal de cada ser humano e não pode ser separada daquela como algo distinto. Portanto o imperativo de uma vida digna alcança também a morte. Uma vida digna requer uma morte digna. O direito a uma vida humana digna não pode ser truncado com uma morte indigna. O ordenamento jurídico está por conseguinte chamado também a concretizar e proteger este ideal da morte digna.


Na Exposição inicial, os legisladores afastam a utilização do termo "Eutanásia", pois, esta palavra (que somente significa "boa morte") tem sido carregada de numerosos significados, causando uma confusión entre cidadãos, profissionais sanitários, meios de comunicação,experts em Bioética e Direito. Além disso, segundo o que dispõe sobre "Eutanásia" o Código Penal Espanhol, a presente lei não trata do mesmo assunto. Ao contrário, o rechaço de um tratamento, a limitação de medidas de suporte vital e a sedação paliativa não devem ser qualificados como ações de Eutanásia. Dichas actuaciones nunca buscan deliberadamente la muerte, sino aliviar o evitar el sufrimiento, respetar la autonomía del paciente y humanizar el proceso de la muerte (In. http://static.diariomedico.com/docs/documentos/20090610_ley_muerte_digna_andalucia.pdf).


Para tanto, são estabelecidos os fins da nova legislação (art. 2o.): Proteger a dignidade da pessoa em processo de morte e assegurar a autonomia do paciente e o respeito à sua vontade durante esta fase final da vida, incluindo a manifestada de forma antecipada mediante o chamado "testamento vital" ou "declaração de vontade vital antecipada", que são as diretivas deixadas através de um documento escrito no qual constem os desejos e preferências de tratamento para o momento em que a pessoa não possa mais decidir por si mesma, ou a indicação da pessoa que estará autorizada a tomar estas decisões em seu lugar, algo que foi regulado na Comunidade Autônoma da Andaluzia, através da Lei 5, de 9 de Outubro de 2003.


Ademais a lei tem por finalidade a promoção da liberdade, autonomia e vontade da pessoa, de acordo com seus desejos, preferências, crenças ou valores, assim como a preservação de sua intimidade e confidencialidade - termo análogo à privacidade, mas que no âmbito bioético significa o dever de preservação das informações privadas e íntimas, ou ainda a "garantia do resguardo das informações dadas pessoalmente em confiança e a proteção contra a sua revelação não autorizada", segundo o Glossário de Bioética (Bioethics Thesaurus) do Kennedy Institute of Ethics. (Washington: KIE, 1995:9);


Outros fins previstos são: a garantia do direito de qualquer pessoa receber cuidados paliativos integrais e um adequado tratamento da dor durante o processo de sua morte; e a igualdade efetiva e a ausência de discriminação no acesso aos serviços sanitários no processo de morte.


A lei também possui um artigo contendo os conceitos considerados mais importantes para sua compreensão e interpretação, técnica legislativa adotada pelo legislativo Andaluz, no sentido de tornar a lei de redação clara, algo que deve sempre ser observado pelo legislador (como manda, por exemplo, nossa Lei Complementar 95/98).


Neste artigo, precisamente o de número cinco, constam os seguintes conceitos:


a) Qualidade de Vida - Satisfação individual ante as condições objetivas de vida a partir dos valores e crenças pessoais;


b) Consentimento informado - A conformidade livre, voluntária e consciente de um paciente, manifestada em pleno uso de suas faculdades depois de receber a informação adequada para que tenha lugar uma atuação que afeta sua saúde;


c) Cuidados Paliativos - O conjunto coordenado de intervenções sanitárias dirigidas a partir de um enfoque integral, à melhora da qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares, abordando os problemas associados a uma enfermidade terminal, mediante a prevenção e o alívio do sofrimento, assim como a identificação, avaliação e tratamento da dor e outros sintomas físicos e/ou psíquicos.


d) Intervenção no Âmbito da Saúde - Toda atuação realizada com fins preventivos, diagnósticos, terapêuticos, reabilitadores ou de investigação.


e) Limitação do Esforço Terapêutico - A retirada ou a não instauração de uma medida de suporte vital ou de qualquer outra intervenção a qual, dado o mau prognóstico do paciente em termos de quantidade e qualidade futuras de vida, constitui, a juízo dos profissionais sanitários implicados, algo fútil que somente contribui para prolongar no tempo uma situação clínica carente de expectativas razoáveis de melhoria;


f) Medida de Suporte Vital - intervenção sanitária destinada a manter os sinais vitais de um paciente, independentemente de esta intervenção atuar ou não terapeuticamente sobre a enfermidade ou o processo biológico que ameaça a vida do paciente 


g) Obstinação Terapêutica - situação em que se iniciam ou se mantêm medidas de suporte vital ou outras intervenções carentes de utilidade clínica, unicamente no sentido de prolongar a vida biológica de uma pessoa que se encontra em situação terminal ou de agonia, sem possibilidades reais de melhora ou recuperação, sendo em consequência, suscetíveis de limitação.


h) Sedação Paliativa - administração de fármacos em doses e combinações requeridas, para reduzir a consciência de um paciente em situação terminal ou de agonia, para aliviar adequadamente um ou mais sintomas refratários, com prévio consentimento informado, explícito, nos termos da legislação em vigor.


i) Sintoma Refratário - aquele que não responde ao tratamento adequado e precisa, para ser controlado, reduzir a consciência do paciente.


j) Situação de Agonia - Fase gradual que precede à morte e que se manifesta clinicamente por uma deterioração física grave, debilidade extrema, transtornos cognitivos e de consciência, dificuldade de relacionamento, de alimentação e prognóstico vital de poucos dias.


l) Situação de Incapacidade de Fato - Situação em que as pessoas carecem de entendimento e vontade suficientes para governar sua vida por si mesmas de forma autônoma, sem que necessariamente haja uma decisão judicial neste sentido.


m) Situação Terminal - Presença de uma enfermidade avançada, incurável e progressiva, sem possibilidades razoáveis de resposta a tratamento específico, com um prognóstico de vida limitado e onde ocorrem sintomas intensos e cambiantes que requerem grande intensidade nas intervenções específicas por parte dos profissionais de saúde.


n) Valores Vitais - Conjunto de valores e crenças de uma pessoa que dão sentido ao seu projeto de vida e que sustentam suas decisões e preferências nos processos de enfermidade e morte.


lex lata em seus artigos sexto a nono elenca os seguintes direitos das pessoas em processo de morte:


1 - Direito à Informação Assistencial - Este instituto vem previsto nos artigos IV e V da Lei 41 editada pelo Rei Juan Carlos, em novembro de 2002 e que regulamenta a autonomia do paciente, os direitos fundamentais e as obrigações em matéria de informação e documentação clínica, conforme pode ser observado no texto integral da lei, disponível em http://www.sociedadandaluzadebioetica.es/docs/Ley_41_2002_14_noviembre.pdf


2 - Tomada de decisões e consentimento informado


3 - Direito de recusar, por escrito ou a rogo, a intervenção médica proposta, após todo o processo de informação e decisão, mesmo que ponha em perigo sua vida.


4 - Direito de realizar sua declaração de vontade vital antecipada


Em seu artigo XI, o novo texto legal define que todo paciente menor de idade tem direito a receber informações sobre sua enfermidade e intervenções sanitárias propostas, de forma adaptada a sua capacidade de compreensão, tendo direito também a manifestar sua opinião, se já contar com pelo menos doze anos de idade. Não sendo capaz intelectual, nem emocionalmente para entender o alcance das informações prestadas, estas deverão ser passadas a seus representantes legais.


Os emancipados ou com mais de dezesseis anos de idade prestarão por si mesmos seu consentimento, seus pais ou representantes serão informados, e sua opinião será levada em conta para a tomada de decisão final correspondente. Os emancipados ou maiores de dezesseis anos também têm direito a revogar o consentimento informado e rechaçar a intervenção que lhes seja proposta pelos profissionais de saúde.


Os pacientes, segundo os artigos XII a XVI, possuem direito a receber cuidados paliativos integrais e de elegerem o domicílio para recebê-los, desde que dentro do âmbito da Comunidade Autônoma da Andaluzia; direito de receber tratamento para prevenir e aliviar a dor, incluída a possibilidade de sedação, se a dor for refratária ao tratamento específico; direito a receber sedação paliativa, quando precise; direito a intimidade pessoal e familiar e a proteção a todos os dados relacionados com sua atenção sanitária; estando em regime de internação, o paciente em processo de morte tem direito, se assim o desejar, a acompanhamento familiar, além do direito a receber auxílio espiritual de acordo com suas crenças e convicções.


Os profissionais da área de saúde têm seus deveres previstos no Título III da nova Lei Andaluza, todos logicamente decantados dos direitos dos pacientes em processo de morte, a serem observados por força da nova lei.


Assim, o artigo XVII estabelece que os profissionais devam observar o cumprimento do direito à informação do paciente; a seguir determina-se o dever de observar, antes de se tomar qualquer decisão, os aspectos clínicos da pessoa em processo de morte, devendo elaborar seu juízo clínico com base no estado da ciência, na evidência científica disponível, em seu saber profissional, em sua experiência, e no estado clínico, gravidade e prognóstico da pessoa enferma, submetendo suas conclusões ao paciente e respeitando a decisão posterior deste.


Determina ainda o documento legal que os profissionais da saúde proporcionem informações a respeito da Declaração de Vontade Vital Antecipada, na forma da lei em vigor.


Outro dever imposto aos médicos responsáveis pelas pessoas em processo de morte é o de valorar se o paciente encontra-se em uma situação de incapacidade de fato que lhe impeça de tomar decisões por si mesmo, devendo tal valoração encontrar-se adequadamente no histórico clínico do paciente, seja por não compreender as informações que lhe são passadas, ou por não retê-las, ou por não utilizá-las de forma lógica, ou se falha na apreciação das possíveis conseqüências das diferentes alternativas, ou ainda se não logra tomar uma decisão final ou comunicá-la.


Por fim, o artigo XXI determina os deveres atinentes à limitação do esforço terapêutico, estabelecendo que o médico responsável pelo paciente, no exercício de uma boa prática clínica, limitará o esforço terapêutico, quando a situação clínica do paciente o aconselhe, evitando a obstinação terapêutica, justificando essa tomada de decisão no histórico clínico do paciente. Tal limitação requer a opinião coincidente de, pelo menos, outros dois profissionais de saúde, entre os que participam do tratamento do paciente.


As garantias a serem proporcionadas pelas instituições sanitárias estão contidas nos artigos XXII a XXVII, determinando que se observem os direitos do paciente, o acompanhamento do paciente, o apoio à família e às pessoas cuidadoras, o assessoramento em cuidados paliativos, a internação em quarto individual para pessoas em situação terminal e a criação dos Comitês de Ética Assistencial.


Os Comitês de Ética Assistencial serão criados em todos os Centros ou Instituições Sanitárias, com funções de assessoramento para os casos de decisões clínicas que envolvam conflitos éticos, como por exemplo, em casos de discrepância entre os profissionais sanitários e os pacientes ou com quem os representem em seus direitos, ou ainda, entre estes e as instituições sanitárias, com respeito à atenção sanitária prestada no processo de morte, os quais não se resolvam mediante acordo entre as partes, cabendo ao Comitê de Ética propor alternativas ou soluções éticas para as decisões clínicas controvertidas, observado o dever de se guardar segredo sobre o conteúdo de suas deliberações.


Por fim, a lei estabelece as penalidades administrativas aplicáveis às infrações cometidas pelos profissionais de saúde, em descumprimento à nova lei, dividindo-as em infrações leves, graves e gravíssimas, submetendo o aplicador da lei às determinações previamente contidas na Lei Geral de Saúde, publicada em 1986, sem prejuízo das responsabilidades civis e penais que possam ocorrer.






retiado do Portal IBDFAM - http://www.ibdfam.org.br/

As inovações biotecnológicas e o direito das sucessões*

 Autor: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
A estrutura das disciplinas jurídicas, como se sabe, é passível de modificações que reflitam as mudanças havidas na própria vida humana. Quando se abre uma prática nova na experiência humana, na sociedade ou nas práticas técnicas ou científicas, não é raro, então, que esta mudança logo seja repercutida no próprio direito.
Esta correlação entre experiência social e prática jurídica é um lugar-comum, bem se sabe, mas ainda assim pode acontecer de nos sentirmos chocados, em certos momentos, por descobrirmos que o direito não está prevenido o bastante para solucionar certos problemas absolutamente inovadores, naquele momento e, bem por isso, deverá ser o próprio direito que terá que mudar, para que aquele problema não reste sem solução.
Não se trata, é claro, de dizer que as mudanças na estrutura do direito devam acompanhar toda e qualquer novidade na vida humana: há situações em que a nova prática social deve, no caso, ser repelida pelo direito, ao invés de ser por ele absorvida. Seria o caso, por exemplo, de nosso sistema jurídico reconhecer como prática lícita o tráfico de mulheres, o trabalho infantil ou a autotutela armada? Ao contrário, em lugar de se adaptar a qualquer uma destas práticas, infelizmente muito comuns entre nós, cabe ao direito combatê-las sem cessar, pois nestes casos se trata, claramente, de afrontas à dignidade da pessoa humana.
É o que fazemos insistentemente contra práticas que se revelam criminosas, danosas, antijurídicas, tanto na esfera pública como na esfera privada. Muitas práticas antijurídicas sempre foram e sempre serão crimes entre nós, a exemplo do homicídio. Outras já foram crimes e deixaram de sê-lo, como o adultério. Outras práticas — crimes ou contravenções ainda hoje — pode até ser que passem, um dia, a ser práticas aceitáveis, como por exemplo, a prostituição. Por outro lado, algumas práticas que já foram socialmente passáveis tornaram-se crimes, a exemplo do assédio sexual. E outras — que hoje são consideradas normais — talvez ainda se tornem crimes, como a especulação imobiliária sem limites, sem regras, sem ética.
Este tema do grau de juridicidade ou antijuridicidade das práticas humanas é uma boa referência para as relações entre direito e sociedade, e para dar visibilidade às mudanças por que passa, ou pode passar, o direito. O alcance de cada uma dessas mudanças, sua eficácia, sua aceitabilidade, seu êxito ou seu fracasso, depende de cada caso e não ocorre da mesma forma em todas as sociedades, cujas culturas sempre diferem em pontos fundamentais. Mas o fato é que não há sociedade que não seja dinâmica, e correlatamente não há sistema jurídico imune a mudanças ditadas pelas transformações no interior das sociedades. Igualmente, a influência se dá das sociedades sobre o direito, e não do direito sobre as sociedades.
Às vezes, as mudanças em sociedade são tais que geram um conjunto muito amplo de inovações jurídicas. Quando essas inovações são tais e tantas que se perde a consistência do sistema jurídico original, é chegada a hora de modificar o próprio sistema. Essa regra vale tanto para a perspectiva de uma Constituição, como para a de um Código Civil: ambos pedem remodelação quando seus institutos já não correspondem diretamente à sociedade a que foram dirigidos.
Além da revisão ou substituição das leis, as inovações sociais causam, no direito, o surgimento de novas áreas, de micros-sistemas que podem mesmo serem estudados independentemente do panorama maior, a exemplo do direito do consumidor, do direito autoral, ou direito ambiental: pode-se considerá-los sistemas em certa medida independentes, dotados de princípios que não se confundem com os do direito civil ou do direito constitucional.
Se nos foi possível desenharmos para a nossa sociedade um Código de Defesa do Consumidor, não foi, certamente, apenas porque o tema da proteção ao consumidor surgiu dentro do direito civil e do direito constitucional, mas, antes, porque esta área se mostrou interdisciplinar dentro do próprio direito, incapaz de ser abrangida por uma única das divisões tradicionais e, ao mesmo tempo, capaz de dar conta de si mesma, ou seja, de sustentar-se em princípios exclusivamente seus, como o princípio segundo o qual um atributo essencial do cidadão é ser protegido nas suas relações de consumo.
Em resumo: o tema do consumidor existia no direito civil e no direito constitucional, mas não podia ser confinado nem só a um, nem só a outro dos segmentos mencionados. Só quando foi reconhecido como uma área jurídica autônoma, como um micro-sistema, é que pôde ser expressa numa legislação apropriada e eficiente, tirando da multidisciplinariedade o seu próprio caráter interdisciplinar.
Esta conquista alcançada pelo direito do consumidor — mas também pelo direito autoral, pelos direitos da criança e do adolescente ou pelo direito ambiental — é bem aceita por nós hoje, Já nos acostumamos muito bem a ela, e mesmo a idéia de micro-sistema dentro (ou a partir) dos tradicionais sistemas jurídicos é uma idéia que tem se tornado comum. Comum mesmo quando somos apanhados de surpresa por certas inovações das práticas humanas que não são compatíveis com os institutos jurídicos tradicionais e, assim, levantam a hipótese de serem absorvidas por soluções interdisciplinares ou por novos institutos. Ao contrário do que pode parecer, tais surpresas convivem conosco com muito mais freqüência do que ousamos admitir, e nem sempre há como respondermos a elas de uma maneira verdadeiramente segura.
Dito de outra forma: há certas novidades humanas que, mesmo sendo inevitáveis ou irrecusáveis, não podem ser solucionadas pelos mecanismos jurídicos disponíveis no momento. E, porque não conseguimos, na condição de juristas, nos adaptarmos com facilidade a certo conjunto de inovações, acabamos por nos confundir na tentativa de reorganizar nosso próprio sistema jurídico.
A expressão biodireito é, hoje, o resultado mais evidente de nossa dificuldade em lidar com as inovações humanas. Não é possível definir biodireito com a mesma facilidade com que se chegou, por exemplo, à definição de direito consumerista, ou mesmo de direito ambiental. Ao contrário, pela expressão biodireito tentamos silenciar, provavelmente, um conjunto de perplexidades que talvez ainda não sejam plenamente compreensíveis por nós. Neste momento em que o termo busca um mínimo de univocidade para que dele se possa falar com segurança, o chamado biodireito tem sido vulgarmente compreendido um conjunto de instrumentos jurídicos — conceitos, institutos, julgados — que respondem às questões em torno da manipulação do meio ambiente e das estruturas biológicas, especialmente o corpo humano.
Em outras palavras: por biodireito tem sido entendido o que seria supostamente um novo ramo do direito, mais um campo jurídico interdisciplinar do que exatamente uma nova disciplina, que busca apreciar juridicamente as novas práticas humanas de manipulação da vida.
Essa tarefa da definição do biodireito, dos seus alcances, das suas dificuldades e aporias — e mesmo da sua relevância — é hoje um assunto inevitável para o direito civil-constitucional. Porque, dentre as inovações sociais a que eu me referia anteriormente, uma prática que se intensificou numa extensão impressionante nas últimas décadas — a ponto de abalar crenças e valores considerados sagrados — tem se dado justamente no campo das ciências biológicas. O desenvolvimento científico e tecnológico dos últimos anos nos brindou com conquistas antes concebíveis apenas na ficção científica, nesse terreno tão delicado como é o da manipulação dos organismos. Em sentido amplo, a manipulação ou experimentação em organismos não é novidade nenhuma, pois há séculos é praticada a mistura forçada de diferentes espécies animais e vegetais, em razão de necessidades agropecuárias. Desta manipulação, surgiram novas raças animais, criaram-se artificialmente novas formas vegetais. Isso sempre foi, em linhas gerais, manipulação da vida, com impactos diretos — e muitas vezes positivos — na própria vida humana e, principalmente, no meio ambiente.
Há algumas décadas, contudo, ampliaram-se as preocupações — que não eram tantas — diante das conseqüências da manipulação dos organismos, especialmente com a manipulação genética, talvez a maior de todas as inovação da biotecnologia.
A manipulação genética, ou manipulação do DNA, a princípio realizável em qualquer organismo, tem posto as ciências biológicas como principal paradigma do desenvolvimento científico. Assim como aquela manipulação milenar das espécies agrícolas, esta manipulação genética é uma intervenção artificial do homem na ordem da natureza, que em termos estritamente tecnológicos apenas corresponde a um passo mais avançado em termos tecnológicos. Igualmente, é uma modalidade de manipulação de organismos inevitável, que seria alcançada algum dia — e o dia chegou, enfim. Também como aquelas manipulações dos tempos antigos, esta dos tempos atuais tem ao seu lado as mais nobres intenções: a grande vantagem trazida pela manipulação genética dos organismos pode levar ao fortalecimento dos organismos por várias vias — por exemplo, a cura de enfermidades ou a produção de alimentos. Igualmente, o mau uso dessa tecnologia pode gerar problemas, de maneira que juntamente com o desenvolvimento das técnicas de manipulação genética é fundamental a definição de práticas responsáveis de manipulação, para que o efeito dessa bioengenharia não leve a resultados destrutivos, agressivos inclusive ao meio ambiente.
Como se vê, biodireito, direito ambiental, bioengenharia e biotecnologia são conceitos que correm o risco de se confundir. É preciso, bem por isso, esclarecer qual o campo específico de cada um, qual é a juridicidade destas formas de direito que se referem às práticas biológicas, e qual a relevância de tais distinções para o direito civil-constitucional.
Uma questão essencial é a própria relação entre direito ambiental e biodireito: não seriam, afinal, a mesma coisa? O ponto de partida para esta tarefa é a definição de biotecnologia, porque este termo — surgido nos anos 1940 e apropriado pelo direito nos anos 1980 — evidenciou haver, no mínimo, uma diferença irrecusável entre direito ambiental e biodireito.
O que é biotecnologia? Este termo havia surgido pela primeira vez em 1941, em inglês, como um termo da biologia e da engenharia que, justamente, diz respeito à aplicação industrial de práticas de bioengenharia, que por sua vez são práticas de manipulação de organismos — exatamente as tecnologias de manipulação de organismos a que nos referimos aqui, mas que no âmbito da biologia e da engenharia são desenvolvidas na perspectiva da pesquisa científica e não da produção industrial. Estas práticas de bioengenharia são muito diversificadas, a ponto de a bioengenharia comportar, pelo menos, sete subdivisões: engenharia médica (cria órgãos artificiais e viabiliza transplantes), engenharia agrícola (orienta a manipulação agropecuária), biônica (produz máquinas tendo organismos como modelos), engenharia bioquímica (produz novos produtos orgânicos, p.ex., proteínas e medicamentos), engenharia ergonômica (otimiza as relações entre homem e máquina), engenharia ambiental (otimiza as relações entre homem e meio ambiente) e, enfim, engenharia genética (viabiliza a manipulação genética dos organismos).
A bioengenharia, assim, tomada do ponto de vista original da parceria entre biologia e engenharias, é extremamente antiga e consideravelmente anterior à própria industrialização, mas graças evidentemente às suas aplicações industriais assumiu esse leque tão amplo de aplicações. Nesse contexto de extensão das descobertas científicas à produção industrial, as inovações ou aplicações da bioengenharia passaram a ser reconhecidas como inovações ou aplicações biotecnológicas. A transposição é correta, porque uma tecnologia é uma aplicação prática das leis ditadas por uma engenharia: a engenharia mostra como se deve fazer, a tecnologia mostra como se pode fazer, e a técnica faz.
Igualmente, a bioengenharia mostra como se deve manipular organismos que se pretenda manipular e a biotecnologia mostra como se viabiliza tal manipulação diante das condições e interesses presentes. Ora, no contexto original da bioengenharia, quando esses interesses são industriais, já se está afalar também de biotecnologia, e as técnicas aplicadas não são meramente técnicas de estudo e pesquisa de manipulação de organismos, mas sim técnicas produtivas, ou exploráveis industrialmente, de manipulação de organismos. Inovações biotecnológicas são, assim, inovações da bioengenharia que estão sendo aplicadas em escala industrial.
A biotecnologia interessa ao direito ambiental ou ao biodireito? A resposta será afirmativa, isto é, interessará ao direito ambiental se pensarmos na biotecnologia como uma aplicação da engenharia ambiental.
Mas não foi como uma aplicação da engenharia ambiental que a biotecnologia apareceu pela primeira vez, com alguma relevância para os juristas. A primeira vez que isso ocorreu a biotecnologia foi vista, sim, como aplicação industrial da bioengenharia, mas sua relevância não apareceu ao direito enquanto instrumento de dano ao meio ambiente, nem enquanto instrumento de aprimoramento de organismos por meio de modificação. Sua relevância jurídica foi — e ainda é — a de um objeto comercial: a biotecnologia tornou-se termo também jurídico quando, em 1980, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que "um microorganismo vivo feito pelo homem é objeto de patente".
Surgiu, efetivamente, um outro conceito de biotecnologia, um conceito estritamente jurídico de biotecnologia, em torno do qual serão definidos outros interesses industriais, econômicos e até mesmo éticos. Uma vez patenteável uma técnica biotecnológica — algo que, convenhamos, não tardaria a acontecer, ainda mais nos Estados Unidos —, todos os passos que levam à inovação biotecnológica passam a obedecer a uma lógica muito diversa daquela que orienta a pesquisa em prol do conhecimento. Vale dizer, as inovações biotecnológicas passam a ser orientadas em função da obtenção de lucros, e por isso mesmo deverão ser favorecidas ou rebatidas caso impliquem, respectivamente, aumento ou perda de mercado.
Hoje, quando se fala de biodireito, é em seu interior que surge a discussão das inovações biotecnológicas; mas não estamos mais naquele horizonte indicado pela curiosidade científica ou pelo experimento tecnológico: estamos inteiramente fincados no horizonte da exploração comercial dessa indústria da biotecnologia, desde que o biodireito vem sendo discutido como um conjunto de expedientes jurídicos para garantir a obtenção de patentes em biotecnologia.
É exatamente isso que tem sido feito das práticas de biotecnologia no mundo todo, e em certa medida é também isso que eventualmente possa estar por trás do interesse de todo o discurso dos cientistas e técnicos brasileiros que defendem a legalização, no Brasil, dos experimentos com células-tronco. Ou não. De que lado estamos? Do lado da defesa dos interesses comerciais ou do lado da defesa dos interesses da própria ciência? O biodireito, especificamente, serve a quem?
Curiosamente, biodireito é um termo que foi criado na década de 1970 com uma acepção muito aproximada da noção de direito ambiental. Talvez porque anterior a essa realidade de ser possível patentear inovações de biotecnologia, o biodireito foi originalmente pensado como um conjunto de instrumentos jurídicos que visavam justamente a proteção dos direitos do homem de usufruir, de maneira sustentável, o meio ambiente. Assim, revelava-se praticamente como a concepção de um direito ecológico, que privilegiava a noção de exploração externa da vida.
Uma vez tornada mais amplamente acessível a exploração industrial da pesquisa interna dos organismos, o termo biodireito perdeu muito daquela acepção ecológica original, o que fez crescer, segundo penso, a atual perplexidade em torno de se saber o que é, ou não, jurídico, em todas as práticas de manipulação dos organismos, e mais especificamente quais são as conseqüências de tais práticas em todos os âmbitos tradicionais do direito. E, confirmando o princípio segundo o qual o direito repercute as perplexidades — e as ingenuidades, as crenças, os medos — da sociedade, não seria em vão refletir acerca dos princípios que devessem reger este novo ramo denominado biodireito. Dizendo de outro modo: sei que seria ingênuo demais pensar que a pesquisa em biotecnologia é movida exclusivamente pelo amor à ciência. É certo que os interesses comerciais — ainda que em nome do progresso e do desenvolvimento econômicos de uma nação — investem significativamente na criação de novas práticas biotecnológicas. Afinal, se estas se mostrarem viáveis, poderiam ser industrializadas. Mas, uma vez viabilizada a pesquisa em biotecnologia — não a defendo aqui, expressamente e com a ênfase que mereceria ser defendida, porque considero, de antemão, que sua validade é óbvia —, o biodireito que dela quiser se ocupar será um micro-sistema fundamentado em quais princípios? Nos princípios do direito privado ou do direito público? Difícil pergunta e difícil resposta, uma vez que o biodireito, embora a sua alta interdisciplinaridade, não está perfeitamente estruturado sobre uma sólida e bem clara principiologia de regência.
O ideal seria que o biodireito pudesse se definir e se estruturar a partir de um único e consistente conjunto de princípios com o qual, aliás, já se identificou melhor, um dia: o conjunto dos princípios do direito ambiental, visíveis na ótica do direito civil-constitucional, e que não são incompatíveis com os experimentos biotecnológicos. Ao contrário, a preocupação com o meio ambiente é fundamental para garantir inofensividade a tais experimentos e, conseqüentemente, até mesmo à produção em escala industrial de seus resultados, se ela não se manifestar nefasta.
Uma reflexão assim, ainda que apenas tangenciando questões que são tão mais profundas e polêmicas, me permite buscar ingressar no cerne deste tema, para procurar identificar onde está o ponto de relação entre as inovações biotecnológicas e o direito das sucessões. Pode até parecer que esta relação é fácil de ser desenhada, que o "biodireito" (que responde a tais inovações biotecnológicas) é tão bem definido quando o é o direito das sucessões. Ledo engano. O que temos de claramente definido é que nosso sistema sucessório, mesmo o do Código Civil de 2002, pertence a um mundo diferente deste em que a engenharia genética pode, entre tantas outras coisas, e por exemplo, viabilizar uma concepção após a morte dos ascendentes biológicos. Aliás, nem mesmo o próprio direito das sucessões, positivado em 2002, se expressa com desejável atualidade e segurança, a respeito de temas interligados com as novas biotecnologias, como no caso: a) da definição da condição sucessória do embrião pré-implantatório, ou ainda, diferentemente, b) no caso de concepção (ou fertilização homóloga) pos mortem.
Há, à volta destas discussões, um profundo discurso moralista e teológico que tende a se registrar contrário a esse tipo de inovação derivada da bioengenharia. Eu o ignorarei aqui, como nem mesmo poderia deixar de ser, e considerarei que não há problemas de ordem moral interferindo na avaliação do impacto das práticas biotecnológicas sobre o direito das sucessões. Portanto, ficarei apenas com as questões fundamentais a enfrentar: a) haverá problemas ético-jurídicos a identificar? b) já é possível, ao jurista, dar com segurança as respostas a todas estas questões?
O Código Civil atual preferiu, em suas linhas mestras, não cuidar de questões relacionadas à reprodução humana assistida, e o próprio Professor Miguel Reale afirmou sempre que uma das diretrizes da sua proposta de codificação era, justamente, esta, de não regulamentar assuntos que ultrapassassem os lindes da área civil, ou que versassem sobre problemas de alta especificidade técnica. Preferiu, portanto, o legislador brasileiro deixar a cargo de lei própria e específica, a disciplina dos inúmeros pontos de discussão, oriundos da reprodução humana assistida, especialmente na sua correlação com o direito das sucessões, pelo quanto mais aqui nos importa.
Enquanto não temos a legislação especial promulgada, as questões fundamentais devem permanecer tratadas sob as luzes doutrinárias, e sob o encaminhamento hermenêutico dos dispositivos parcos que tratam — às vezes desastradamente — destas questões.
No primeiro dos casos antes apontados, quero dizer, a respeito de capacitar-se à sucessão de seus genitores biológicos, o embrião pré-implantatório, penso que a questão se porta até que com certa tranqüilidade, pois a doutrina tem mostrado que o conceito tradicional de nascituro — ser concebido e ainda não nascido — ampliou-se para além dos limites da concepção in vivo (no ventre feminino), compreendendo também a concepção in vitro (ou crioconservação). Tal ampliação se deu exatamente por causa das inovações biotecnológicas que possibilitam a fertilização fora do corpo humano, de modo que nascituro, agora, permanece sendo o ser concebido embora ainda não nascido, mas sem que faça qualquer diferença o locus da concepção, como bem informa e ensina Silmara Juny de Abreu Chinelato, cujo pensamento e posição acompanho inteiramente, aqui.
O conceito de nascituro abarca, portanto, o conceito de embrião, sendo desastroso a separação jurídica ou legislada dos termos, pois que pode trazer mais confusão do que solução, pela interpretação (errada) de que sejam diferentes casos. Embrião, afinal, é singularmente um dos estágios de evolução do ovo, que se fará nascituro. Ainda que não implantado, o embrião está concebido e, desde que identificado com os doadores de gametas, a ele será possível conferir herança, assim como ao nascituro, eis que o art. 1798 do Código Civil admite estarem legitimados a suceder não apenas as pessoas nascidas, mas também aquelas concebidas ao tempo da abertura da sucessão.
No entendimento de Silmara Juny de Abreu Chinelato, o embrião pré-implantatório poderá herdar como herdeiro legítimo ou testamentário. Assim, herdará legitimamente se se tratar de fertilização homóloga, isto é, se houver coincidência entre a mãe que o gera e a que o gesta, após a sua crioconservação. E poderá herdará testamentariamente (art. 1799 do Código Civil) se se tratar de fertilização heteróloga, isto é, se forem diferentes pessoas a doadora do óvulo e a que gesta.
Uma questão diferente, contudo — e deixando momentaneamente de lado a capacidade sucessória do embrião pré-implantatório — seria a de saber se, uma vez concebida uma pessoa após a morte do pai biológico (inseminação post mortem), teria ela direito a sucedê-lo? Todo o problema, aqui, se resume na questão de se viabilizar um suposto direito sucessório àquele que, no momento da abertura da sucessão, não era sequer concebido.
Ora, bem se sabe que o material genético pode ser mantido congelado por décadas, nas clínicas de reprodução assistida — aliás, exemplo notável de aplicação da biotecnologia — e ser implantado (depois da inseminação) após a morte do pai. Esta possibilidade parece admitida pelo inciso III do art. 1597 do Código Civil, mas seguramente envolve direito da personalidade do pai, doador do sêmen. O caput do dispositivo opera uma presunção de paternidade que, no entanto, deve ser analisada com cuidado, em casos assim, uma vez que não se pode presumir que alguém quisesse ser pai depois de sua morte, salvo se houvesse manifestação clara da vontade neste sentido, isto é, em prol da fertilização tardia. O inciso III não faz esta ressalva, mas o cuidado já foi bem analisado na I Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários, por meio do Enunciado nº 106 que expressou: para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com material genético do marido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatória, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após a sua morte.
Então, supondo que tenha havido a autorização e que os demais requisitos tenham sido observados, admitindo-se, assim, a inseminação post mortem, operar-se-á o vinculo parental de filiação, com todas as conseqüências daí resultantes, conforme a regra basilar da Constituição Federal, pelo seu art. 226, § 6º, incluindo os direitos sucessórios relativamente à herança do pai falecido.
Caros amigos, neste Congresso.
Ao lado destas questões sucessórias aqui apontadas e relacionadas às inovações biotecnológicas, muitas outras questões poderiam ser levantadas, pois que o cardápio delas é muito grande, controvertido e delicado. São questões que o direito deve enfrentar, sem dúvida, e que o fará melhor se houver a disponibilidade para os cruzamentos interdisciplinares, pontuando as eventuais soluções sucessórias a partir da análise acurada do fenômeno biotecnológico inovador, à luz dos demais saberes e das demais ciências, sempre sob o indispensável enfoque constitucional, matizado pelos valores supremos da ordem jurídica, como os ideais de dignidade, de igualdade, de segurança e de justiça.
Se assim for, os receios e as angustias inicialmente apontados nesta minha exposição certamente cederão espaço para as expectativas de um futuro mais promissor. Basta estarmos atentos e preocupados com a pessoa humana, antes de qualquer outra coisa.
Obrigada.
* Palestra proferida no I Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro "Interpretação do Direito Civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional", sob a coordenação científica do Professor Gustavo Tepedino (UERJ), em 23 de setembro de 2006. Esta palestra está especialmente dedicada à Professora Silmara Juny de Abreu Chinelato, Professora Associada do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP, com o meu público reconhecimento acerca de seu valioso e inegável pioneirismo de pesquisa na área biotecnológica associada ao direito, entre nós.
1.Cf. Dicionário Houaiss, verbete "biotecnologia".



Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka é diretora do IBDFAM - Região Sudeste professora, Doutora e livre-docente pela USP
 retirado do site do IBDFAM

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Decisão do STF sobre constitucionalidade da Lei de Biossegurança


(Leia a decisão na íntegra clicando no link)
http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=
Em decisão histórica o STF proferiu julgamento a respeito da constitucionalidade da Lei de Biossegurança especificamente no tocante às pesquisas com células-tronco embrionárias.
O processo teve como relator o Ministro Ayres Britto e contou com a participação dos demais Ministros em votos aprofundados com o julgamento final pela improcedência da ação direta de inconstitucionalidade. Afirmou a suficiência das cautelas e restrições impostas pela Lei de Biossegurança na condução das pesquisas e assegurando a liberdade de expressão científica.