Autor: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
A estrutura das disciplinas jurídicas, como se sabe, é passível de modificações que reflitam as mudanças havidas na própria vida humana. Quando se abre uma prática nova na experiência humana, na sociedade ou nas práticas técnicas ou científicas, não é raro, então, que esta mudança logo seja repercutida no próprio direito.
Esta correlação entre experiência social e prática jurídica é um lugar-comum, bem se sabe, mas ainda assim pode acontecer de nos sentirmos chocados, em certos momentos, por descobrirmos que o direito não está prevenido o bastante para solucionar certos problemas absolutamente inovadores, naquele momento e, bem por isso, deverá ser o próprio direito que terá que mudar, para que aquele problema não reste sem solução.
Não se trata, é claro, de dizer que as mudanças na estrutura do direito devam acompanhar toda e qualquer novidade na vida humana: há situações em que a nova prática social deve, no caso, ser repelida pelo direito, ao invés de ser por ele absorvida. Seria o caso, por exemplo, de nosso sistema jurídico reconhecer como prática lícita o tráfico de mulheres, o trabalho infantil ou a autotutela armada? Ao contrário, em lugar de se adaptar a qualquer uma destas práticas, infelizmente muito comuns entre nós, cabe ao direito combatê-las sem cessar, pois nestes casos se trata, claramente, de afrontas à dignidade da pessoa humana.
É o que fazemos insistentemente contra práticas que se revelam criminosas, danosas, antijurídicas, tanto na esfera pública como na esfera privada. Muitas práticas antijurídicas sempre foram e sempre serão crimes entre nós, a exemplo do homicídio. Outras já foram crimes e deixaram de sê-lo, como o adultério. Outras práticas — crimes ou contravenções ainda hoje — pode até ser que passem, um dia, a ser práticas aceitáveis, como por exemplo, a prostituição. Por outro lado, algumas práticas que já foram socialmente passáveis tornaram-se crimes, a exemplo do assédio sexual. E outras — que hoje são consideradas normais — talvez ainda se tornem crimes, como a especulação imobiliária sem limites, sem regras, sem ética.
Este tema do grau de juridicidade ou antijuridicidade das práticas humanas é uma boa referência para as relações entre direito e sociedade, e para dar visibilidade às mudanças por que passa, ou pode passar, o direito. O alcance de cada uma dessas mudanças, sua eficácia, sua aceitabilidade, seu êxito ou seu fracasso, depende de cada caso e não ocorre da mesma forma em todas as sociedades, cujas culturas sempre diferem em pontos fundamentais. Mas o fato é que não há sociedade que não seja dinâmica, e correlatamente não há sistema jurídico imune a mudanças ditadas pelas transformações no interior das sociedades. Igualmente, a influência se dá das sociedades sobre o direito, e não do direito sobre as sociedades.
Às vezes, as mudanças em sociedade são tais que geram um conjunto muito amplo de inovações jurídicas. Quando essas inovações são tais e tantas que se perde a consistência do sistema jurídico original, é chegada a hora de modificar o próprio sistema. Essa regra vale tanto para a perspectiva de uma Constituição, como para a de um Código Civil: ambos pedem remodelação quando seus institutos já não correspondem diretamente à sociedade a que foram dirigidos.
Além da revisão ou substituição das leis, as inovações sociais causam, no direito, o surgimento de novas áreas, de micros-sistemas que podem mesmo serem estudados independentemente do panorama maior, a exemplo do direito do consumidor, do direito autoral, ou direito ambiental: pode-se considerá-los sistemas em certa medida independentes, dotados de princípios que não se confundem com os do direito civil ou do direito constitucional.
Se nos foi possível desenharmos para a nossa sociedade um Código de Defesa do Consumidor, não foi, certamente, apenas porque o tema da proteção ao consumidor surgiu dentro do direito civil e do direito constitucional, mas, antes, porque esta área se mostrou interdisciplinar dentro do próprio direito, incapaz de ser abrangida por uma única das divisões tradicionais e, ao mesmo tempo, capaz de dar conta de si mesma, ou seja, de sustentar-se em princípios exclusivamente seus, como o princípio segundo o qual um atributo essencial do cidadão é ser protegido nas suas relações de consumo.
Em resumo: o tema do consumidor existia no direito civil e no direito constitucional, mas não podia ser confinado nem só a um, nem só a outro dos segmentos mencionados. Só quando foi reconhecido como uma área jurídica autônoma, como um micro-sistema, é que pôde ser expressa numa legislação apropriada e eficiente, tirando da multidisciplinariedade o seu próprio caráter interdisciplinar.
Esta conquista alcançada pelo direito do consumidor — mas também pelo direito autoral, pelos direitos da criança e do adolescente ou pelo direito ambiental — é bem aceita por nós hoje, Já nos acostumamos muito bem a ela, e mesmo a idéia de micro-sistema dentro (ou a partir) dos tradicionais sistemas jurídicos é uma idéia que tem se tornado comum. Comum mesmo quando somos apanhados de surpresa por certas inovações das práticas humanas que não são compatíveis com os institutos jurídicos tradicionais e, assim, levantam a hipótese de serem absorvidas por soluções interdisciplinares ou por novos institutos. Ao contrário do que pode parecer, tais surpresas convivem conosco com muito mais freqüência do que ousamos admitir, e nem sempre há como respondermos a elas de uma maneira verdadeiramente segura.
Dito de outra forma: há certas novidades humanas que, mesmo sendo inevitáveis ou irrecusáveis, não podem ser solucionadas pelos mecanismos jurídicos disponíveis no momento. E, porque não conseguimos, na condição de juristas, nos adaptarmos com facilidade a certo conjunto de inovações, acabamos por nos confundir na tentativa de reorganizar nosso próprio sistema jurídico.
A expressão biodireito é, hoje, o resultado mais evidente de nossa dificuldade em lidar com as inovações humanas. Não é possível definir biodireito com a mesma facilidade com que se chegou, por exemplo, à definição de direito consumerista, ou mesmo de direito ambiental. Ao contrário, pela expressão biodireito tentamos silenciar, provavelmente, um conjunto de perplexidades que talvez ainda não sejam plenamente compreensíveis por nós. Neste momento em que o termo busca um mínimo de univocidade para que dele se possa falar com segurança, o chamado biodireito tem sido vulgarmente compreendido um conjunto de instrumentos jurídicos — conceitos, institutos, julgados — que respondem às questões em torno da manipulação do meio ambiente e das estruturas biológicas, especialmente o corpo humano.
Em outras palavras: por biodireito tem sido entendido o que seria supostamente um novo ramo do direito, mais um campo jurídico interdisciplinar do que exatamente uma nova disciplina, que busca apreciar juridicamente as novas práticas humanas de manipulação da vida.
Essa tarefa da definição do biodireito, dos seus alcances, das suas dificuldades e aporias — e mesmo da sua relevância — é hoje um assunto inevitável para o direito civil-constitucional. Porque, dentre as inovações sociais a que eu me referia anteriormente, uma prática que se intensificou numa extensão impressionante nas últimas décadas — a ponto de abalar crenças e valores considerados sagrados — tem se dado justamente no campo das ciências biológicas. O desenvolvimento científico e tecnológico dos últimos anos nos brindou com conquistas antes concebíveis apenas na ficção científica, nesse terreno tão delicado como é o da manipulação dos organismos. Em sentido amplo, a manipulação ou experimentação em organismos não é novidade nenhuma, pois há séculos é praticada a mistura forçada de diferentes espécies animais e vegetais, em razão de necessidades agropecuárias. Desta manipulação, surgiram novas raças animais, criaram-se artificialmente novas formas vegetais. Isso sempre foi, em linhas gerais, manipulação da vida, com impactos diretos — e muitas vezes positivos — na própria vida humana e, principalmente, no meio ambiente.
Há algumas décadas, contudo, ampliaram-se as preocupações — que não eram tantas — diante das conseqüências da manipulação dos organismos, especialmente com a manipulação genética, talvez a maior de todas as inovação da biotecnologia.
A manipulação genética, ou manipulação do DNA, a princípio realizável em qualquer organismo, tem posto as ciências biológicas como principal paradigma do desenvolvimento científico. Assim como aquela manipulação milenar das espécies agrícolas, esta manipulação genética é uma intervenção artificial do homem na ordem da natureza, que em termos estritamente tecnológicos apenas corresponde a um passo mais avançado em termos tecnológicos. Igualmente, é uma modalidade de manipulação de organismos inevitável, que seria alcançada algum dia — e o dia chegou, enfim. Também como aquelas manipulações dos tempos antigos, esta dos tempos atuais tem ao seu lado as mais nobres intenções: a grande vantagem trazida pela manipulação genética dos organismos pode levar ao fortalecimento dos organismos por várias vias — por exemplo, a cura de enfermidades ou a produção de alimentos. Igualmente, o mau uso dessa tecnologia pode gerar problemas, de maneira que juntamente com o desenvolvimento das técnicas de manipulação genética é fundamental a definição de práticas responsáveis de manipulação, para que o efeito dessa bioengenharia não leve a resultados destrutivos, agressivos inclusive ao meio ambiente.
Como se vê, biodireito, direito ambiental, bioengenharia e biotecnologia são conceitos que correm o risco de se confundir. É preciso, bem por isso, esclarecer qual o campo específico de cada um, qual é a juridicidade destas formas de direito que se referem às práticas biológicas, e qual a relevância de tais distinções para o direito civil-constitucional.
Uma questão essencial é a própria relação entre direito ambiental e biodireito: não seriam, afinal, a mesma coisa? O ponto de partida para esta tarefa é a definição de biotecnologia, porque este termo — surgido nos anos 1940 e apropriado pelo direito nos anos 1980 — evidenciou haver, no mínimo, uma diferença irrecusável entre direito ambiental e biodireito.
O que é biotecnologia? Este termo havia surgido pela primeira vez em 1941, em inglês, como um termo da biologia e da engenharia que, justamente, diz respeito à aplicação industrial de práticas de bioengenharia, que por sua vez são práticas de manipulação de organismos — exatamente as tecnologias de manipulação de organismos a que nos referimos aqui, mas que no âmbito da biologia e da engenharia são desenvolvidas na perspectiva da pesquisa científica e não da produção industrial. Estas práticas de bioengenharia são muito diversificadas, a ponto de a bioengenharia comportar, pelo menos, sete subdivisões: engenharia médica (cria órgãos artificiais e viabiliza transplantes), engenharia agrícola (orienta a manipulação agropecuária), biônica (produz máquinas tendo organismos como modelos), engenharia bioquímica (produz novos produtos orgânicos, p.ex., proteínas e medicamentos), engenharia ergonômica (otimiza as relações entre homem e máquina), engenharia ambiental (otimiza as relações entre homem e meio ambiente) e, enfim, engenharia genética (viabiliza a manipulação genética dos organismos).
A bioengenharia, assim, tomada do ponto de vista original da parceria entre biologia e engenharias, é extremamente antiga e consideravelmente anterior à própria industrialização, mas graças evidentemente às suas aplicações industriais assumiu esse leque tão amplo de aplicações. Nesse contexto de extensão das descobertas científicas à produção industrial, as inovações ou aplicações da bioengenharia passaram a ser reconhecidas como inovações ou aplicações biotecnológicas. A transposição é correta, porque uma tecnologia é uma aplicação prática das leis ditadas por uma engenharia: a engenharia mostra como se deve fazer, a tecnologia mostra como se pode fazer, e a técnica faz.
Igualmente, a bioengenharia mostra como se deve manipular organismos que se pretenda manipular e a biotecnologia mostra como se viabiliza tal manipulação diante das condições e interesses presentes. Ora, no contexto original da bioengenharia, quando esses interesses são industriais, já se está afalar também de biotecnologia, e as técnicas aplicadas não são meramente técnicas de estudo e pesquisa de manipulação de organismos, mas sim técnicas produtivas, ou exploráveis industrialmente, de manipulação de organismos. Inovações biotecnológicas são, assim, inovações da bioengenharia que estão sendo aplicadas em escala industrial.
A biotecnologia interessa ao direito ambiental ou ao biodireito? A resposta será afirmativa, isto é, interessará ao direito ambiental se pensarmos na biotecnologia como uma aplicação da engenharia ambiental.
Mas não foi como uma aplicação da engenharia ambiental que a biotecnologia apareceu pela primeira vez, com alguma relevância para os juristas. A primeira vez que isso ocorreu a biotecnologia foi vista, sim, como aplicação industrial da bioengenharia, mas sua relevância não apareceu ao direito enquanto instrumento de dano ao meio ambiente, nem enquanto instrumento de aprimoramento de organismos por meio de modificação. Sua relevância jurídica foi — e ainda é — a de um objeto comercial: a biotecnologia tornou-se termo também jurídico quando, em 1980, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que "um microorganismo vivo feito pelo homem é objeto de patente".
Surgiu, efetivamente, um outro conceito de biotecnologia, um conceito estritamente jurídico de biotecnologia, em torno do qual serão definidos outros interesses industriais, econômicos e até mesmo éticos. Uma vez patenteável uma técnica biotecnológica — algo que, convenhamos, não tardaria a acontecer, ainda mais nos Estados Unidos —, todos os passos que levam à inovação biotecnológica passam a obedecer a uma lógica muito diversa daquela que orienta a pesquisa em prol do conhecimento. Vale dizer, as inovações biotecnológicas passam a ser orientadas em função da obtenção de lucros, e por isso mesmo deverão ser favorecidas ou rebatidas caso impliquem, respectivamente, aumento ou perda de mercado.
Hoje, quando se fala de biodireito, é em seu interior que surge a discussão das inovações biotecnológicas; mas não estamos mais naquele horizonte indicado pela curiosidade científica ou pelo experimento tecnológico: estamos inteiramente fincados no horizonte da exploração comercial dessa indústria da biotecnologia, desde que o biodireito vem sendo discutido como um conjunto de expedientes jurídicos para garantir a obtenção de patentes em biotecnologia.
É exatamente isso que tem sido feito das práticas de biotecnologia no mundo todo, e em certa medida é também isso que eventualmente possa estar por trás do interesse de todo o discurso dos cientistas e técnicos brasileiros que defendem a legalização, no Brasil, dos experimentos com células-tronco. Ou não. De que lado estamos? Do lado da defesa dos interesses comerciais ou do lado da defesa dos interesses da própria ciência? O biodireito, especificamente, serve a quem?
Curiosamente, biodireito é um termo que foi criado na década de 1970 com uma acepção muito aproximada da noção de direito ambiental. Talvez porque anterior a essa realidade de ser possível patentear inovações de biotecnologia, o biodireito foi originalmente pensado como um conjunto de instrumentos jurídicos que visavam justamente a proteção dos direitos do homem de usufruir, de maneira sustentável, o meio ambiente. Assim, revelava-se praticamente como a concepção de um direito ecológico, que privilegiava a noção de exploração externa da vida.
Uma vez tornada mais amplamente acessível a exploração industrial da pesquisa interna dos organismos, o termo biodireito perdeu muito daquela acepção ecológica original, o que fez crescer, segundo penso, a atual perplexidade em torno de se saber o que é, ou não, jurídico, em todas as práticas de manipulação dos organismos, e mais especificamente quais são as conseqüências de tais práticas em todos os âmbitos tradicionais do direito. E, confirmando o princípio segundo o qual o direito repercute as perplexidades — e as ingenuidades, as crenças, os medos — da sociedade, não seria em vão refletir acerca dos princípios que devessem reger este novo ramo denominado biodireito. Dizendo de outro modo: sei que seria ingênuo demais pensar que a pesquisa em biotecnologia é movida exclusivamente pelo amor à ciência. É certo que os interesses comerciais — ainda que em nome do progresso e do desenvolvimento econômicos de uma nação — investem significativamente na criação de novas práticas biotecnológicas. Afinal, se estas se mostrarem viáveis, poderiam ser industrializadas. Mas, uma vez viabilizada a pesquisa em biotecnologia — não a defendo aqui, expressamente e com a ênfase que mereceria ser defendida, porque considero, de antemão, que sua validade é óbvia —, o biodireito que dela quiser se ocupar será um micro-sistema fundamentado em quais princípios? Nos princípios do direito privado ou do direito público? Difícil pergunta e difícil resposta, uma vez que o biodireito, embora a sua alta interdisciplinaridade, não está perfeitamente estruturado sobre uma sólida e bem clara principiologia de regência.
O ideal seria que o biodireito pudesse se definir e se estruturar a partir de um único e consistente conjunto de princípios com o qual, aliás, já se identificou melhor, um dia: o conjunto dos princípios do direito ambiental, visíveis na ótica do direito civil-constitucional, e que não são incompatíveis com os experimentos biotecnológicos. Ao contrário, a preocupação com o meio ambiente é fundamental para garantir inofensividade a tais experimentos e, conseqüentemente, até mesmo à produção em escala industrial de seus resultados, se ela não se manifestar nefasta.
Uma reflexão assim, ainda que apenas tangenciando questões que são tão mais profundas e polêmicas, me permite buscar ingressar no cerne deste tema, para procurar identificar onde está o ponto de relação entre as inovações biotecnológicas e o direito das sucessões. Pode até parecer que esta relação é fácil de ser desenhada, que o "biodireito" (que responde a tais inovações biotecnológicas) é tão bem definido quando o é o direito das sucessões. Ledo engano. O que temos de claramente definido é que nosso sistema sucessório, mesmo o do Código Civil de 2002, pertence a um mundo diferente deste em que a engenharia genética pode, entre tantas outras coisas, e por exemplo, viabilizar uma concepção após a morte dos ascendentes biológicos. Aliás, nem mesmo o próprio direito das sucessões, positivado em 2002, se expressa com desejável atualidade e segurança, a respeito de temas interligados com as novas biotecnologias, como no caso: a) da definição da condição sucessória do embrião pré-implantatório, ou ainda, diferentemente, b) no caso de concepção (ou fertilização homóloga) pos mortem.
Há, à volta destas discussões, um profundo discurso moralista e teológico que tende a se registrar contrário a esse tipo de inovação derivada da bioengenharia. Eu o ignorarei aqui, como nem mesmo poderia deixar de ser, e considerarei que não há problemas de ordem moral interferindo na avaliação do impacto das práticas biotecnológicas sobre o direito das sucessões. Portanto, ficarei apenas com as questões fundamentais a enfrentar: a) haverá problemas ético-jurídicos a identificar? b) já é possível, ao jurista, dar com segurança as respostas a todas estas questões?
O Código Civil atual preferiu, em suas linhas mestras, não cuidar de questões relacionadas à reprodução humana assistida, e o próprio Professor Miguel Reale afirmou sempre que uma das diretrizes da sua proposta de codificação era, justamente, esta, de não regulamentar assuntos que ultrapassassem os lindes da área civil, ou que versassem sobre problemas de alta especificidade técnica. Preferiu, portanto, o legislador brasileiro deixar a cargo de lei própria e específica, a disciplina dos inúmeros pontos de discussão, oriundos da reprodução humana assistida, especialmente na sua correlação com o direito das sucessões, pelo quanto mais aqui nos importa.
Enquanto não temos a legislação especial promulgada, as questões fundamentais devem permanecer tratadas sob as luzes doutrinárias, e sob o encaminhamento hermenêutico dos dispositivos parcos que tratam — às vezes desastradamente — destas questões.
No primeiro dos casos antes apontados, quero dizer, a respeito de capacitar-se à sucessão de seus genitores biológicos, o embrião pré-implantatório, penso que a questão se porta até que com certa tranqüilidade, pois a doutrina tem mostrado que o conceito tradicional de nascituro — ser concebido e ainda não nascido — ampliou-se para além dos limites da concepção in vivo (no ventre feminino), compreendendo também a concepção in vitro (ou crioconservação). Tal ampliação se deu exatamente por causa das inovações biotecnológicas que possibilitam a fertilização fora do corpo humano, de modo que nascituro, agora, permanece sendo o ser concebido embora ainda não nascido, mas sem que faça qualquer diferença o locus da concepção, como bem informa e ensina Silmara Juny de Abreu Chinelato, cujo pensamento e posição acompanho inteiramente, aqui.
O conceito de nascituro abarca, portanto, o conceito de embrião, sendo desastroso a separação jurídica ou legislada dos termos, pois que pode trazer mais confusão do que solução, pela interpretação (errada) de que sejam diferentes casos. Embrião, afinal, é singularmente um dos estágios de evolução do ovo, que se fará nascituro. Ainda que não implantado, o embrião está concebido e, desde que identificado com os doadores de gametas, a ele será possível conferir herança, assim como ao nascituro, eis que o art. 1798 do Código Civil admite estarem legitimados a suceder não apenas as pessoas nascidas, mas também aquelas concebidas ao tempo da abertura da sucessão.
No entendimento de Silmara Juny de Abreu Chinelato, o embrião pré-implantatório poderá herdar como herdeiro legítimo ou testamentário. Assim, herdará legitimamente se se tratar de fertilização homóloga, isto é, se houver coincidência entre a mãe que o gera e a que o gesta, após a sua crioconservação. E poderá herdará testamentariamente (art. 1799 do Código Civil) se se tratar de fertilização heteróloga, isto é, se forem diferentes pessoas a doadora do óvulo e a que gesta.
Uma questão diferente, contudo — e deixando momentaneamente de lado a capacidade sucessória do embrião pré-implantatório — seria a de saber se, uma vez concebida uma pessoa após a morte do pai biológico (inseminação post mortem), teria ela direito a sucedê-lo? Todo o problema, aqui, se resume na questão de se viabilizar um suposto direito sucessório àquele que, no momento da abertura da sucessão, não era sequer concebido.
Ora, bem se sabe que o material genético pode ser mantido congelado por décadas, nas clínicas de reprodução assistida — aliás, exemplo notável de aplicação da biotecnologia — e ser implantado (depois da inseminação) após a morte do pai. Esta possibilidade parece admitida pelo inciso III do art. 1597 do Código Civil, mas seguramente envolve direito da personalidade do pai, doador do sêmen. O caput do dispositivo opera uma presunção de paternidade que, no entanto, deve ser analisada com cuidado, em casos assim, uma vez que não se pode presumir que alguém quisesse ser pai depois de sua morte, salvo se houvesse manifestação clara da vontade neste sentido, isto é, em prol da fertilização tardia. O inciso III não faz esta ressalva, mas o cuidado já foi bem analisado na I Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários, por meio do Enunciado nº 106 que expressou: para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com material genético do marido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatória, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após a sua morte.
Então, supondo que tenha havido a autorização e que os demais requisitos tenham sido observados, admitindo-se, assim, a inseminação post mortem, operar-se-á o vinculo parental de filiação, com todas as conseqüências daí resultantes, conforme a regra basilar da Constituição Federal, pelo seu art. 226, § 6º, incluindo os direitos sucessórios relativamente à herança do pai falecido.
Caros amigos, neste Congresso.
Ao lado destas questões sucessórias aqui apontadas e relacionadas às inovações biotecnológicas, muitas outras questões poderiam ser levantadas, pois que o cardápio delas é muito grande, controvertido e delicado. São questões que o direito deve enfrentar, sem dúvida, e que o fará melhor se houver a disponibilidade para os cruzamentos interdisciplinares, pontuando as eventuais soluções sucessórias a partir da análise acurada do fenômeno biotecnológico inovador, à luz dos demais saberes e das demais ciências, sempre sob o indispensável enfoque constitucional, matizado pelos valores supremos da ordem jurídica, como os ideais de dignidade, de igualdade, de segurança e de justiça.
Se assim for, os receios e as angustias inicialmente apontados nesta minha exposição certamente cederão espaço para as expectativas de um futuro mais promissor. Basta estarmos atentos e preocupados com a pessoa humana, antes de qualquer outra coisa.
Obrigada.
* Palestra proferida no I Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro "Interpretação do Direito Civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional", sob a coordenação científica do Professor Gustavo Tepedino (UERJ), em 23 de setembro de 2006. Esta palestra está especialmente dedicada à Professora Silmara Juny de Abreu Chinelato, Professora Associada do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP, com o meu público reconhecimento acerca de seu valioso e inegável pioneirismo de pesquisa na área biotecnológica associada ao direito, entre nós.
1.Cf. Dicionário Houaiss, verbete "biotecnologia".
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka é diretora do IBDFAM - Região Sudeste professora, Doutora e livre-docente pela USP |
retirado do site do IBDFAM
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