sábado, 11 de janeiro de 2014

Neuroimagem e mediunidade: uma promissora linha de pesquisa


Neuroimaging and mediumship: a promising research line
rev psiq clin 2013; 40(6):225-32

Julio F. P. Peres1, Andrew Newberg2
1 Instituto de Psiquiatria (Proser), Universidade de São Paulo (USP).
2 Jefferson-Myrna Brind Center for Integrative Medicine, Thomas Jefferson University, Philadelphia, Pennsylvania, United States of America.
Recebido: 30/10/2013 – Aceito: 30/10/2013
Resumo
A relação mente-corpo tem despertado perguntas e debates desde os tempos das milenares tradições religiosas e dos antigos gregos até a neurociência contemporânea e, apesar de essas questões ainda não terem sido decisivamente respondidas, atualmente intervenções terapêuticas são orientadas por suposições a esse respeito. As investigações sobre os correlatos neurais da consciência e expressões mentais progrediram ao longo dos últimos 15 anos por meio do desenvolvimento de métodos de imagiologia funcional do cérebro. Essa abordagem pode abrir novas perspectivas para investigação da expressão de consciências supostamente espirituais com importantes implicações éticas, sociais e filosóficas. Propomos uma promissora nova linha de pesquisa em neurociências e discussão de algumas questões pertinentes à efetiva utilização da neuroimagem como potencial método de investigação da mediunidade para avançar a compreensão consensual a respeito da consciência, da suposta comunicação espiritual e suas relações com o cérebro. Destacamos certos aprendizados e desafios metodológicos adquiridos em nossa pesquisa neurofuncional sobre mediunidade a serem considerados em novos estudos nesse campo para formulação de hipóteses a respeito de tais fenômenos e discutimos orientações úteis para estudos de neuroimagem envolvendo experiências espirituais em geral.

Peres JFP, Newberg A / Rev Psiq Clín. 2013;40(6):225-32

Palavras-chave: Mediunidade, consciência, dissociação, neuroimagem, SPECT.
Abstract
The mind-body relationship has prompted debate from the times of millennial religious traditions and the ancient Greeks through to contemporary neuroscience, and although these questions have yet to be decisively answered, therapeutic interventions today are guided by assumptions made in this respect. Research on the neural correlates of consciousness and mental expressions has made progress over the last 15 years by developing functional brain imaging methods. This approach may open up new perspectives for studies of the expression of presumed instances of spiritual consciousness, which would have major ethical, social and philosophical implications. We pose a promising new line of research in the neurosciences and discuss certain issues pertaining to the effective use of neuroimaging to investigate mediumship and advance the consensus comprehension of consciousness, alleged spiritual communication and its relations with the brain. We highlight methodological challenges and lessons gleaned from our neurofunctional study of mediumship to be considered for further research in this field when formulating hypotheses to address these phenomena, and discuss useful guidelines for neuroimaging studies of spiritual experiences in general.

Peres JFP, Newberg A / Rev Psiq Clín. 2013;40(6):225-32

Keywords: Mediumship, consciousness, dissociation, neuroimaging, SPECT.
Introdução
Há atualmente diversas teorias que procuram explicar a consciência e a personalidade por meio de um extenso espectro de hipóteses, tais como interações de fatores ambientais, psicossociais, neurais, genéticos e espirituais1-3. A fonte e o suposto término da "vida psíquica" vêm sendo debatidos desde as milenares tradições religiosas e antigos gregos até a neurociência contemporânea, mas sem o estabelecimento de um consenso4-6. Contudo, a visão do homem e a da natureza que o constitui são esteios que norteiam as intervenções terapêuticas dos profissionais da saúde7-11. Aproximadamente 40% dos cientistas americanos acreditam em Deus e mantêm visões dualistas quanto à relação mente-cérebro e 7,9% dos membros da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos acreditam na vida após a morte12. Suposições a respeito da relação entre a mente e o cérebro têm implicações filosóficas, científicas e práticas3,13. A etiologia do sofrimento humano, da consciência e dos fatores que constituem a personalidade é de interesse essencial aos profissionais que se ocupam de tratar a dor psíquica em suas inúmeras expressões10. Nenhuma teoria da Psicologia pode ser vista como completa se não levar em consideração as experiências consideradas como paranormais/anômalas14. Essas experiências parecem ser relativamente comuns na população em geral (48%) e aqueles que as relataram às vezes/frequentemente as descreveram como altamente significativas15. Investigações sobre a mediunidade – em que um indivíduo (o médium) alega se comunicar com a (ou ser controlado pela) mente de uma pessoa morta – estão situadas nessa agenda de experiências anômalas. Por exemplo, o estudo clássico de Pierre Janet16 sobre a dissociação examinou vários médiuns; a tese de doutorado de Carl Jung17 envolveu um estudo de caso mediúnico; e William James14 pesquisou a médium Leonore Piper. Mais recentemente, apesar de alguns resultados apresentarem acertos de informações altamente significativos por parte dos médiuns18,19, outras investigações obtiveram resultados não significativos20,21, provocando consideráveis debates metodológicos19,20. Persiste, portanto, a necessidade de estudos controlados sobre a mediunidade, com critérios adequados para que pesquisadores investiguem se os médiuns podem manifestar informações específicas e precisas não obtidas por vias conhecidas e, em caso afirmativo, em que condições isso ocorre19. Outras linhas de pesquisa devem ser associadas à investigação da mediunidade e consideramos que a neurociência pode contribuir significativamente com geração de dados neurofuncionais relativos ao conhecimento mais amplo sobre os fenômenos mediúnicos em que, supostamente, a consciência e a volição do médium estão atenuadas ou mesmo dissociadas22.

As investigações sobre os correlatos neurais da consciência e expressões mentais progrediram ao longo dos últimos 15 anos por meio do desenvolvimento de métodos de imagiologia funcional do cérebro23,24, o que permitiu pesquisadores observarem a dinâmica cerebral envolvida em estados supostamente inconscientes de coma/vegetativo em estados minimamente conscientes e síndrome de encarceramento23. As descobertas sobre as atividades de circuitos neurais relacionados à compreensão cognitiva dos indivíduos aparentemente inconscientes favoreceram a melhor qualidade das terapêuticas psicológicas e médicas nesse âmbito25,26. Por outro lado, considerando as várias hipóteses a respeito do problema mente-cérebro que discutiremos a seguir, também seríamos capazes de observar a atividade cerebral atenuada durante atividades mediúni­cas, quando um espírito é supostamente o autor do conteúdo que um médium está expressando em palavras, escrita, pintura etc. A abordagem neurocientífica pode abrir novas perspectivas para investigação da expressão de consciências supostamente espirituais com importantes implicações éticas, sociais, filosóficas, assim como no âmbito da saúde.

O tema a que se propõe este artigo envolve um terreno fronteiriço e paradoxalmente desgastado em conflitos históricos controversos, que brevemente abordaremos aqui. Temos como objetivo apresentar uma nova e promissora linha de pesquisa no âmbito das neurociências e discutir algumas questões pertinentes à efetiva utilização da neuroimagem como potencial método de investigação da consciência, da suposta comunicabilidade espiritual e suas relações com o cérebro.
O debate mente-cérebro na perspectiva histórica
Ao final do século VI a.C., na Magna Grécia, Crotona foi a cidade que mais se destacou das escolas de medicina, quando as doenças do corpo humano foram examinadas de forma experimental, em vez de serem atribuídas a razões sobrenaturais. Alcmeão, um dos médicos-filósofos mais interessados ​​em fisiologia humana na tradição médica de Crotona, declarou que a alma era imortal e foi possivelmente o pioneiro no conceito da relação entre o cérebro e a mente, identificando o cérebro como o centro da compreensão, percepções, sensações e pensamentos27.

Em continuidade a essa linha histórica, observamos que debates filosóficos do século XVIII apresentam controvérsias ainda atuais sobre o problema mente-cérebro. O conceito neurofisiológico chave da segunda metade do século XVIII foi a doutrina da equipotencialidade de todas as estruturas cerebrais, incluindo o córtex de Haller. Pouco antes de 1800, em uma tentativa de conciliar a filosofia e a ciência, o anatomista Samuel Thomas Soemmerring sugeriu que os fluidos ventriculares seriam o órgão imediato da alma. A refutação dessa hipótese e a ascensão da doutrina frenológica de Franz Joseph Gall (1758-1820) – a qual postulava que a personalidade e os traços de caráter complexos (combatividade, esperança, entre outros) são controlados por áreas do cérebro que se expandem à medida que esses traços se desenvolvem – marcam o debate de localização cerebral no fim da era pré-moderna28. Hoje, cuidadosamente, filósofos e neurocientistas, no campo da neuroética, têm discutido se a neuroimagem seria de fato uma ferramenta de pesquisa revolucionária ou somente uma "sofisticada" repetição frenológica dos nossos tempos29,30. Além disso, são discutidas as implicações da suposta autonomia do cérebro em produzir a mente no campo da ética e as potenciais consequên­cias prejudiciais quanto à responsabilidade de cada um de nós sobre nossos atos a partir da exclusiva "biologização" da experiência humana31. Dois mil e quinhentos anos mais tarde, contribuições como a de Alcmeão continuam influenciando debates entre filósofos, naturalistas e neurocientistas da atualidade32.

Alguns estudiosos têm argumentado que a crença na alma é culturalmente universal33,34, provavelmente por ajudar as pessoas a explicarem a experiência subjetiva da própria mente, que parece ocorrer de maneira não vinculada a qualquer evento físico35. Nesse sentido, Dennett36 entende que a crença teológica tem um significado evolutivo e pode ser vantajosa nas nossas relações com o outro, considerando a teoria da "postura intencional", quando explicamos eventos ou comportamentos mentais volitivos (ou "da vontade própria"). Além disso, estudos com neuroimagem funcional mostraram correlatos neurais para muitos fenômenos mentais/psicológicos, incluindo os juízos morais37,38, expressões emocionais39 e efeitos neurobiológicos da psicoterapia40,41. Tais pesquisas conquistaram também a atenção da mídia e do público em geral. A captura de imagens vívidas do cérebro "iluminado" durante a atividade mental parece sugerir aos leigos "provas concretas" de que a mente é uma expressão decorrente do cérebro. Apesar dos muitos avanços da neuroimagiologia funcional, há ainda uma questão epistemológica da mente que a neurociência pode não ser capaz de resolver, chamada de "hard problem of consciousness"1 ou de "explanatory gap"42. Por outro lado, alguns materialistas reducionistas afirmam que não há "perguntas difíceis" a serem respondidas ou mesmo "lacunas" a serem explicadas, porque a mente não pode existir separada do cérebro: a mente é o cérebro. Nesse sentido, as experiências mentais seriam explicadas exclusivamente pela atividade cerebral2.

Hoje, uma significativa parcela de investigadores da Inteligência Artificial acredita ser possível construir algoritmicamente a alma humana43,44. Esse ponto de vista nega a "separação" dos fenômenos mentais e físicos, sendo a mente análoga à operação de sofisticados softwares cerebrais45. Todavia, não houve acordo sobre a compreensão da gênese da mente ou como os processos neurofisiológicos podem produzir experiências conscientes, sentimentos e intenções. Apesar das discussões recorrentes, o materialismo promissório não foi entregue até agora46,47. É notório, contudo, que a neurociência pode identificar correlatos neurais associados aos processos mentais, mas ainda assim não explica precisamente como a atividade no cérebro cria a experiência dos fenômenos mentais, e essa lacuna deixa alguns aspectos da mente inexplicáveis, favorecendo implicações para a crença na alma5,48,49.
Vieses a serem desconstruídos
Demertzi et al.13 conduziram duas pesquisas realizadas na Universidade de Edimburgo (estudantes universitários, n = 250) e na Universidade de Liège (profissionais da saúde, público leigo, n = 1.858) para investigar as opiniões/atitudes sobre a relação mente-cérebro e as variáveis que afetaram as diferenças entre os pontos de vista. As afirmações apresentadas aos participantes foram: (1) a mente e o cérebro são duas coisas distintas, (2) a mente é fundamentalmente física, (3) uma parte espiritual de nós sobrevive após a morte, e (4) cada um de nós tem uma alma que é separada do corpo. A primeira pesquisa revelou uma predominância de atitudes dualistas, enfatizando a separação entre mente e cérebro. A segunda mostrou que os participantes mais jovens, as mulheres e as pessoas com crenças religiosas eram mais propensos à crença de que a mente e o cérebro são separados, que alguma parte espiritual de nós sobrevive à morte e cada um de nós tem uma alma. A crença religiosa foi observada como o maior preditivo de atitudes dualistas. Embora a maioria dos profissionais de saúde tenha negado a distinção entre a consciência e o cérebro, mais de um terço dos profissionais médicos e paramédicos consideraram a mente e o cérebro como entidades separadas13. Mais recentemente, Preston et al.48 investigaram um grupo de estudantes de Psicologia e descobriram que a exposição de textos com explicações fortemente mecanicistas foi associada à diminuição das pontuações relativas à crença na alma, enquanto a exposição das fragilidades da neurociência em explicar a mente e a consciência aumentou os escores relativos à crença na alma. Em outras palavras, explicações neurocientíficas sobre correlatos neurais e faculdades cognitivas levaram à atenuação da crença na alma, enquanto a menção das fragilidades da neurociência em explicar a consciência favoreceu a crença na alma. O "materialismo promissório"50 envolve uma expectativa de que a ciência será capaz de mostrar no futuro como o cérebro produz a mente. Embora essa promessa, que já tem 300 anos46, possa se materializar em algum momento, não podemos ignorar as explicações alternativas, como as propostas por Henri Bergson, William James e Frederic Myers, ou seja, de que o cérebro funciona como um filtro, e não como a causa de manifestações mentais3,51,52. Portanto, é preciso cautela com declarações exageradas e ponderação ao interpretar os resultados obtidos em estudos neurofuncionais. O que parte dos neurocientistas atualmente chama de "bases neurais" deveria ser corrigido para "correlatos neurais", em consideração a outras hipóteses para a relação mente-cérebro3,22.

Em síntese, as teorias relativas à gênese da consciência podem ser divididas em duas categorias: (1) aquelas que propõem que a consciência é um produto da atividade cerebral e (2) aquelas que postulam que a consciência é uma entidade com vida e funcionamento próprio e que não é necessariamente limitada ao cérebro. Estudos neurofuncionais nesse campo devem respeitar os dados obtidos sem tentar fazê-los caber em uma teoria ou outra. Por outro lado, até recentemente, tivemos poucas oportunidades para testar essas teorias experimentalmente e, entre outras linhas de pesquisa, investigações neurofuncionais sobre a mediunidade podem avançar a compreensão consensual a respeito da consciência, da suposta comunicação espiritual e suas relações com o cérebro. Em adição aos estudos sobre experiências religiosas, estudos focados na suposta comunicação espiritual podem permitir-nos observar correlatos neurais em situações em que um indivíduo e seu cérebro estão supostamente produzindo conteúdos de outra consciência (o espírito) durante um transe mediúnico, desse modo ampliando nosso conhecimento a respeito do complexo mente-cérebro.
Neuroimagem funcional e experiências religiosas
As tecnologias de neuroimagem funcional favorecem investigações sobre os correlatos neurais de experiências complexas, uma vez que a dinâmica cerebral pode ser observada in vivo durante situações controladas. Os métodos mais utilizados nos últimos 15 anos são: a tomografia por emissão de fóton único (SPECT), tomografia por emissão de pósitrons (PET) e ressonância magnética funcional (fMRI)53.

Decidir qual método usar requer avaliação cuidadosa das vantagens e limitações53,54. Fatores como sensibilidade à detecção anatômica e funcional (resolução espacial e temporal), possibilidade de controlar e reproduzir ensaios, assim como custo e disponibilidade para utilização do método devem ser ponderados para o estudo ideal relativo ao objetivo proposto da investigação (Tabela 1). Por exemplo, utilizamos o método SPECT porque esse permite que os sujeitos desempenhem suas tarefas complexas, as quais exigem silêncio e concentração, em um ambiente adequado e livre de muitos efeitos que possam distrair ou causar ansiedade. A fMRI, por outro lado, é um método neurofuncional não invasivo e apresenta superior resolução espacial e temporal (Tabela 1). Contudo, os ruídos devem ser controlados nos ensaios das tarefas anteriores ao estudo para que a expressão mediúnica não seja prejudicada.

Recentemente, alguns estudos revelaram que regiões e sistemas cerebrais medeiam os diferentes aspectos da experiência religiosa55,57, descartando, assim, a teoria "ponto de Deus", que postulava um local no cérebro como responsável pela experiência com o "divino"58. As experiências religiosas são complexas e multidimensionais na medida em que envolvem alterações na percepção (por exemplo, imagens mentais visuais); cognição (por exemplo, representações do self), e emoção (paz, alegria e amor incondicional)57. Os estudos neurofuncionais tendem a sugerir maior atividade do córtex frontal e pré-frontal durante experiências religiosas55-,57,59,60. Outras semelhanças entre os achados incluem um aumento da atividade nas redes atencionais relacionadas ao pensamento reflexivo durante tais experiências55,56,57,59,60. Outros estudos contribuíram para o nosso entendimento das experiências religiosas pela investigação de experiências com indução de drogas61 e a natureza da crença religiosa62,63. Esses estudos também apontam para a atividade de áreas como os lobos frontal e parietal, correlacionados com elementos psicológicos e cognitivos específicos das experiências religiosas. Essas áreas parecem ser parte de uma rede neural envolvida na elaboração dos fenômenos religiosos. A tabela 2 lista estudos de neuroimagem em práticas religiosas. Vale notar que nosso estudo sobre mediunidade22, ao contrário de outros estudos sobre práticas religiosas, encontrou diminuição na atividade nas redes atencionais durante a suposta comunicação espiritual. Similares achados ocorreram durante a experiência de glossolalia – "falar em línguas" – em que indivíduos dizem acessar um domínio espiritual56. São necessários mais estudos para preencher detalhes da natureza e diferenciação das práticas religiosas e espirituais e seus respectivos correlatos neurais.
Uma linha de pesquisa nascente e desafios metodológicos
Usamos neuroimagem para investigar a prática da psicografia, em que supostamente "um espírito desencarnado escreve por intermédio da mão do médium"22. Baseados na experiência adquirida em nosso estudo, traremos algumas discussões e orientações pertinentes para novos estudos sobre o tema, assim como aqueles relativos a experiên­cias espirituais em geral.

A psicografia é uma das muitas formas dissociativas da expressão mediúnica. Durante a psicografia, os médiuns escrevem narrativas estruturadas e legíveis, mas frequentemente alegam desconhecer o conteúdo ou a estrutura gramatical do texto escrito. Tivemos como objetivo investigar se esse tipo de estado de transe dissociativo se relaciona com alterações específicas na atividade cerebral que sejam distintas das verificadas quando se escreve habitualmente, isto é, fora do estado de transe. Assim, medimos o fluxo sanguíneo cerebral regional (FSCr) usando SPECT durante a psicografia (escrita em estado de transe dissociativo) e comparamos os dados com aqueles adquiridos durante a escrita no estado habitual de consciência, fora do transe mediúnico (tarefa de controle). Nossa hipótese a priori era a de que as áreas envolvidas em processos cognitivos quando se escreve conscientemente, tais como raciocínio e planejamento de conteúdo, mostrariam ativação semelhante durante a escrita sob o transe mediúnico.

Examinamos dez médiuns brasileiros divididos em dois grupos – cinco médiuns "menos experientes" e cinco com "experiência substancial". A comparação entre médiuns experientes e médiuns menos experientes pode favorecer a obtenção de dados neurofuncionais mais realistas a respeito dessa prática. De acordo com William James14, é crucial concentrar as investigações sobre as manifestações mais extremas do fenômeno em pauta. Assim, há base racional para pesquisas neurofuncionais de casos isolados de médiuns mostrando expressão robusta ou décadas de experiência, o que pode favorecer achados mais consistentes. Triar cuidadosamente a amostra é um desafio especial nesse âmbito de pesquisa. Médiuns que cobram suas consultas espirituais devem ser evitados. A necessidade de entregar um resultado pode enviesar a experiência mediúnica espontânea. É importante avaliar as possíveis interfaces entre a mediunidade e fenômenos autoproduzidos pela expectativa de resultados "convincentes", transtornos dissociativos ou outras condições psiquiátricas e charlatanismo para que resultados duvidosos não contaminem a epistemoloia nesse campo nascente. Assim sendo, métodos para controlar essas variáveis devem ser desenvolvidos.
Auxiliando os voluntários a sentirem conforto
O ato de escrever, nos dois casos, realizou-se em ambiente silencioso e com luz suave, em uma antessala do laboratório de neuroimagem. Todos seguiram o mesmo procedimento: sentaram-se confortavelmente, fecharam os olhos, concentraram-se e fizeram uma oração. De modo geral, entraram em transe em poucos minutos, pegaram um lápis e começaram a escrever. Os médiuns relataram entrar em transe com facilidade e tranquilamente. Para que os médiuns estejam confortáveis e o fenômeno se manifeste tal como se estivessem "em casa", é importante conduzir com antecedência uma entrevista qualitativa adequada e perguntar ao participante da pesquisa: "O que é necessário para que o fenômeno ocorra?". Médiuns em geral não fazem objeção, ao contrário, apreciam participar de estudos, mas certamente ficam desconfortáveis quando se sentem "testados". Portanto, os pesquisadores devem estabelecer um vínculo amistoso, respeitar as sugestões dos médiuns e mostrar-lhes que as suas opiniões são importantes. Por exemplo, em nosso estudo, os voluntários pediram o apoio espiritual dos colegas médiuns a distância e próximo daquele que se submetia à neuroimagem, e tal pedido foi respeitado. Devemos minimizar as expectativas e receios dos médiuns de não realizarem bem as tarefas do estudo e desconstruir qualquer fantasia dos participantes a respeito das expectativas dos pesquisadores, ressaltando que a experiência mediúnica será bem-vinda, simplesmente, assim como é. A familiarização dos voluntários da pesquisa com potenciais gatilhos de ansiedade ou outros efeitos perturbadores (ambiente hospitalar, tecnologia neuroimagem, amostras de sangue, injeções etc.) é fundamental, além de começar o estudo com os voluntários mais confiantes, que naturalmente transmitirão segurança/tranquilidade para os outros participantes.

Avaliação da produção mediúnica por peritos cegos
Os próprios médiuns relatam que diferentes tipos de comunicação espiritual podem acontecer isoladamente ou mesmo simultaneamente. De acordo com os voluntários por nós estudados22, as principais manifestações mediúnicas são: incorporação (a experiência de sentir o espírito no próprio corpo); psicofonia (a experiência de expressar verbalmente o que o espírito comunica); clariaudiência (a experiência de ouvir espíritos ou ruídos produzidos por eles); clarividência (a experiência de ver espíritos); psicografia (a experiência de escrever o que o espírito comunica).

Futuros estudos devem considerar a possibilidade de avaliadores externos especialistas pontuarem cegamente aspectos da experiência mediúnica, bem como a qualidade dos conteúdos produzidos nesse estado (expressados em palavras, textos, pinturas etc.), e dos conteúdos gerados em estado habitual de consciência (fora do transe) pelos próprios médiuns e por grupos de controles. Além disso, uma avaliação cuidadosa da experiência fenomenológica investigada por neuroimagem pode favorecer a correlação mais precisa entre a experiência em primeira pessoa (fenomenológica) e a experiência em terceira pessoa (atividades neurais). Os escores de complexidade – avaliados cegamente por especialistas – dos conteúdos produzidos durante o transe ou aspectos relevantes da experiência podem ser usados como regressores ​​em análises estatísticas. Por exemplo, nosso estudo trouxe resultados interessantes a esse respeito. Um especialista da área de letras cegamente avaliou a complexidade dos textos produzidos pelos médiuns durante as duas tarefas. A análise de correlação linear comparando mudanças nos escores de complexidade para o conteúdo escrito e alteração do fluxo sanguíneo cerebral (FSC) nas áreas relacionadas com o estado de psicografia (cúlmen esquerdo, hipocampo esquerdo, giro occipital inferior esquerdo, cíngulo anterior esquerdo, giro temporal superior direito e giro pré-central direito) mostrou uma tendência de correlação inversa: os níveis crescentes de complexidade foram associados com diminuição gradual do FSC em cada região. A tendência de correlação inversa encontrada em nosso estudo, quando levada em conta a complexidade do conteúdo psicografado, requer discussões futuras e novos estudos para formulações de hipóteses explicativas.
Discussões desafiadoras
Um bom estudo pode ser prejudicado por uma discussão imprópria. Dados devem ser analisados cautelosa e respeitosamente a partir de uma abordagem com mente aberta para evitar o viés do "eterno retorno do materialismo promissório"46. Nossa hipótese a priori não se confirmou, já que os resultados apresentaram significativas alterações no fluxo sanguíneo em diversas áreas do cérebro durante a psicografia, em comparação com a escrita fora do estado de transe. Além disso, os médiuns experientes, durante a escrita em estado de transe dissociativo, apresentaram FSCr significativamente mais baixo em comparação com a escrita habitual da condição de controle.

Os voluntários relataram que o transe envolvia um "estado de relaxamento mental". Tal relaxamento poderia explicar a atividade geral atenuada do cérebro, mas o fato de que os indivíduos produziram textos complexos em estado de transe dissociativo sugere que eles não estavam meramente relaxados. Os resultados também não condizem com simulação ou fraude, que, por vezes, têm sido oferecidas como explicações para a mediunidade. Circuitos neurais relacionados ao planejamento presumivelmente seriam recrutados para a composição dos textos, caso os indivíduos estivessem simulando tais conteúdos.

O nível comparativamente reduzido de atividade no córtex temporal, giro pré-central, hipocampo e cíngulo anterior em médiuns experientes também reforça os seus relatos subjetivos de que não tinham consciência do conteúdo escrito durante a psicografia, cujos temas envolveram princípios éticos/espirituais e a importância da união entre ciência e espiritualidade. Os médiuns relatam que "a autoria dos textos psicografados foi dos espíritos comunicantes e não pode ser atribuída a seus próprios cérebros", o que é também uma hipótese plausível.

Nossos achados poderiam ser discutidos em relação a estudos neurofuncionais sobre outros estados alterados de consciência como a hipnose65 e meditação66, os quais são fenomenologicamente distintos das expressões mediúnicas e, por isso, tais condições não são diretamente comparáveis. Além disso, assim como na meditação, a ideia de que a hipnose reflita um estado dissociativo ainda é controvertida67. A improvisação musical, em que a diminuição da atividade em circuitos atencionais pode ter envolvido o treinamento para a inibição da atenção, favorece a emergência da criatividade68,69. Ainda sobre criatividade, um estudo recente mostrou que o consumo de álcool reduz a atividade do lobo frontal e parece aumentar a criatividade ou talvez diminuir a crítica70. Porém, os estados de improvisação musical – com acentuada participação da memória motora – e consumo de álcool são bastante particulares e distintos da psicografia, que envolve elaboração de textos inteligíveis com mensagens éticas e, portanto, não podem ser comparáveis entre si. Por outro lado, estudos sobre expertise cognitiva envolvendo planejamento mostraram circuitos neurais com maior atividade durante tarefas realizadas por especialistas71. Por exemplo, assim como o planejamento de escrita refinada, o xadrez é um jogo que envolve muitos aspectos da cognição e requer habilidades sofisticadas de resolução de problemas. Especialistas no jogo mostraram atividade acentuada no cíngulo posterior, córtex órbito-frontal e córtex temporal direito quando comparados com enxadristas iniciantes72. A observação neurofuncional de prodígios em cálculos aritméticos e especialistas em ábaco (antigo instrumento de cálculos matemáticos) também sugere que experts em tarefas cognitivas sofisticadas expressaram maior atividade em rotas cerebrais diferenciadas e mais extensas, como nos circuitos atencionais e de planejamento73. Contudo, é necessário realizar mais pesquisas para comparar minuciosamente a psicografia com outros estados mediúnicos e elucidar com precisão as possíveis relações entre os circuitos relacionados a criatividade e atenção versus a profundidade, intensidade e complexidade do conteúdo produzido durante os estados mediúnicos. Seria útil observar a complexidade das expressões mediúnicas e seu aumento e/ou diminuição de atividade em relação a circuitos atencionais, e por isso esperamos que projetos funcionais sejam desenvolvidos nessa direção.

Vale lembrar que, embora os voluntários do nosso estudo tenham relatado alucinações auditivas, alterações de personalidade e outros comportamentos dissociativos, as entrevistas clínicas estruturadas excluíram transtornos psiquiátricos22. Esses achados sublinham a importância de futuras investigações endereçarem a precisão dos critérios para distinguir expressões dissociativas saudáveis e patológicas no escopo da mediunidade.
Limitações
Uma linha de pesquisa embrionária pode enfrentar dificuldades quanto à discussão entre os achados obtidos nos primeiros estudos e publicações neurocientíficas sobre outros estados de consciência fenomenologicamente distintos das expressões mediúnicas. Portanto, mais pesquisas devem ser conduzidas para que condições mediúnicas similares sejam diretamente comparáveis entre si, considerando controles (tarefas e sujeitos) escolhidos com pertinência para investigarmos temas como, por exemplo, a hipótese da comunicabilidade espiritual, os critérios de distinção entre as expressões dissociativas saudáveis e patológicas no âmbito da mediunidade e relações/diferenciações entre esquizofrenia e mediunidade.

Wilder Penfield, a partir de seus estudos com estimulação elétrica do cérebro em indivíduos acordados (com preservação da cons­ciência) para mapear as funções corticais, trouxe importantíssimas contribuições, como o "Homúnculo de Penfield", que relaciona estruturas cerebrais a funções específicas74. Mais tarde, no livro Mistério da mente, considerando seus longos anos de estudo, afirmou: "a mente tem uma existência distinta do cérebro, embora esteja intimamente relacionada a ele. [...] Não há local no córtex cerebral onde a estimulação elétrica fará o paciente decidir"75. Determinar as funções em isolamento espacial e temporal é naturalmente o primeiro passo das neurociências para a compreensão coerente de toda atividade encefálica. Mesmo como primeiro passo, reconhecer e limitar as funções específicas de cada estrutura encefálica não tem sido uma tarefa fácil, e talvez seja mesmo inexequível. Ao fazermos pesquisas neurofuncionais sobre consciência e expressões mentais, as estruturas e circuitos neurais vão além da especificidade de funções, conforme variáveis que pouco compreendemos ainda. Por exemplo, as condições imaginárias de audição e visualização também obedeceram a reciprocidades neurais similares às condições reais de ouvir e visua­lizar os mesmos eventos76,77. Voluntários músicos, ao imaginarem uma certa melodia, ativaram circuitos neurais tal como na condição de ouvir a mesma melodia tocada em fones de ouvido. Os autores atribuíram um título sugestivo ao artigo: "O som do silêncio ativa o córtex auditivo"76. O fato de estimular regiões específicas do cérebro e provocar certas experiências não implica a origem da experiência no cérebro. A sintaxe neural parece combinar as estruturas isoladas tal como as letras que compõem incontáveis palavras, períodos e parágrafos em distintos idiomas, que favorecem a tradução das inúmeras experiências humanas, e ainda assim muitas delas possivelmente indescritíveis nessa semântica cerebral. Enquanto a neurociência tem feito grandes progressos na descoberta das funções de regiões do cérebro, pouco se sabe sobre os padrões dinâmicos de tradução, conectividades e fluxos das informações mentais no cérebro. Portanto, é um equívoco primário identificar uma região ou circuito do cérebro envolvidos em experiências mediúnicas e concluir que esses correlatos neurais são a causa final dessas experiências. Moreira-Almeida e Santos3 afirmam que a mesma experiência pode ter diferentes etiologias (por exemplo, taquicardia pode ter uma ampla gama de causas, tais como a ansiedade, a insuficiência cardíaca, o exercício, o consumo de cocaína). Portanto, encontrar a causa de um episódio de taquicardia em um paciente em particular não significa que encontramos a causa de todos esses episódios para esse paciente, ou para todos os seres humanos. Este parece ser o caso de similares experiências alucinatórias relatadas por médiuns3,22.

A neurociência cognitiva geralmente desenvolve hipóteses para explicar fenômenos a partir da atividade mensurável no espaço (estruturas e circuitos do encéfalo) e no tempo (aquisições de imagens únicas, como no caso do método SPECT ou aquisições contínuas em sequências temporais, como no caso dos métodos PET e fMRI). Devido à influência do materialismo promissório, alguns neurocientistas podem estar olhando na direção errada em busca de regiões cerebrais ativadas durante a suposta comunicação espiritual, em vez de observar a atenuação das atividades neurais esperadas para gerar informações – às vezes complexas – resultantes do transe mediúnico. Além de considerar o aumento e especialmente o decréscimo da atividade neural em manifestações mediúnicas, devemos pensar cuidadosamente em tarefas e grupos de controle, e também em estratégias de análise estatística pertinentes ao objetivo do estudo, a comunicabilidade espiritual.

A baixa resolução temporal e espacial dos métodos de neuroimagiologia atuais é um limite relevante à captação da complexa filigrana neural. Não somos capazes de abranger a complexidade da sintaxe cerebral com a tecnologia e o conhecimento de que dispomos no presente. Futuros métodos multimodais, que integrem as vantagens das distintas técnicas de neuroimagem53, examinarão substratos neurais funcionais, estruturais, neuroquímicos/moleculares para uma crescente compreensão de como os fluxos de informações trafegam no cérebro em acordo com as experiências mentais, que parecem ser traduzidas78,79.
Conclusões
O presente artigo cobre alguns dos principais debates do complexo mente-cérebro, estudos neurofuncionais sobre experiências religiosas, alguns desafios metodológicos e limitações que consideramos serem úteis ao formular novas pesquisas sobre mediunidade e experiências espirituais. Observamos que, até agora, os estudos neurofuncionais sobre experiências religiosas não focaram especificamente a questão "comunicação espiritual", mas precisamente este tema pode ser relevante à ciência. Nossos resultados preliminares22 sugerem a continuidade e extensão dessa nascente e frutífera linha de pesquisa. Uma vez que a compreensão de correlatos neurais envolvidos em mediunidade se encontra em estágio inicial, enfatizamos que essas essas descobertas demandam futuras replicações e hipóteses explanatórias. Essa nova linha de pesquisa precisa seguir de mãos dadas com a formulação de hipóteses que cubram uma larga gama de fenômenos mediúnicos e supostas manifestações espirituais. Portanto, consideramos que estudos subsequentes com métodos de neuroimagem devem focar na mediunidade e convidamos nossos colegas neurocientistas a colaborarem e investirem nessa importante linha de pesquisa a fim de aperfeiçoar o consenso de compreensão sobre consciência, experiências espirituais e suas relações com o cérebro.
Referências
  1. Chalmers DJ. The conscious mind: in search of a fundamental theory. New York, NY: Oxford University Press; 1996.
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