segunda-feira, 21 de junho de 2010

Sentença - Antecipação terapêutica de parto. Feto anencéfalo. Gravidez de risco. Procedência do pedido Tribunal Julgador: TJMG

Antecipação terapêutica de parto - Feto anencéfalo - Gravidez de risco - Procedência do pedido       
AUTORIZAÇÃO PARA ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DE PARTO

Requerente: V.S.R.B.S.

VISTOS, etc.


V. S. R. B. S., qualificada nos autos, requer autorização judicial para a interrupção da gestação de feto anencéfalo, de alto risco, com "Doença Hipertensiva Específica da Gestação", com picos hipertensivos superiores a 140/100 mmHg, já no início da gravidez, comprovada por exame Holter, edema, histórico de pré-eclampsia em gestação anterior e outros sintomas.

Sustenta a Requerente que conforme o relatório médico incluso na f. 20, tratando-se de gestação de feto anencéfalo, assomam outras complicações durante a gravidez, às quais a gestante está sujeita como: prolongamento da gestação além de 40 semanas; associação com polihidrâmnio, com desconforto respiratório, estase venosa, edema de membros inferiores; associação com vasculopatia periférica de estase; alterações comportamentais e psicológicas; dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de anencéfalos de termo (parto entre 38 e 42 semanas de gestação, tempo considerado normal); necessidade de bloqueio da lactação; puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratilidade uterina, que é a segunda causa de morte materna no Brasil e maior risco de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstétricas do parto de termo.

 Aduz, também, que conforme o relatório sobredito, firmado pela Dra. Valéria Cristina A. Ferrer, CRM-MG 39.389, médica ginecologista e obstetra que lhe acompanha, além dos riscos citados, a Requerente sofre com o enorme desgaste emocional, vivido em razão da dita anomalia, o que atinge o seu bem estar físico, mental e psicológico, afetando assim a sua saúde, a qual termina o seu relato com a indicação da interrupção terapêutica da gestação, que traduz o desejo tanto da requerente como também de seu esposo, após exaustiva explicação do caso e pesquisa sobre o assunto e seus riscos.

Com a inicial juntou-se farta prova documental consistente no relatório precitado, incluso na f. 20, quatro exames ultrassonográficos, realizados por diferentes médicos obstetras (fls. 59/62), todos com diagnóstico de anencefalia fetal, exames laboratoriais, declaração do marido da Requerente anuindo à interrupção terapêutica da gravidez pretendida por essa (f. 19), documentos médicos da gestação anterior e outros.

O Ministério Público manifestou-se em substancioso parecer, incluso nas fls. 64/79, opinando pelo deferimento do pedido para que seja autorizada a antecipação terapêutica do parto solicitado, a ser feita por médico competente.


É a síntese do necessário.

FUNDAMENTAÇÃO

Trata a espécie de procedimento de jurisdição voluntária visando a obtenção de alvará judicial autorizando a interrupção de gravidez inviável de feto anencéfalo, com alto risco de vida para a Requerente e danos irreparáveis à sua saúde emocional, mental e psicológica.

A Requerente submeteu-se a quatro exames de ultrassonografia sendo o primeiro realizado em 09/03/2010 na Clínica São Judas Tadeu, em Ipatinga, estando aquela com 14 semanas de gravidez, no qual a Dra. Sandra Mara S. Pimenta constatou o seguinte: "ausência de calota craniana com estroma angiomatoso cefalicamente à base do crânio, indicativo de anencefalia" (f. 59).

Em 10/03/2010, a Requerente submeteu-se a outro exame na Clínica de Diagnóstico por Imagem, Ecolab, nesta cidade, estando com 14 semanas e um dia de gravidez, cujo resultado atestado pela Dra. Jussara Coelho Nogueira Morais revela a "ausência de calota craniana indicativa de anencefalia." (f. 60)

No dia 12/03/2010 novo exame foi realizado na Clínica São Judas Tadeu, estando a Requerente com 14 semanas e três dias de gravidez, tendo o Dr. Júlio César Faria Couto constatado: "observa-se ausência de calota craniana com exposição de matéria amorfa sobre a base do cérebro correspondendo ao encéfalo em degeneração, quadro compatível com anencefalia" (f. 61).

Por último, em 17/03/2010, a Requerente fez idêntico exame na Clínica Cid Ultrassom, também localizada em Ipatinga, tendo sido constatado pelo Dr. Emílio Gomes Fernandes, igualmente: "ausência de calota craniana sugerindo anencefalia" (f. 69).

 Juntou-se, também, na f. 20, circunstanciado relatório médico firmado pela Dra. Valéria Cristina A. Ferrer, já citada, datado de 19.03.2010, atestando que a Requerente está com quinze semanas de gestação, tendo realizado quatro exames ultrassonográficos "com diagnóstico de anencefalia fetal, má-formação irreversível, incurável e incompatível com a vida"... Ao final a referida médica "solicita junto à paciente autorização para a interrupção terapêutica da gestação, consignando ser esse o desejo da paciente e seu esposo, após exaustiva explicação do caso e pesquisa sobre o assunto e seus riscos".

A declaração da Dra. Valéria, médica ginecologista e obstetra, se embasa nos exames ultrassonográficos acima nomeados, diagnosticando anencefalia fetal na gestação em foco, ante a ausência de calota craniana irreversível, incurável e incompatível com a vida, ocasionando intenso sofrimento à Requerente, com o enorme desgaste emocional, vivido em razão da dita anomalia, o que atinge o seu bem estar físico, mental e psicológico, afetando assim a sua saúde.

Como se percebe, a situação trazida a lume é angustiante, diante da constatação técnica e médica de vida inviável, tratando-se de matéria altamente complexa, fundada, essencialmente, no princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1º, inc. III, da Constituição da República, no direito à preservação da autonomia da vontade, na liberdade, legalidade e no direito à saúde, tendo pertinência com os direitos humanos que asseguram à gestante a liberdade de prosseguir ou interromper a gravidez na hipótese de anencefalia fetal, com alto risco de vida para a mesma, como no caso em tela. 

Pelo que se infere da prova documental carreada aos autos, a gravidez da Requerente está acarretando várias complicações para a sua saúde, que já no início apresenta "picos de hipertensivos superiores a 140/100 mmHg", edema e outros sintomas, o que se agrava, também, pelo fato daquela ser obesa e ter histórico de pré-eclampsia na gestação anterior.

Urge consignar que perfilho o entendimento no sentido de que a interrupção terapêutica da gravidez de feto anencéfalo, com alto grau de risco de vida para a gestante, não se trata de aborto, já que nenhuma correlação tem com a figura delitiva tratada no Código Penal Brasileiro. Diferentemente da questão tratada nos autos - fundada em diagnóstico de anencefalia, onde a gestação é desejada, não sendo fácil e nem tampouco leviana a opção pela sua interrupção -, quando há a opção da mulher pela realização do aborto, objetiva-se extirpar algo que não é querido.

Neste cenário convém trazer à colação o posicionamento do constitucionalista Luís Roberto Barroso, subscritor da petição inicial da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54/04), proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS, Entidade que defende os direitos e interesses dos profissionais da saúde no país, que entende como legal a interrupção da gravidez em casos de fetos portadores de anencefalia.

O renomado publicista averba que a permanência do feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em razão do alto índice de óbitos intra-uterinos de fetos anencéfalos. Assim, a antecipação do parto nessa hipótese constitui indicação terapêutica médica, sendo exclusivamente a única possível e eficaz para o tratamento da gestante, já que para tal situação não há possibilidade de reversão.

O argumento para a apresentação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, em comento, destaca que princípios constitucionais fundamentais, como o direito à saúde, à dignidade e à liberdade, estavam sendo ameaçados por uma interpretação errônea de que a antecipação do parto em casos de anencefalia constituía crime de aborto, já que o Código Penal Brasileiro não autoriza expressamente este tipo de antecipação de parto.

Em 1º de julho de 2004, o Ministro Marco Aurélio Mello, acolhendo a tese esposada na referida ação, concedeu a liminar autorizando que mulheres grávidas de fetos portadores de anencefalia possam antecipar o parto, desobrigando os profissionais da saúde de obterem autorização judicial para realizar os procedimentos clínicos necessários, sustentando que "a interrupção terapêutica da gravidez do feto anencefálico não configura aborto, para o qual o pressuposto é que haja viabilidade de vida, o que não existe devido à ausência de cérebro."<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]-->

Releva assinalar que a decisão supracitada, gerou vultosos protestos, principalmente por parte da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), sendo aquela cassada pelo plenário do STF em 20 de outubro de 2004, restabelecendo-se a proibição anteriormente vigente no ordenamento jurídico penal acerca do aborto. Porém, o mérito da ADPF ainda não foi julgado, estando a aludida ação em curso no Supremo Tribunal Federal.

O Ministro asseverou em sua decisão que: "Diante de uma formação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar."<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]-->

Consoante a tese jurídica e ética defendida na ação sobredita, a antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia não se trata do crime de aborto previsto na lei penal. O aborto é considerado um crime contra a potencialidade da vida do feto, algo inexistente no anencéfalo. Não seria correto qualificar como crime de aborto a interrupção da gestação de um feto sem viabilidade de vida. Por isso emprega-se o termo antecipação terapêutica de parto para os procedimentos que apenas antecipam o parto do feto, sem possibilidade de sobrevida extra-uterina.

A ADPF em pauta se fundamenta nos princípios da dignidade, da liberdade e do direito à saúde, pontuando que as mulheres grávidas de fetos com anencefalia experimentam o luto antecipado por um filho que sequer viverá, ferindo a dignidade da pessoa humana exigir que a gestante experimente um sofrimento inútil e desproporcional em nome de uma gravidez de feto inviável.

Além disso, negar-lhe o acesso ao procedimento clínico para interromper a gravidez não possui base legal, sendo um constrangimento ilegal da autonomia da mulher, que viola o princípio da liberdade. O direito à saúde foi considerado em sentido amplo abrangendo o bem-estar psíquico, afetivo, físico e espiritual da gestante.

A interrupção da gravidez no caso de feto com anencefalia, cabalmente comprovada, estando a gestante correndo sério risco, como no caso em exame, é uma necessidade. Não há o que se fazer para tornar viável a vida do feto, portanto, a antecipação do parto deve ser entendida como um procedimento terapêutico para resguardar e proteger a dignidade e a integridade física e mental da mulher.

Por outro lado, impende assinalar que o aborto é autorizado em casos de risco de vida para a mulher e em casos de gravidez resultante de estupro. Estes dois permissivos legais foram previstos pelo Código Penal elaborado no século passado, na década de 40, ou seja, em uma época em que o desenvolvimento da medicina não possibilitava a realização do diagnóstico pré-natal com a segurança de hoje.

 Ora, não se poderia exigir que o legislador do início do século fosse capaz de prever o avanço da medicina e das técnicas de diagnóstico por imagem, capazes de diagnosticarem a anencefalia, má-formação fetal cujos efeitos são inafastáveis, sendo absolutamente inviável e desumano o prolongamento da gestação.

Para se promover a verdadeira justiça é de fundamental importância realizar a adaptação do ordenamento jurídico às técnicas medicinais advindas com a evolução do tempo, mesmo porque o direito não é algo estático, inerte, mas sim uma ciência dinâmica, que deve se adequar à realidade.


É importante consignar que a gravidez de um feto anencéfalo é considerada uma tortura por infligir à gestante incomensuráveis sofrimentos físicos e mentais, a qual não pode ser forçada a manter a gestação até o final, arriscando a sua própria vida, sabendo que o resultado morte do filho que carrega no ventre é imutável.

Sendo assim, o impedimento da interrupção da gravidez de feto anencéfalo também é equiparado à tortura, que se configura sempre que há violação, intencional, do direito de uma pessoa, causando-lhe dores ou sofrimento agudo, físico ou psicológico, consubstanciado no impedimento de todos os mecanismos legais para fazer uso de sua vontade visando à preservação da própria vida.

A manifestação favorável do Estado-Juiz para a realização do procedimento médico pretendido no caso vertente, traduz, acima de tudo, o respeito à dignidade humana, pois a submissão da Requerente, com gestação de feto anencéfalo, importa, como já se frisou iterativas vezes, em violação do princípio sobredito, além de lhe impor o penoso sofrimento pelo dilema entre encomendar um caixão para o filho que carrega no ventre ou um berço acolhedor.

É preciso consignar que o posicionamento aqui defendido visa resguardar o direito à vida e, mais do que isto, o direito a uma vida digna, com esteio nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade que fazem com que se opte por não fazer a mãe correr riscos para preservar um ser que não tem cérebro, abreviando, portanto, o sofrimento cruel e desumano de uma gestante de feto cujo resultado morte é imutável.


Por outro lado, o enfrentamento de tão grave questão referente aos direitos fundamentais da gestante, previstos na Constituição da República, não podem estar condicionados à edição de lei ordinária, eis que aqueles gozam de aplicabilidade imediata, nos termos do art. 5º, § 1º da Lei Maior.

Urge sublinhar, também, que a argumentação no sentido de que a antecipação terapêutica do parto do anencéfalo configuraria a prática nazista da eugenia (destinada a eliminar seres tidos como inferiores, todos titulares de direitos) não se sustenta, na medida em que os valores postos em relevo na antecipação do parto em apreço cingem-se à vida e ao respeito à dignidade da gestante, que não pode ser submetida ao calvário de uma gravidez inviável.


 O direito à vida, assegurado pelo artigo 5º da Constituição da República, não é absoluto. Tanto é verdade que o próprio ordenamento prevê expressamente exceções a ele em outras hipóteses, como ocorre naquelas elencadas no art. 128 do Código Penal, consistentes na existência de perigo de vida para a gestante ou feto concebido mediante estupro ou atentado violento ao pudor.

Como se nota, há previsão expressa no antigo Código Penal para a preservação de outros bens jurídicos em detrimento do direito à vida. Neste cenário, não se pode compreender por qual razão se deveria inviabilizar a interrupção do parto no caso do feto anencefálico se, da mesma maneira, há risco para a vida da gestante, com patente violação da sua integridade física e psíquica, e, ainda, inexiste possibilidade de vida extra-uterina, ao contrário das hipóteses previstas na lei penal.

Em caso análogo, o Min. Arnaldo Esteves Lima, no julgamento do HC 56572/SP, publicado no DJ de 15.05.2006, salientou o seguinte:

Portanto, nesse momento, parece-me difícil discordar de quem defende que a razão pela qual o Código Penal não autorizou o aborto nos casos de anomalia fetal incompatível com a vida extra-uterina decorre apenas do fato de que, à época de sua elaboração e edição (1940), a ciência médica ainda não dispunha de instrumentos capazes de, antecipadamente, durante a gestação, oferecer diagnósticos seguros sobre a existência de anomalias fetais severas, que inviabilizam a vida após o parto, como no caso em exame.

Portanto, diante de uma gestação de feto portador de anomalia incompatível com a vida extra-uterina, como no caso dos autos, a indução antecipada do parto não atinge o bem juridicamente tutelado, uma vez que a morte desse feto é inevitável, em decorrência da própria patologia.

 Em proposição idêntica, o insigne penalista Nélson Hungria, averbou em lapidar lição:


O feto expulso (para que se caracterize o aborto) deve ser um produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há [como] falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto. Não está em jogo, a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que as conseqüências dos atos praticados se resolvem unicamente contra a mulher.

 Sob outro ângulo, Guilherme de Souza Nucci em escólios ao Código Penal averba:

Assim, baseando-se no fato de que algumas gestantes, descobrindo tal fato, não se conformam com a gestação de um ser completamente inviável, abrevia-se o sofrimento e autoriza-se o aborto. O juiz invoca, por vezes, a tese de inexigibilidade de conduta diversa (causa supra legal de exclusão de culpabilidade), por vezes a própria interpretação da norma penal que protege a "vida humana" e não a falsa existência, pois o feto só está "vivo" por conta do organismo materno que o sustenta. A tese da inexigibilidade, nesse caso, teria dois enfoques: o da gestante, não suportando carregar no ventre uma criança de vida inviável; o do médico, julgando salvar a genitora de forte abalo psicológico que vem sofrendo. A medicina, por ter meios, atualmente, de detectar tais anomalias gravíssimas, propicia ao juiz uma avaliação antes impossível. Até esse ponto, cremos ser razoável a invocação da tese de ser inexigível a mulher carregar por meses um ser que logo ao nascer, perecerá (...)

Se os médicos atestarem que o feto é verdadeiramente inviável, vale dizer, é anencéfalo (falta-lhe cérebro), por exemplo, não se cuida de 'vida própria', mas de um ser que sobrevive à custa do organismo materno, uma vez que a própria lei considera cessada a vida tão logo ocorra a morte encefálica".

Pela relevância dos argumentos acerca da questão em pauta, deve-se, ainda, trazer à baila excertos do pronunciamento do Ministro Joaquim Barbosa, relator do HC 84.025-6/RJ:

 Em se tratando de feto com vida extra-uterina inviável, a questão que se coloca é: não há possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento que se interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê. A antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia ser considerada crime? Entendo que não, Sr. Presidente. Isso porque, ao proceder à ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extra-uterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal.

Nesse sentido, também, se colaciona a jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:


AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. GRAVIDEZ. INTERRUPÇÃO. MÁ FORMAÇÃO DO FETO. CONSTATAÇÃO TÉCNICA E MÉDICA DE VIDA INVIÁVEL. APELO DA MÃE A QUE SE DÁ PROVIMENTO.


O fato da ausência de previsão autorizativa para o aborto no art. 128 do CP não impede que o Judiciário analise o caso concreto e o resolva à luz do bom senso e da dignidade humana, preocupando-se com a saúde da própria mãe. Havendo constatação médica de inviabilidade de vida pós-parto, dada a ausência de calota craniana no feto - anencefalia - o Judiciário deve autorizar a interrupção da gravidez até como medida de prevenção profilática à genetriz.


PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ. FETO QUE APRESENTA ANENCEFALIA. DOCUMENTOS MÉDICOS COMPROBATÓRIOS. IMPOSSIBILIDADE DE SOBREVIVÊNCIA EXTRA-UTERINA Nos dias atuais, com os avanços tecnológicos aplicados, especialmente, às áreas médica, radiológica, biológica e genética, pode-se detectar toda a situação do feto, como no caso dos autos, em que se constatou a ocorrência de má-formação fetal, consistente em defeito de fechamento do tubo neural proximal, com conseqüente ausência de formação da calota craniana e atrofia da massa encefálica. Nesse sentido, considero viável e oportuna uma interpretação extensiva do disposto no art. 128, I, da Lei Penal, admitindo o aborto em decorrência de má formação congênita do feto (anencefalia), evitando-se, dessa forma, a amargura e o sofrimento físico e psicológico, considerando que os pais já sabem que o filho não tem qualquer possibilidade de vida 'extra-uterina'. Deve ser afastado o entendimento de que o cumprimento da decisão de antecipação do parto está sujeito a avaliação que o médico vier a fazer. V.v.: Expedindo-se o pretendido alvará, os médicos assistentes da requerente é que verificarão a conveniência e a oportunidade da operação.

Como se divisa, na doutrina e jurisprudência trazidos à lume, sobressai em situações angustiantes como a que se descortina nos autos a necessidade de impingir efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento maior da República Federativa do Brasil, do qual emanam todos os demais postulados consagrados na Carta Política.


Finalmente, impende gizar que é preciso compreender a dignidade humana em seus múltiplos aspectos, de forma a garantir um mínimo de direitos fundamentais capazes de proporcionar uma vida com dignidade. Sendo assim, devem os operadores do direito orientar-se no sentido da concretização do princípio em comento, referência ética que tem absoluta prioridade.  

DISPOSITIVO


ANTE O EXPOSTO e tudo o mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO autorizando a interrupção terapêutica da gestação da Requerente, a ser realizada por médico(s) habilitado(s) para tal desiderato, em Hospital  indicado pela mesma.


Expeça-se o alvará para os fins consignados.


P.R.I.


Ipatinga, 06 de abril de 2010.



MARIA APARECIDA DE O. GROSSI ANDRADE

Juíza de Direito

retirado do site do IBDFAM

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