Por vezes, as opiniões de Ruth Macklin*, PhD em Filosofia e professora de
Bioética do Albert Einstein College of Medicine, Nova Iorque, causam
polêmica. Uma das mais recentes foi a esboçada durante o X Congresso
Brasileiro de Bioética, realizado em setembro, em Florianópolis, SC, quando
afirmou que a Declaração de Helsinque –respeitado conjunto de princípios éticos
que regem a pesquisa com seres humanos, da Associação Médica Mundial (sigla em
inglês, WMA)– é “pouco importante para os EUA”.
Outro exemplo: há pouco mais de dez anos, ao conceder entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp declarou-se “absolutamente contrária” à prática do duplo standard –quando diferentes padrões de pesquisa são oferecidos aos voluntários, dependendo do país em que o estudo ocorre. Em nova entrevista ao mesmo veículo, a opinião da professora parece ter se flexibilizado: segundo ela, tais estudos trazem benefícios a “nações sem saúde, sem estrutura, sem nada”.
Mas não há comparações ao nível de controvérsia devido ao editorial Dignity is a Useless Concept, em tradução livre, “Dignidade é um Conceito Inútil”, publicado no British Medical Journal, que se juntou às mais de 130 publicações em revistas científicas e livros de sua autoria. “Todos ficaram furiosos comigo, mas a maioria confundiu o que eu disse”, explica, gentil, nessa nova conversa exclusiva.
Veja, a seguir, o que a professora quis dizer a respeito desse e de outros assuntos.
Por Concília Ortona**
Centro de Bioética – Em 2003 a senhora escreveu para o BMJ o editorial “Dignidade é um conceito inútil”, dizendo, inclusive, que “poderia ser eliminado da discussão ética, sem qualquer perda de conteúdo”. Tal opinião deixou colegas bem contrariados. Seu raciocínio foi confundido?
Ruth Macklin – Sei que as pessoas ficaram muito bravas comigo! Na verdade, revoltadas, furiosas: artigos e livros foram escritos em vários países, com o único intuito de brigar comigo.
Mas é claro que não entenderam o que eu disse, que foi: até agora, ninguém conseguiu explicar de forma adequada o conceito de “dignidade”. A palavra é usada como slogan, assunto para levar à frente uma conversa, ou simplesmente como um termo.
Muitos ficam repetindo que determinada conduta “é contra a dignidade”, só que, no final das contas, ninguém define qual é o significado.
Cbio – Mas não acontece como naquela velha história de “não sei explicar o que é pornografia, porém reconheço, quando vejo uma”?
Macklin – Há outras formas de criticar algo, em vez de ficar invocando certo conceito, o qual ninguém nunca explicou.
Vejamos: qual é o prejuízo da pornografia?
Pode-se dizer, por exemplo, que é algo que degrada a mulher, colocando-a como se fosse um objeto a ser usado de forma sexual. Ou que trata pessoas como se fossem animais.
Então, analisando-se o conteúdo da situação relacionada ao termo, é perfeitamente explicável e inteligível considerar a pornografia como degradação.
O mesmo não acontece com “dignidade”. Por exemplo, quando o indivíduo está em um hospital e se vê obrigado a vestir aquelas camisolas abertas nas costas, permitindo a exposição de partes do corpo de sua intimidade, não está perdendo a dignidade, como se argumenta. Na verdade, está se falando de privacidade.
Por outro lado, quando um preceptor chega perto de um leito com um bando de alunos e resolve discutir o caso e examinar o paciente, sem se apresentar ou pedir sua permissão, alguns vão afirmar que está sendo negada a dignidade do doente.
Eu poderia explicar de outro modo: “o paciente têm o direito de saber quem está entrando no seu quarto, continua com seu senso de privacidade”. Ou partir para o argumento: “um comportamento grosseiro é um mau comportamento. O grupo não demonstrou respeito pela autonomia daquele indivíduo”.
Vamos mais longe. Dizem que a clonagem de seres humanos é contrária à dignidade da espécie humana. Realmente não entendo o que querem dizer com isso. Se considerarmos errado clonar seres humanos, precisamos explicar o porquê do erro, quais são os prejuízos, quem será prejudicado, e que direitos serão violados.
Por que precisamos de “dignidade”, quando temos à disposição tantos conceitos tão ricos em conteúdo?
Cbio – Então a senhora não discorda do sentido que se atribui ao termo, e sim, do termo em si?
Macklin – Discordo da aplicação costumeira que se faz do conceito de dignidade. Em Ética e Bioética, há explicações que funcionam perfeitamente bem. Ao escrevermos podemos seguir, por exemplo, a linguagem dos direitos, como autonomia, liberdade, confidencialidade, o direito de tomar as próprias decisões etc. Então porque usamos a dignidade?
Outra forma de lidar com a questão se refere às conseqüências, aos eventuais danos. Tipo, se alguém fizer determinada coisa, outros sairão prejudicados, ou insultados, ou ofendidos. Onde a dignidade entra em qualquer uma dessas afirmações?
Quando as pessoas me criticaram, não perceberam que eu estava fazendo os mesmos julgamentos morais que elas. Não era uma negação da moralidade; da ética; de que devemos cuidar e tratar dos mais vulneráveis. Explicando: me contraponho exatamente ao mesmo tipo de condutas questionadas pela maioria, concordo com os prejuízos que podem causar, só acho que a palavra não faz sentido, pois ninguém conseguiu defini-la.
Cbio – Outro ponto controverso foi mencionado aqui no Congresso pelo professor Volnei Garrafa (UnB), que participou ao seu lado da mesa redonda Revisão da Declaração de Helsinque: Interesses e Tendências. A Declaração não é mesmo importante para os EUA?
Macklin – Preciso clarificar o comentário que motivou o que Garrafa disse. Para ele, a Declaração de Helsinque é considerada importante nos EUA, mas costuma ser rejeitada. O que eu expliquei é que, na verdade, tal diretriz não é importante por lá, porque os norte-americanos têm seu próprio código, no que tange às regulamentações em pesquisas.
Mesmo sabendo que Helsinque é reconhecida ao redor do mundo, isso não acontece por pesquisadores e comitês de ética dos EUA, que optam por seguir uma norma “mais adequada” ao país. (N.da.r: a professora se refere às Diretrizes de Boas Práticas Clínicas, ou Good Clinical Practices – GCP, criticadas internacionalmente por não serem transparentes e por tratarem principalmente de assuntos sobre procedimentos, e não de aspectos éticos).
A Food and Drugs Administration (FDA, agência americana responsável pela liberação de novos fármacos e alimentos) costuma usar a Declaração de Helsinque para guiar estudos internacionais, feitos por grupos pequenos. Mas, na maioria dos casos, abandonou-a, por discordar da proibição do uso de placebo em certas pesquisas com seres humanos.
Veja, meu ponto de vista sobre o fato de o meu país não prestar atenção à Helsinque não é inconsistente com o que o professor Garrafa defende: também penso que os EUA deveriam, sim, ater-se a tal norma –mas isso não ocorre.
Cbio – A senhora é contrária ou favorável ao uso do placebo em pesquisa?
Macklin – Concordo com as previsões da Declaração de Helsinque quanto ao tema, que permitem o uso do placebo apenas em circunstâncias bastante limitadas. Outras hipóteses foram derrubadas na versão de 2008 da diretriz.
Em primeiro lugar é preciso haver uma forte razão científica para o uso. Além disso, o estudo não pode expor os sujeitos de pesquisa a qualquer dano grave ou irreversível. (N. da r: neste sentido, o texto original ressalta: “extremo cuidado deve ser tomado para evitar o abuso desta opção”).
Placebo pode ser usado, por exemplo, perante “condições menores”, como gripe, nariz tapado, calvície e coisas do gênero. Não teria cabimento empregá-lo em situações que demandem de todo cuidado e para as quais existem tratamentos reconhecidos, como Aids, hipertensão ou diabetes.
Só é ok usá-lo se não existir nenhum outro tratamento comprovado. Caso contrário é antiético, porque esta sendo negado ao sujeito de pesquisa algo que poderia efetivamente ajudá-lo a melhorar a sua condição.
Cbio – Em palestra realizada aqui no Congresso o professor e bioeticista chileno Miguel Kottow defendeu: “nunca ao placebo”. É errado?
Macklin – Tal sugestão é forte demais e desnecessária.
Tendo a discordar do uso do placebo na maior parte dos casos. Só que, além dos “males menores” mencionados, há situações bem restritas, para as quais o estudo é dificultado ou inviabilizado, sem o uso desse recurso.
Em outras palavras é válido se, em doenças graves e sem cura, for a única forma de saber se há possibilidades maiores de benefícios do que danos e riscos de poucos efeitos colaterais. Ou seja, a própria doença consegue justificar a metodologia da pesquisa que adota o placebo.
Por exemplo, condições como a doença de Parkinson ou a esclerose múltipla não têm cura e são “flutuantes”, isto é, os sintomas vêm e vão, de maneira cíclica ficam mais fortes e mais fracos. A menos que usemos placebo, não saberemos se é a medicação que está funcionando ou se é a doença que está na fase leve.
Cbio – Em 2002, a senhora afirmou ser “totalmente contrária” a estudos de duplo standard, garantindo, inclusive, que “todas as vezes que alguém discordar, seja quem for, ficarei ao seu lado”. Mas nesta edição do Congresso, em sua conferência Double Standards in Medical Research in Developing Countries, disse que “não são necessariamente injustos ou ruins”. O que mudou?
Macklin – Em literatura, há quem defenda que duplo standard é sempre aceitável em contextos em que as pessoas não têm dinheiro. Minha objeção é que ser pobre, por si só, não pode ser razão para não oferecer à pessoa um padrão melhor.
Porém é diferente das pesquisas que ajudariam de alguma forma os voluntários, mas que ficariam inviabilizadas em locais tão carentes, que não contam sequer com estrutura, remédios e hospitais para realizá-las. Promovê-las, então, ainda que em duplo standard, é melhor do que deixar as pessoas sem nada.
O estudo é ruim e antiético se houver duplo standard em um local em que existir e for disponível um padrão melhor todos os participantes.
Cbio – Tais dificuldades estruturais, em saúde pública e etc correspondem a enormes dificultadoras à realização de certos estudos. Não seria mais fácil, então, fazê-los no país de origem das instituições e pesquisadores?
Macklin – O caso é que algumas condições específicas e doenças ocorrem apenas em lugares pobres. A pesquisa deve ser feita, então, naquela realidade, sob o risco de não garantir que os resultados sejam os mesmos.
Os desenhos dos estudos verificam, inclusive, o comportamento das drogas, em relação aos diferentes grupos expostos; à severidade das doenças; e aos benefícios e danos da substância, em certos países. Algumas vacinas funcionarem melhor em crianças de uma região do que de outra!
Não sou médica, mas eu sei que há variações a serem consideradas.
* Ruth Macklin tem mais de 130 publicações científicas e livros sobre a Aids, reprodução humana, ética do uso de seres humanos em pesquisa e políticas de saúde. Também é conselheira da Organização Mundial de Saúde (OMS), e presidente do Comitê de Revisão Ética da UNAIDS e vice-Presidente da Associação Internacional de Bioética.
** Jornalista do Centro de Bioética. Especialista em Bioética e Mestre em Saúde Pública (USP)
site do bioética do CREMESP
Outro exemplo: há pouco mais de dez anos, ao conceder entrevista exclusiva ao site do Centro de Bioética do Cremesp declarou-se “absolutamente contrária” à prática do duplo standard –quando diferentes padrões de pesquisa são oferecidos aos voluntários, dependendo do país em que o estudo ocorre. Em nova entrevista ao mesmo veículo, a opinião da professora parece ter se flexibilizado: segundo ela, tais estudos trazem benefícios a “nações sem saúde, sem estrutura, sem nada”.
Mas não há comparações ao nível de controvérsia devido ao editorial Dignity is a Useless Concept, em tradução livre, “Dignidade é um Conceito Inútil”, publicado no British Medical Journal, que se juntou às mais de 130 publicações em revistas científicas e livros de sua autoria. “Todos ficaram furiosos comigo, mas a maioria confundiu o que eu disse”, explica, gentil, nessa nova conversa exclusiva.
Veja, a seguir, o que a professora quis dizer a respeito desse e de outros assuntos.
Por Concília Ortona**
Centro de Bioética – Em 2003 a senhora escreveu para o BMJ o editorial “Dignidade é um conceito inútil”, dizendo, inclusive, que “poderia ser eliminado da discussão ética, sem qualquer perda de conteúdo”. Tal opinião deixou colegas bem contrariados. Seu raciocínio foi confundido?
Ruth Macklin – Sei que as pessoas ficaram muito bravas comigo! Na verdade, revoltadas, furiosas: artigos e livros foram escritos em vários países, com o único intuito de brigar comigo.
Mas é claro que não entenderam o que eu disse, que foi: até agora, ninguém conseguiu explicar de forma adequada o conceito de “dignidade”. A palavra é usada como slogan, assunto para levar à frente uma conversa, ou simplesmente como um termo.
Muitos ficam repetindo que determinada conduta “é contra a dignidade”, só que, no final das contas, ninguém define qual é o significado.
Cbio – Mas não acontece como naquela velha história de “não sei explicar o que é pornografia, porém reconheço, quando vejo uma”?
Macklin – Há outras formas de criticar algo, em vez de ficar invocando certo conceito, o qual ninguém nunca explicou.
Vejamos: qual é o prejuízo da pornografia?
Pode-se dizer, por exemplo, que é algo que degrada a mulher, colocando-a como se fosse um objeto a ser usado de forma sexual. Ou que trata pessoas como se fossem animais.
Então, analisando-se o conteúdo da situação relacionada ao termo, é perfeitamente explicável e inteligível considerar a pornografia como degradação.
O mesmo não acontece com “dignidade”. Por exemplo, quando o indivíduo está em um hospital e se vê obrigado a vestir aquelas camisolas abertas nas costas, permitindo a exposição de partes do corpo de sua intimidade, não está perdendo a dignidade, como se argumenta. Na verdade, está se falando de privacidade.
Por outro lado, quando um preceptor chega perto de um leito com um bando de alunos e resolve discutir o caso e examinar o paciente, sem se apresentar ou pedir sua permissão, alguns vão afirmar que está sendo negada a dignidade do doente.
Eu poderia explicar de outro modo: “o paciente têm o direito de saber quem está entrando no seu quarto, continua com seu senso de privacidade”. Ou partir para o argumento: “um comportamento grosseiro é um mau comportamento. O grupo não demonstrou respeito pela autonomia daquele indivíduo”.
Vamos mais longe. Dizem que a clonagem de seres humanos é contrária à dignidade da espécie humana. Realmente não entendo o que querem dizer com isso. Se considerarmos errado clonar seres humanos, precisamos explicar o porquê do erro, quais são os prejuízos, quem será prejudicado, e que direitos serão violados.
Por que precisamos de “dignidade”, quando temos à disposição tantos conceitos tão ricos em conteúdo?
Cbio – Então a senhora não discorda do sentido que se atribui ao termo, e sim, do termo em si?
Macklin – Discordo da aplicação costumeira que se faz do conceito de dignidade. Em Ética e Bioética, há explicações que funcionam perfeitamente bem. Ao escrevermos podemos seguir, por exemplo, a linguagem dos direitos, como autonomia, liberdade, confidencialidade, o direito de tomar as próprias decisões etc. Então porque usamos a dignidade?
Outra forma de lidar com a questão se refere às conseqüências, aos eventuais danos. Tipo, se alguém fizer determinada coisa, outros sairão prejudicados, ou insultados, ou ofendidos. Onde a dignidade entra em qualquer uma dessas afirmações?
Quando as pessoas me criticaram, não perceberam que eu estava fazendo os mesmos julgamentos morais que elas. Não era uma negação da moralidade; da ética; de que devemos cuidar e tratar dos mais vulneráveis. Explicando: me contraponho exatamente ao mesmo tipo de condutas questionadas pela maioria, concordo com os prejuízos que podem causar, só acho que a palavra não faz sentido, pois ninguém conseguiu defini-la.
Cbio – Outro ponto controverso foi mencionado aqui no Congresso pelo professor Volnei Garrafa (UnB), que participou ao seu lado da mesa redonda Revisão da Declaração de Helsinque: Interesses e Tendências. A Declaração não é mesmo importante para os EUA?
Macklin – Preciso clarificar o comentário que motivou o que Garrafa disse. Para ele, a Declaração de Helsinque é considerada importante nos EUA, mas costuma ser rejeitada. O que eu expliquei é que, na verdade, tal diretriz não é importante por lá, porque os norte-americanos têm seu próprio código, no que tange às regulamentações em pesquisas.
Mesmo sabendo que Helsinque é reconhecida ao redor do mundo, isso não acontece por pesquisadores e comitês de ética dos EUA, que optam por seguir uma norma “mais adequada” ao país. (N.da.r: a professora se refere às Diretrizes de Boas Práticas Clínicas, ou Good Clinical Practices – GCP, criticadas internacionalmente por não serem transparentes e por tratarem principalmente de assuntos sobre procedimentos, e não de aspectos éticos).
A Food and Drugs Administration (FDA, agência americana responsável pela liberação de novos fármacos e alimentos) costuma usar a Declaração de Helsinque para guiar estudos internacionais, feitos por grupos pequenos. Mas, na maioria dos casos, abandonou-a, por discordar da proibição do uso de placebo em certas pesquisas com seres humanos.
Veja, meu ponto de vista sobre o fato de o meu país não prestar atenção à Helsinque não é inconsistente com o que o professor Garrafa defende: também penso que os EUA deveriam, sim, ater-se a tal norma –mas isso não ocorre.
Cbio – A senhora é contrária ou favorável ao uso do placebo em pesquisa?
Macklin – Concordo com as previsões da Declaração de Helsinque quanto ao tema, que permitem o uso do placebo apenas em circunstâncias bastante limitadas. Outras hipóteses foram derrubadas na versão de 2008 da diretriz.
Em primeiro lugar é preciso haver uma forte razão científica para o uso. Além disso, o estudo não pode expor os sujeitos de pesquisa a qualquer dano grave ou irreversível. (N. da r: neste sentido, o texto original ressalta: “extremo cuidado deve ser tomado para evitar o abuso desta opção”).
Placebo pode ser usado, por exemplo, perante “condições menores”, como gripe, nariz tapado, calvície e coisas do gênero. Não teria cabimento empregá-lo em situações que demandem de todo cuidado e para as quais existem tratamentos reconhecidos, como Aids, hipertensão ou diabetes.
Só é ok usá-lo se não existir nenhum outro tratamento comprovado. Caso contrário é antiético, porque esta sendo negado ao sujeito de pesquisa algo que poderia efetivamente ajudá-lo a melhorar a sua condição.
Cbio – Em palestra realizada aqui no Congresso o professor e bioeticista chileno Miguel Kottow defendeu: “nunca ao placebo”. É errado?
Macklin – Tal sugestão é forte demais e desnecessária.
Tendo a discordar do uso do placebo na maior parte dos casos. Só que, além dos “males menores” mencionados, há situações bem restritas, para as quais o estudo é dificultado ou inviabilizado, sem o uso desse recurso.
Em outras palavras é válido se, em doenças graves e sem cura, for a única forma de saber se há possibilidades maiores de benefícios do que danos e riscos de poucos efeitos colaterais. Ou seja, a própria doença consegue justificar a metodologia da pesquisa que adota o placebo.
Por exemplo, condições como a doença de Parkinson ou a esclerose múltipla não têm cura e são “flutuantes”, isto é, os sintomas vêm e vão, de maneira cíclica ficam mais fortes e mais fracos. A menos que usemos placebo, não saberemos se é a medicação que está funcionando ou se é a doença que está na fase leve.
Cbio – Em 2002, a senhora afirmou ser “totalmente contrária” a estudos de duplo standard, garantindo, inclusive, que “todas as vezes que alguém discordar, seja quem for, ficarei ao seu lado”. Mas nesta edição do Congresso, em sua conferência Double Standards in Medical Research in Developing Countries, disse que “não são necessariamente injustos ou ruins”. O que mudou?
Macklin – Em literatura, há quem defenda que duplo standard é sempre aceitável em contextos em que as pessoas não têm dinheiro. Minha objeção é que ser pobre, por si só, não pode ser razão para não oferecer à pessoa um padrão melhor.
Porém é diferente das pesquisas que ajudariam de alguma forma os voluntários, mas que ficariam inviabilizadas em locais tão carentes, que não contam sequer com estrutura, remédios e hospitais para realizá-las. Promovê-las, então, ainda que em duplo standard, é melhor do que deixar as pessoas sem nada.
O estudo é ruim e antiético se houver duplo standard em um local em que existir e for disponível um padrão melhor todos os participantes.
Cbio – Tais dificuldades estruturais, em saúde pública e etc correspondem a enormes dificultadoras à realização de certos estudos. Não seria mais fácil, então, fazê-los no país de origem das instituições e pesquisadores?
Macklin – O caso é que algumas condições específicas e doenças ocorrem apenas em lugares pobres. A pesquisa deve ser feita, então, naquela realidade, sob o risco de não garantir que os resultados sejam os mesmos.
Os desenhos dos estudos verificam, inclusive, o comportamento das drogas, em relação aos diferentes grupos expostos; à severidade das doenças; e aos benefícios e danos da substância, em certos países. Algumas vacinas funcionarem melhor em crianças de uma região do que de outra!
Não sou médica, mas eu sei que há variações a serem consideradas.
* Ruth Macklin tem mais de 130 publicações científicas e livros sobre a Aids, reprodução humana, ética do uso de seres humanos em pesquisa e políticas de saúde. Também é conselheira da Organização Mundial de Saúde (OMS), e presidente do Comitê de Revisão Ética da UNAIDS e vice-Presidente da Associação Internacional de Bioética.
** Jornalista do Centro de Bioética. Especialista em Bioética e Mestre em Saúde Pública (USP)
site do bioética do CREMESP
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